Conservatório de Tatuí cria curso em braile
As aulas permitem que alunos com deficiência visual leiam as partituras e se tornem músicos profissionais
Flauta, piano, violão ou teclado? Tudo isso junto, além de aulas de canto, sempre fizeram a cabeça de Gisleine Amaral Aquino, de Capão Bonito, no interior de São Paulo. Dela e de Alan, Manuela, Mayara e Júnior, de Tatuí; do sorocabano Messias, e de Luciana, nascida em Cesário Lange.
“Tudo de ouvido”, apressa-se em esclarecer a Gisleine, durante o movimentado encontro no Conservatório de Tatuí, na manhã quente e ensolarada da cidade que respira música 24 horas por dia.
Detalhe: eles são deficientes visuais, integrantes de um grupo pra lá de animado, curioso e interessado em “mergulhar fundo na música”. Aliás, tem sido assim desde que o Conservatório anunciou o curso de musicografia em braile. Em apenas duas semanas, foram várias entrevistas para os jornais da região, redes de TV e de rádio da região e de São Paulo.
Uma novidade nunca antes imaginada por Mayara Silva, de 18 anos, tecladista que começou a estudar violão em Bambuí, interior de Minas, onde também foi alfabetizada em braile, na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). “Nessa época, ninguém falava de musicografia em braile. Aprender a escrever e ler pelo método já era o máximo”. O Conservatório de Tatuí para ela vinha de informações distantes, por meio de sua tia, moradora da cidade e quem a incentivou a se transferir de vez para lá. “Tive muita sorte de ter o apoio da família.” Hoje, quatro anos depois na nova terra, faz teclado na área comercial, como anunciante de produtos nas lojas da cidade. Mayara conta, ainda, com o incentivo do namorado, Alan da Silva, 26 anos, paulistano, morador de Tatuí desde um ano de idade. Eles se conheceram numa instituição e, aos poucos, foram envolvidos pela música. Alan, que até o ano passado enxergava 10% com o olho direito, perdeu inteiramente a visão por causa de um descolamento na retina. O esquerdo já havia perdido ainda bebê, devido a erro médico.
Nada disso o impediu de estudar braile, ensinado, em parte, pelo amigo João Vieira Júnior, do mesmo grupo. Com o curso, pretende profissionalizar-se e dar aulas particulares de guitarra. Alan, que, além de formado em teoria musical, faz arranjos e orquestração no Conservatório há mais de três anos, com o maestro Hector Costita, está animado com as novas perspectivas na profissão. “Trata-se de uma oportunidade única de formação musical e profissional à qual dificilmente teríamos acesso.”
Cidadania
Para o maestro Antônio Carlos Neves Campos, há 23 anos na direção do Conservatório, e há 50 como aluno e professor, o curso de musicografia em braile é sonho antigo, cultivado desde a década de 1970, quando a instituição iniciou diversas ações de inclusão a portadores de deficiência. O maestro Ferri, por exemplo, era cego e foi professor de canto no conservatório. Já Madalena Cubas destacou-se como professora e musicista deficiente visual. Nos anos 1970, com menos de 10% de resíduo visual, ela ingressou no Conservatório para estudar flauta transversal. Na época, seu professor, João Dias Carreiras, adaptava as partituras para que conseguisse lê-las. Madalena Cubas não só inspirou outros estudantes, como também incentivou a própria professora do curso de musicografia, Karla Cremonez Gambarotto.
O Conservatório, ao oferecer oportunidades a esses jovens, também contribui para que eles se transformem em multiplicadores da arte musical, como muitos já fazem em suas cidades, explica Neves. “O que estamos fazendo é desenvolver competências em pessoas com potencial, garra e uma tremenda vontade de aprender. Sem paternalismos, permitir, com a profissionalização, a cidadania plena. Muitos começaram a procurar o Conservatório até por orientação médica e estão se revelando artistas de primeira.”
Depois que as aulas de musicografia braile e teoria musical passaram a integrar a grade de cursos muita coisa mudou no Conservatório. Foi adquirida uma máquina em braile, de onde saem as partituras, além de outra versão manual da máquina – a reglete – para que todos possam treinar o método. Para o próximo ano, o investimento na infra-estrutura da sala de aula será maior: um computador, com programa que faz a conversão para braile e uma impressora, também em braile, darão maior agilidade ao curso. Essas máquinas são mão na roda, diz Neves, pois permitem que os alunos levem as partituras para estudar em casa.
Essa é apenas uma das facetas do programa que, em 2008, aumentará o número de vagas, inclusive para surdos, com a inclusão de outras matérias, como História da Música e Percepção Auditiva. A mudança que realmente comove o maestro é a de mentalidade, como, por exemplo, o engajamento espontâneo dos professores do Conservatório que se dispuseram a ensinar piano, violão sax e bateria. “A professora Karla caiu do céu – é pedagoga, conhece libras, braile e é música clarinetista”.
Desafios
Os primeiros sete alunos têm aulas às terças-feiras e sextas-feiras, num trabalho que envolve a própria alfabetização. Alguns são fluentes no método, outros não, explica Karla. “Por isso, enfocamos a leitura e a escrita. Eles estão felizes e animados, porque agora deixa de existir o vácuo entre o professor do instrumento e a teoria, principal passo para a profissionalização.”
Apaixonada pelos desafios da área, a professora de Agudos, aluna do Conservatório, trocou o sonho de ser clarinetista concertista pelo de ajudar portadores de deficiência a serem músicos profissionais.
A musicografia torna os alunos independentes, mas o processo é lento, diz a professora. “A teoria musical já é complexa, em braile, mais ainda.”
Paciência e vontade de brilhar como estrelas é o que não faltam ao grupo que pensa em formar uma bandinha para tocar em casamentos, piano bar, festas ou mesmo shows. Manuela Tomasi Ferreira, 23 anos, quer se especializar em regência, depois de terminado o curso. “Vejo-me no palco recebendo aplausos. Deve ser maravilhoso.”
Júnior, que freqüenta o Conservatório desde 1998, é baterista e faz aulas de canto. “Lidei com música a vida inteira, mas só agora vou aprender na sua totalidade”, diz ele, que passou mais de 10 anos gravando aulas em fitas cassete, convertendo para o braile, num esquema criado por um antigo professor.
Chegar ao estrelato é objetivo da Gisleine, com extensa folha corrida na arte musical. Aos 11 anos, tocava violão e cantava, mais tarde formou-se em teclado eletrônico e aprendeu flauta. Depois do curso, vai encarar a Faculdade de Música. Com visão subnormal, foi alfabetizada em braile na cidade de Itapetininga. Sempre acompanhada da mãe, Neusa, que a acompanhava no processo de alfabetização, escrevendo as letras maiores para que pudesse enxergar. “Foram momentos marcantes”, diz, entre um acorde e outro da flauta, ao som do clássico Carinhoso.
Maria das Graças L
10/14/2007
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