Mudança no IR surpreendeu até aliados







Mudança no IR surpreendeu até aliados
Segundo líder, Everardo expressou desejo de elevar imposto de empresas, mas isso não foi negociado

BRASÍLIA - A base aliada foi surpreendida com a decisão do governo de incluir na medida provisória de correção da tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física o aumento da carga tributária de empresas prestadoras de serviço. Segundo o líder do PSDB na Câmara, Jutahy Júnior (BA), isso não fazia parte do acordo fechado no Congresso para aprovar o projeto de lei que corrigia a tabela. O projeto acabou vetado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e, em seu lugar, foi editada a MP.
"O secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, havia manifestado diversas vezes o desejo de aumentar o imposto das prestadoras de serviço, mas isso não foi negociado nem discutido no Congresso", disse Jutahy. O aumentoe em dois pontos porcentuais da alíquota efetiva da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) para empresas prestadoras de serviço que declaram IR por lucro presumido foi criticada pela oposição e por governistas.

Para o deputado Germano Rigotto (PMDB-RS), presidente da comissão da Câmara que elaborou a frustrada proposta de reforma tributária, o Congresso será mobilizado para modificar a MP: "Temos de limpar o aumento de carga tributária das pequenas e médias empresas." O recesso do Congresso só termina em 15 de fevereiro. Até lá, o governo terá folga para usar argumentos a favor de sua MP.
O senador Paulo Hartung (PSB-ES), autor do projeto original de correção da tabela, disse que trabalhará pela aprovação da MP, mas quer derrubar o aumento da CSLL. "Isto não estava no acordo", afirmou. Hartung elogiou a educação da equipe econômica, por telefonar aos congressistas e comunicar o veto ai projeto. Mas, segundo ele, em nenhum momento das conversas o ministro da Fazenda, Pedro Malan, informou que aumentaria a CSLL.

Ele acha natural que a correção da tabela em 17,5% só vá incidir a partir do ano-base 2002 - ou seja, produzirá efeitos nos recolhimentos na fonte a partir deste mês, mas só mudará na declaração de IR a ser entregue em 2003.
"Não tem jeito de fazer valer a tabela corrigida para a declaração deste ano. Seria uma confusão danada." Hartung explicou que, se fosse assim, a perda de receitas estimada, que é de R$ 3,8 bilhões, teria de ser contada em dobro.

Em entrevista ao Programa Bom Dia Brasil, da TV Globo, Malan disse que a MP respeita a decisão do Congresso de corrigir a tabela do IR em 17,5%. Ele ressaltou que a MP teve boa receptividade por parte dos presidentes da Câmara e do Senado e dos líderes dos partidos que apóiam o governo.

O governo alega que decidiu elevar a contribuição das prestadoras de serviço para cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Segundo Everardo, apenas parte da perda de R$ 3,8 bilhões pode ser compensada com cortes e o restante deve ser coberto com aumento de impostos. Essa parcela é de R$ 188 milhões neste ano, mas a elevação da CSLL renderá R$ 308 milhões.

Optativo - Everardo explicou que a mudança só se aplica às prestadoras de serviço que calculam o IR no sistema de lucro presumido.
"Esse regime é optativo; se achar que houve aumento, basta a empresa mudar para o método de lucro real." Para ele, se o Congresso derrubar o aumento da CSLL, a medida próvisória ficará desfigurada e descumprirá a Lei Fiscal. Por isso, ela não entraria em vigor e a correção da tabela seria revogada.

"Bobagem. Há diversas medidas adotadas pelo governo que descumprem a Lei Fiscal", rebateu Hartung. "Além disso, a correção já virá no pagamento de janeiro e não tem mais volta."
O líder do PT na Câmara, Walter Pinheiro (BA), disse que seu partido estuda a idéia de entrar com ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF). "Everardo fez um gol com as mãos aos 45 minutos do segundo tempo, quando encontrou a fórmula de aumentar a cobrança do imposto das empresas", criticou. Malan disse não temer a ação.

O deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) afirmou que um projeto aprovado pelo Congresso que esteja sendo submetido à sanção ou ao veto do presidente não pode ser objeto de MP. Mas Malan discordou. "O deputado tem razão ao dizer que o governo não pode editar uma medida provisória em matérias que estão pendentes de sanção ou de veto. Mas, nesse caso, o veto já teve lugar, portanto não há mais pendência", alegou.


MP tirou chance de contribuinte ter restituição maior
Se a correção valesse para declaração deste ano, valor a receber seria bem mais elevado

Ao deixar claro na medida provisória do Imposto de Renda que a correção de 17,5% vale apenas para fatos geradores ocorridos a partir de janeiro deste ano, o governo acabou com a perspectiva do contribuinte pessoa física de obter uma restituição maior na declaração de ajuste anual do IR de 2002, ano-base 2001.
Conforme entendimento de alguns tributaristas, pelo projeto de lei aprovado pelo Congresso, que o governo rejeitou, os valores reajustados na tabela anual do IR já poderiam ser utilizados este ano pelo contribuinte, na declaração do Imposto de Renda de 2002, ano-base 2001. Com isso, quem tem direito a restituição iria receber um valor maior. Isso porque reteve na fonte um valor maior, calculado com a tabela sem correção. Mas, na declaração anual, os cálculos seriam feitos com a tabela atualizada em 17,5%, o que resultaria em um imposto devido menor, o que aumentaria o valor da restituição (ver tabela).

Os exemplos foram feitos tomando como referência cinco contribuintes com salários diferentes, de R$ 2 mil a R$ 10 mil, que se mantiveram fixos durante o ano passado. Mas em todos os casos foram considerados descontos iguais referentes ao INSS (pelo teto, de acordo com a lei); deduções com três dependentes, dos quais dois com despesas escolares, e despesa anual com saúde de R$ 3,6 mil.
O contribuinte com salário de R$ 2 mil mensais, por exemplo, teve retido na fonte, no ano passado, um valor total de R$ 1.219,20, referente ao Imposto de Renda. Ao fazer a declaração de ajuste anual, aplicando as deduções com base na tabela desatualizada, os cálculos indicam que o imposto devido seria de apenas R$ 169,25, restando, portanto, R$ 1.049,95 para ser devolvido.

Caso os cálculos fosses feitos pela tabela já corrigida pelos 17,5%, esse contribuinte estaria isento e teria o direito de receber a restituição integral dos R$ 1.219,20 que teve retido na fonte. Nos demais casos, os contribuintes não ficariam isentos, mas teriam direito a uma restituição maior.


FHC vê fim do 'Estado de mal-estar social'
Mudanças, afirma presidente, garantem o início de um Estado mais eficaz

BRASÍLIA - O presidente Fernando Henrique Cardoso disse ontem que o Brasil atravessa um momento de transição. "Estamos saindo de um Estado, como eu chamo, do mal-estar social, um Estado da perpetuação da injustiça e da enganação, porque a inflação permitia fingir que se davam aumentos, para um Estado que já começa a ter, pelo menos, os fundamentos de um Estado de bem-estar social", afirmou, ao defender a continuidade das reformas empreendidas por seu governo.
"Estamos recriando o Estado. Não para termos o Estado mínimo, que isso não tem sentido, nem muito menos um Estado fraco", disse Fernando Henrique, ao sancionar a lei que facilita o requerimento de aposentadoria para trabalhadores. "É para não termos um Estado mamute, que é grande e um pouco desajeitado, que não funciona." O presidente citou a reforma da Previdência, que admite ter ficado aquém do desejado. Segundo ele, a reforma permitiu melhorar os serviços e a abrangência do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), apesar de, para a opinião pública, ter sobressaído a idéia de que o objetivo era tirar direitos da população .

Fernando Henrique destacou que as reformas são uma exigência do mundo moderno, que requer a adaptação do Estado. "Nunca se termina de reformar.
Não se deve terminar. É preciso continuar reformando. Mais reforma, mais avanço, mais mudança", pediu FHC durante a solenidade, que contou apenas com a presença de técnicos do governo, entre eles o ministro da Previdência, Roberto Brant.
O presidente citou os avanços da chamada rede de proteção social, conjunto de programas assistenciais ou de transferência direta de renda coordenados pelo governo federal, como o Bolsa-Escola e o Bolsa-Alimentação. E falou sobre alguns dos objetivos a serem perseguidos pelo País: "O ideal é que possamos ir construindo, portanto, um verdadeiro Estado de bem-estar social, que ainda não temos. O ideal será o dia em que toda a pessoa desta sociedade tiver direito a essa rede, acesso a essa rede."

O sistema democrático e a estabilidade econômica foram apontados como pressupostos básicos dos avanços sociais e institucionais. "Temos um sistema institucionalizado de democracia que está passando da fase, simplesmente - o que já era tão importante - de um conjunto de regras, inclusive de regras eleitorais, para ser, principalmente agora, um modo de vida que permite justamente a inclusão, que é o acesso e permite que as diversas camadas da sociedade sejam, efetivamente, atendidas", disse.


Estudo tucano sugere mudanças na economia
A redução dos juros e uma minidesvalorização do real já são discutidas entre os tucanos como parte da possível política macroeconômica para 2003, em caso de vitória nas eleições. Os temas são tratados no documento preparado pelo ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira e pelo ex-secretário Yoshiaki Nakano. Os economistas, ambos do PSDB, criticam a atual política do governo e sugerem mudanças para diminuição do déficit público. O estudo servirá como base, ao lado de outros, para a elaboração da proposta econômica oficial do candidato tucano.
O texto, intitulado Uma Estratégia de Desenvolvimento com Estabilidade, foi concebido a pedido do presidente nacional do PSDB, deputado José Aníbal (SP), e está nas mãos dos líderes do partido e do possível candidato tucano à Presidência, ministro José Serra.

O documento alerta para o aumento constante da dívida externa. "O endividadamento externo está chegando no seu limite. (...) Em poucos anos, o crescimento explosivo da dívida externa conduzirá (o País) a drásticas reduções no consumo e no investimento."
Propõe a implantação de uma política ativa de exportações, o que ampliaria a capacidade produtiva, expandindo o mercado doméstico. Assim, não seriam necesários juros tão altos para trazer dólares ao País. "Os problemas são juros altos e câmbio ligeiramente valorizado", diz Bresser, que sugere câmbio flutuante do dólar próximo a R$ 3 e redução de até 40% da taxa de juros.

"Não pretendo que seja a proposta de Serra, mas poderá ajudá-lo a pensar", diz o ex-ministro. Trata-se do segundo documento tucano sobre a economia do País. O primeiro, elaborado no ano passado pelo ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, também defendia o crescimento econômico com estabilidade monetária.
O ministro da Fazenda, Pedro Malan, reagiu à propostade Bresser e Nakano.
Malan duvida que o texto apresentado solucione a situação do País.

"Infelizmente não é assim no mundo real, como sabem ou deveriam saber economistas experimentados", argumentou, em entrevista ontem ao programa Bom Dia Brasil, da Globo.
Aníbal não demonstrou preocupação com as queixas do ministro. Ele disse que o estudo foi pedido para especialistas tucanos de todas as áreas e não é oficial. Servirá de base, fornecendo subsídios a candidatos tucanos nas eleições. "O documento contém críticas, mas não propõe nenhuma ruptura com o governo", explicou Aníbal. Após a chegada de todas as propostas, o PSDB montará uma equipe para oficializá-las.


PSDB reage e tenta conciliar Tasso e Serra
Temendo dissidência, Virgílio pede 'casamento político' e cúpula articula campanha mais ousada

BRASÍLIA - A possibilidade de abertura de uma dissidência no PSDB, liderada pelo governador do Ceará, Tasso Jereissati, em favor da candidatura da governadora do Maranhão, Roseana Sarney (PFL), levou ontem o presidente Fernando Henrique Cardoso e a cúpula tucana a traçarem um plano mais ousado de campanha. Nesse clima de pressão e reação, desembarcou ontem em Brasília, em pleno recesso, o presidente do PSDB, deputado José Aníbal, que teve duas reuniões com o ministro e pré-candidato tucano à Presidência, José Serra.

Aníbal e Serra estiveram com Fernando Henrique, que assumiu a condução do processo. Enquanto isso, o secretário-geral da Presidência, Arthur Virgílio Neto, da ala que defendia a candidatura Tasso, sugeriu que o PSDB se empenhe por um "casamento político" entre o ministro e o governador. "Mais do que físico, é preciso de um encontro de idéias", disse, assumindo a tarefa de solucionar os desentendimentos.

Serra estava resistindo às pressões de seu próprio partido, mas o avanço da candidatura de Roseana o obrigou a mudar de planos. O risco da dissidência poderia ser desastroso para o partido e Tasso não tem feito segredo de seus encontros com a pefelista. As conversas têm sido longas, como a ocorrida no dia 28 de dezembro, em que esteve por mais de seis horas no Palácio dos Leões, sede do governo do Maranhão.

Ontem, num sinal claro de distanciamento do Palácio do Planalto, Tasso recusou-se a comparecer à reunião dos governadores do Nordeste com o presidente Fernando Henrique. Mandou a clássica carta de desculpas, por fax, explicando que tinha uma reunião com todos os seus secretários e não poderia viajar para Brasília.

Reação - Ontem, o líder do PSDB na Câmara, Jutahy Júnior (BA), repetiu que Serra deve anunciar sua candidatura nos próximos dias, intenção tornada pública quando o ministro retornou de viagem à França, onde passou as festas de fim de ano. De acordo com o presidente nacional do partido, deputado José Aníbal (SP), Serra não vai esperar até o dia 31.
O ministro deve ficar no cargo por mais uma semana, após o anúncio de que é pré-candidato à Presidência. É certo, porém, que no dia 19 de fevereiro ele reassumirá a cadeira de senador. Antes de viajar, Serra teve uma conversa com Aníbal e concordou que seria necessário antecipar o anúncio. Mas pediu que nada a respeito fosse divulgado antes deste mês. "Senão, não faremos mais nada nem teremos condição de festejar a passagem de ano", disse.

Serra tem dito que a situação do País hoje está muito melhor do que imaginava há poucos meses. Ele temia, por exemplo, que a alta do dólar afetasse o custo de vida e atrapalhasse a campanha. Mas agora, com o dólar pelo menos estabilizado em relação ao real, afirma que ficou bem mais fácil enfrentar uma disputa na qual não ainda não conseguiu destaque na preferência dos eleitores.

Apesar de tudo levar a crer que a escolha de Serra vai ser tranqüila dentro do partido, o PSDB não consegue se entender na escolha do marqueteiro que cuidará da campanha. Fernando Henrique quer o publicitário Nizan Guanaes, de quem é amigo, que hoje cuida da imagem da governadora Roseana.

O ministro - que no final decidirá quem será o marqueteiro e tem dificuldades de convivência com Nizan desde a campanha para a prefeitura de São Paulo, em 1996 - tem preferências por Nelson Biondi e, às vezes, recorre a Paulo de Tarso, que presta serviços ao PSDB. A luta por Nizan tem provocado desentendimentos, ainda, com o PFL.


Jungmann sai candidato e complica planos de Itamar
BRASÍLIA - O ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, anunciou ontem que disputará as prévias do PMDB que escolherão o candidato do partido na corrida presiden cial no dia 17 de março.
Ele entra no jogo sucessório sob o patrocínio do presidente Fernando Henrique Cardoso, do governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos (PMDB), e com a simpatia de setores do PSDB ligados ao ministro da Saúde, José Serra.

Jungmann disputará a preferência dos peemedebistas com o governador de Minas, Itamar Franco - que se recusou a comentar o anúncio -, e com o senador Pedro Simon (RS), de perfil de oposição.
"A candidatura do Jungmann é boa para o governo porque vai alavancar o debate ideológico na campanha e será mais alguém para trombetear o que o governo tem feito", disse o secretário-geral da Presidência, Arthur Virgílio. Um tucano próximo de Serra garante que Jungmann irá trabalhar a parceria do candidato do PSDB com setores do PMDB.

Para Jungmann, está em jogo uma mudança de rumo, com o controle da hegemonia das forças que participam do governo passando às mãos do PFL. "Nada de pessoal contra a candidatura da Roseana Sarney, mas entro na disputa em defesa da tese de que o controle da coalizão deve ficar com as forças de centro-esquerda para que o próximo governo possa avançar."
Enquanto o líder do PMDB na Câmara, Geddel Vieira Lima (BA), classificava a candidatura como uma aventura, o líder no Senado, Renan Calheiros (AL), disse que, do ponto de vista eleitoral, seu nome não passava de um "minifúndio improdutivo".


PF abre inquérito para investigar FonteCindam
RIO - A Polícia Federal abriu ontem inquérito para apurar indícios de supostos crimes contra ex-dirigentes do Banco FonteCindam, acusado, com o Banco Marka, de envolvimento em irregularidades na crise da desvalorização do real, em janeiro de 1999. A PF vai investigar uma suposta remessa ilegal de dinheiro para o exterior e problemas correlatos. Indícios do desvio, de quase R$ 52 milhões, foram detectados pelo Banco Central.


Alckmin define nome de substituto de Angarita
O secretário de Governo e Gestão Estratégica, Antonio Angarita, pediu ontem ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, para sair do cargo no dia 22, data em que mais sete secretários deixarão suas pastas. O substituto de Angarita será o atual secretário-adjunto, Dalmo Nogueira, que está no governo desde 1995. Angarita integrará um grupo de trabalho que vai criar o curso de direito na Fundação Getúlio Vargas


Artigos

Alternativa pós-capitalista
FREI BETTO

Os participantes do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, que estarão reunidos de 31 de janeiro a 5 de fevereiro, acreditam que "um outro mundo é possível". Por que outro, se já temos este - capitalista, neoliberal e globocolonizador? Este é o melhor dos mundos. Exceto para dois terços da população mundial que vivem abaixo da linha da pobreza, segundo o Banco Mundial.

Habitam o nosso planeta, hoje, 6,1 bilhões de pessoas. Só 2,1 bilhões desfrutam condições dignas de vida. Os outros 4 bilhões padecem: 2,8 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza, o que significa que não dispõem de renda mensal equivalente a mais de US$ 60. E 1,2 bilhão vive abaixo da linha da miséria, porque possui renda mensal inferior ao equivalente a US$ 30.

A economia mundial está em desaceleração. Não vai crescer mais de 2,4% este ano, afirma o FMI. Nesse mar de pobreza, é ilusão esperar uma tábua de salvação neoliberal que venha das ilhas de opulência. Os muros dos campos de concentração da renda são altos demais para permitir a entrada da multidão de excluídos. Mas são demasiadamente frágeis para impedir o risco de implosão. Há que buscar uma alternativa ao atual modelo econômico, antes que o desespero fomente ainda mais o terrorismo. E essa alternativa passa, necessariamente, por mudança de valores, e não apenas de mecanismos econômicos.

É, no mínimo, curioso constatar como a economia - que se pretende científica e laica - utiliza categorias religiosas, como a "mão invisível" de Adam Smith. É o caso do mercado, que parece ter sentimentos humanos, segundo os comentários de quem considera que, diante de tal fato, ele "reagiu bem" ou "se retraiu". A ele se pode aplicar, na ótica neoliberal, o axioma dogmático: fora do mercado não há salvação.

Talvez se deva a esse fetiche religioso o fato de a maioria dos shopping centers ter linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas. E não se pode entrar ali senão com roupa de missa de domingo, percorrendo-se os amplos claustros ao som do gregoriano pós-moderno, para contemplar capelas que exibem veneráveis objetos de consumo, acolitados por belíssimas sacerdotisas. Sente-se no céu quem pode comprar à vista; no purgatório, quem paga a prazo ou entra no cheque especial; no inferno, quem se sabe excluído do mercado.

Se o mundo roda em torno da economia e a economia gira em torno do mercado, isso significa que este, revestido de caráter idolátrico, paira acima dos direitos das pessoas e dos recursos da Terra. Apresenta-se como um bem absoluto. Decide a vida e a morte da humanidade. Assim, os fins - vida e felicidade humanas - ficam subordinados à acumulação privada das riquezas.

Não importa que a riqueza de uns poucos signifique a pobreza de muitos. O paradigma do mercado são os cifrões de contas bancárias, e não a dignidade das pessoas.
Há, pois, uma inversão de valores. Os produtos passam a ser sujeitos e as pessoas, objetos. É o produto que imprime valor a quem o possui. Assim, os despossuídos carecem de valor e, descartados do jogo econômico, são atraídos a reverenciar a pujança dos privilegiados.

A ostentação dos miliardários funciona como um ícone em que se projetam aqueles que, excluídos do festim, ao menos saboreiam virtualmente as migalhas psicológicas caídas da mesa dos abastados. Quem sabe, um dia, eu poderei ser um deles - sonho que facilmente se transforma em revolta.
O princípio supremo da cidadania mundial é o direito de todos à vida e, como enfatiza Jesus, "vida em plenitude" (João 10, 10). Como tornar isso viável?

Qualquer alternativa deverá fugir dos extremos que puniram parcela significativa da humanidade no século 20: o livre mercado e a planificação centralizada. Nem um nem outro subordina a economia aos direitos do cidadão.
O mercado afunila oportunidades, concentrando a riqueza em mãos de poucos. A planificação centralizada, embora exercida em nome do povo, de fato o exclui das decisões. O mercado agrava o estado de injustiça. A planificação centralizada restringe o exercício da liberdade.

Para conciliar mercado e planificação, urge que a lógica econômica abandone o paradigma da acumulação privada para recuperar o do bem comum, de modo que a cidadania se sobreponha ao consumo e os direitos sociais da maioria, aos privilégios ostentatórios da minoria.

A recente conjuntura da Argentina demonstrou que a paciência do povo tem limites. Nem a decretação do estado de sítio logrou conter a revolta popular. Não adianta o FMI insistir na pretensão de saber o que é melhor para a América Latina. Os índices sociais comprovam que seu receituário está longe de ser o melhor para a maioria da população. Hoje, há 221 milhões de excluídos em nosso continente.

O Fórum Social Mundial é uma luz que se acende no fim do túnel, resgatando a esperança de tantos militantes da utopia, que se envergonham de conviver com 4 bilhões de seres humanos vítimas de um sistema que imprime ao pão valor de troca, como mercadoria, e não valor de uso, como bem indispensável à nossa sobrevivência biológica


Colunistas

RACHEL DE QUEIROZ

A fábula do homem e o seu garrafão
Pelo interior do Brasil é comum a presença de um cara que é chamado de "propagandista". Aqui pelo Estado do Rio, antes da camelotagem desenfreada ele era chamado também de "camelô".

Usava roupa vistosa, por exemplo: paletó xadrez vermelho e verde -, calças bois de rose, gravata azul-bebê. Em geral fazia propaganda de remédios que curam tudo, todos os males do mundo, e até maus pensamentos.
Ouvi que vendia xarope contra sífilis e, referindo-se às doenças "sexualmente transmissíveis", falava poeticamente em "mal de amores".

E foi a propósito de propagandistas que recordávamos ontem, minha irmã e eu, um caso que nosso pai nos contava garantindo que era verdadeiro.
Sucedeu numa cidade cujo nome ele não dava, para "evitar constrangimentos". O sujeito já desceu do trem vestido a caráter: terno de listras coloridas, sapato pampa, camisa roxo-batata, gravata amarela.
Na pensão registrou-se, levou a mala à sua vaga no quarto, e portando um grande rolo de papel debaixo do braço, pediu permissão à dona da casa para expor à sua porta um cartaz, que dizia o seguinte: "HOJE ÀS 16 HORAS, VENHAM VER O HOMEM QUE ENTRA NO GARRAFÃO!"

Dali foi à igreja à procura do vigário, solicitando à Sua Reverência licença para dar uma demonstração estupefaciente, tendo como palco a escadaria da Matriz. O padre ficou meio espantado quando leu o cartaz, mas acedeu.Também queria ver aquilo. Os outros cartazes foram espalhados pelas ruas, saturando todo o lugarejo.
Claro que a curiosidade foi enorme. Fizeram-se apostas, teve gente que rasgava nota de cem em duas, que é a maneira mais popular de registrar apostas sem papel escrito. Quem ganhar vai receber do outro a sua metade da nota.

Logo depois do almoço o nosso homem foi à farmácia, onde negociou o aluguel de um garrafão, de vidro, desses que transportam água destilada. Da pensão, conseguiu ainda uma mesinha, e assim, pontualmente, às 4 da tarde, lá estava ele com seus trajos multicores e os seus apetrechos, pronto para a "demonstração".
A praça pululava de gente. Faziam-se as mais ousadas conjecturas: "O garrafão é de borracha transparente. No que o homem for entrando ele estica, até caber." Outros acreditavam em hipnotismo. "Ele hipnotiza todo mundo, e aí a gente acredita que ele entrou em qualquer coisa." Outros achavam que era só um truque - "Não sei como é, mas tem de ser um truque."

E, assim, ele começou a falar sob aplausos e assobios. Delicadamente pediu silêncio à multidão: ia começar o espetáculo.
Tirou o casaco, tirou a gravata, pôs no chão o chapéu de palhinha, mostrou as mãos vazias. Então, lentamente, lentamente, tentou enfiar a mão direita pelo gargalo do garrafão. Não cabia, claro. Estirou o polegar, introduziu o dedo no gargalo - entrou! Mas parou na junta. Ele suspirava, mas, com a mão esquerda, tentou de novo: não entrou. Descalçou os sapatos, experimentou o pé - quá! Não entrou mesmo - era ainda maior que a mão. Tentou o nariz, até que ralou e minou sangue. Não entrou também.

E diante do silêncio atônito da multidão, o homem abriu os braços de pura impotência e constatou desolado:
- Realmente, foi impossível. Mas vocês bem que viram: EU TENTEI!


Editorial

'Discussão' entre amigos

O secretário da Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa, afirmou, em carta distribuída à imprensa, que a "preocupação" revelada por diversos setores da sociedade com a morte do seqüestrador Fernando Dutra Pinto deveria "ser regra para com todos os presos que tenham direitos violados". O que ninguém contradita. Só que, quando a carta foi distribuída, alguns carcereiros do Cadeião de Pinheiros já tinham agredido a socos e pontapés 15 presos, o que demonstra que, mais que tentar determinar como os meios de comunicação devem reagir às arbitrariedades que são cometidas nos presídios, o secretário deveria tomar providências para domesticar funcionários que cuidam de presos - agentes penitenciários ou carcereiros. A surra foi descrita pela repórter Vanessa de Sevo, da Rádio CBN, que a presenciou do helicóptero da emissora que sobrevoava o presídio. Ela narrou, por longos minutos, a agressão que uma dezena de carcereiros praticou contra 15 presos, seminus, no pátio do complexo carcerário. Outros guardas assistiam à façanha dos destemidos colegas. A presença do helicóptero só perturbou os carcereiros, que pareciam estar cumprindo uma rotina, quando eles foram avisados de que a cena da surra estava sendo narrada ao vivo para os ouvintes da emissora.

Os presos agredidos aguardavam transferência para presídios do interior do Estado. Segundo o diretor do Departamento de Polícia Judiciária da capital, Gérson Carvalho, os carcereiros negaram ter cometido a agressão. Não foram feitos exames de corpo de delito nos presos, nem eles prestaram depoimentos porque, quando Carvalho compareceu ao Cadeião de Pinheiros, os detentos surrados já tinham sido transferidos. Ora, como as vítimas têm endereço fixo e conhecido, certamente as autoridades não terão dificuldades em ouvi-las. A menos, é claro, que prevaleça a versão dos carcereiros de que estavam fazendo uma "revista" nas celas dos presos quando foram vistos pela repórter. Daniela Cecília, integrante da Pastoral Carcerária, tem outra versão para o fato. Segundo ela, a repórter teria presenciado o cumprimento de uma sinistra tradição conhecida como "salve": detentos que serão transferidos são surrados a título de "despedida".

Se presos são agredidos simplesmente porque serão transferidos, fica possível entender melhor por que o secretário Nagashi Furukawa - que faz questão de lembrar sua condição de juiz de Direito - não considerou "coisa relevante" a surra que os agentes penitenciários aplicaram em Fernando Dutra Pinto. Afinal, Fernando não cumprimentara "de maneira adequada" o chefe do pavilhão e dois agentes de segurança... Em um sistema em que vigora a regra do "salve" e ninguém está muito preocupado se a imprensa assiste ao cumprimento dessa "tradição", é compreensível que um exame de corpo de delito que constate equimoses no antebraço, coxa direita, axila direita e ombro, além de outras escoriações em um preso,+ seja considerado pela autoridade máxima da Administração Penitenciária uma "coisa não relevante".

Não será surpreendente se, nos próximos dias, surgirem depoimentos dos 15 presos agredidos no Cadeião de Pinheiros, esclarecendo que eles tiveram apenas uma "discussão" com seus carcereiros, com os quais "fizeram as pazes" logo depois, ainda antes da transferência, não sendo necessária, portanto, nenhuma investigação. Se foi essa a explicação dada pelo secretário Furukawa para não investigar a surra que Dutra levou três semanas antes de sua morte, por que não repeti-la num caso mais banal, que não resultou na morte de ninguém?


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01/09/2002


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