Agricultura resgata a tradição da produção da uva e do vinho



Iniciativa é fruto do apelo das prefeituras da região paulista

“Eu já nasci no meio da uva”, conta o produtor Antonio José Benvegnu, cujo sítio localiza-se em Louveira, quase na divisa com Vinhedo. Descendente de imigrantes italianos, Zé da Pinta, como é mais conhecido, herdou do pai os três hectares de terra do Sítio do Pouso e a tradição do cultivo da fruta. Foi isso o que ocorreu também com boa parte da população de agricultores dos dois municípios e ainda de Jundiaí, São Roque, São Miguel Arcanjo, Jarinu e Valinhos.

“Só se via uva por aqui”, afirma ele, que aos 62 anos não hesitou em ingressar numa nova fase como viticultor. Começou a plantar variedades da espécie Vitis vinifera, ou seja, próprias para a produção de vinhos finos. Assim, em setembro de 2006, seu vinhedo formado há anos pelas tradicionais uvas de mesa, predominantemente as niagaras branca e rosada, além da bordô e da isabel, passou a dividir espaço com videiras de Syrah e Carbenet Sauvignon.

A iniciativa de Zé da Pinta é uma pequena ponta do esforço coletivo que está em curso na região para resgatar a tradição de produção de uva e de vinho no Estado de São Paulo. Esse é o objetivo do Projeto Revitalização da Cadeia Vitivinícola Paulista: Sustentabilidade, Governança e Competitividade, que tem o financiamento do Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Ele organiza e planifica o trabalho de diversos parceiros, tendo à frente a Secretaria da Agricultura do Estado, com a atuação dos institutos de Economia Agrícola (IEA), de Tecnologia de Alimentos (Ital) e o Agronômico de Campinas (IAC), além da Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (Cati) e da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta).

A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a Unicamp e a prefeitura de São Roque também compõem o grupo de trabalho, que procura colocar o Estado no circuito dos produtores de vinhos finos do País e, se possível, na liderança do setor. Coordenadora do projeto, a pesquisadora Adriana Verdi, do IEA, explica que houve forte declínio do vinho paulista a partir dos anos 1970.

Tal empobrecimento deveu-se a vários fatores, como a concorrência da Região Sul (que além de possuir clima mais propício para o cultivo articulou o desenvolvimento da cadeia produtiva), a grande especulação imobiliária na principal região produtora para a construção de condomínios de alto padrão, e a falta de investimentos. “Os agricultores ficaram desmotivados com a atividade e encontraram outra alternativa: a venda das terras, cujo valor aumentou bastante”, lembra.Nicho de mercado – No início do século passado, a vitivinicultura brasileira se desenvolveu especificamente na região com a chegada de imigrantes, principalmente os italianos, que substituíram o cultivo de café pelo de uvas. Como as variedades que se adaptaram ao clima foram as das uvas de mesa (americanas), a bebida doce popularizou-se no País. “Essas uvas são indicadas para consumo in natura porque sua fermentação não alcança, sem a adição de açúcar, a quantidade necessária de álcool para a fabricação de vinho”, informa o pesquisador do IAC José Luiz Hernandes,  Em contrapartida, a comunidade italiana não desistiu de manter a tradição do vinho e se adaptou ao adoçado. “Só no Brasil há consumo dele”, afirma Hernandes.

Foi com esse produto que o Estado se tornou o maior consumidor da bebida em território brasileiro e tem apresentado, nos últimos anos, crescimento da demanda para a bebida na sua versão mais elaborada, o vinho fino. “É um nicho de mercado que passou a ter importância e depende da agregação de tecnologia ao cultivo para se desenvolver em São Paulo”, avalia Hernandes.  Mesmo antes do início do projeto, já acompanhava os produtores em novas experiências, assim como tem feito com Zé da Pinta. Ensinou ao agricultor a técnica da dupla poda da videira, indicada para evitar que a uva seja colhida no começo do ano, época de chuva abundante. Esse é um fator prejudicial à qualidade da fruta, especialmente das espécies destinadas a vinhos finos. “O clima ideal para a colheita é o de dias quentes e secos, com noites frias, típicos dos meses de maio e junho”, ensina o técnico do IAC.

Segundo o especialista, essa combinação de fatores propicia uma fotossíntese mais eficiente da planta para a concentração, na fruta, dos elementos ideais para a fabricação de vinho. Espumantes e suaves – Zé da Pinta diz seguir à risca as orientações, que, por sinal, destoam das que recebia do pai. “O jeito da produção mudou, o conhecimento aumentou e aqui a coisa tinha ficado como era antigamente”, conta. Agora, presta atenção em vários detalhes da videira que antes não importavam. Para agir a tempo no caso das doenças que atingem mais facilmente as variedades finas, bastante vulneráveis, repara na roseira plantada estrategicamente ao lado das uvas para acusar o problema, que sempre chega primeiro na flor. “Se percebo alguma doença na rosa, corro para pulverizá-la a uva”, diz.

Contudo, também buscou a união com outros produtores para se organizar. Ingressou na Avivi, a Associação dos Vitivinicultores de Vinhedo, e recebeu da prefeitura as mudas, que lhe permitiram plantar 150 pés de Cabernet Sauvignon e 850 de Syrah. A safra para vinhos nobres está prevista para ser colhida no fim de junho, mas o agricultor ainda não é capaz de calcular o resultado que terá.

No verão, foram colhidos, em média, 400 quilos de uva dessas plantas, equivalentes à primeira poda. Imagina que agora renderá mais. Esta leva, embora não estivesse com maturação adequada ainda para a bebida na sua forma mais tradicional, foi vendida para dar origem a espumantes e suaves, os quais estão em processo de produção. Só isso já significou um ganho maior com o cultivo, pois, enquanto fatura R$ 2,00 por quilo da variedade rústica, a novidade lhe rende o dobro. “Achei muito bom”, afirma, com a esperança renovada.União que dá fôlego – Perto dali, mas já em Vinhedo, o vitivinicultor (produtor de uva e vinho) Carlos Ferragut faz história com seu vinho de mesa, detentor de vários prêmios pela qualidade. O mais recente recebeu em novembro último, no 1º Painel do Vinho Paulista, quando o seu tinto bordô levou o primeiro lugar entre os vinhos comuns. Também vende por ano aproximadamente dez mil garrafas da bebida. Até o momento, mil de vinho fino, só na sua propriedade.

Vem aumentando a produção deste último, conforme cresce o interesse dos compradores. Este ano pretende engarrafar 2 mil litros de castas nobres. Diz estar satisfeito com os resultados e orgulhoso de sua adega, embora lamente ter de comprar uvas do Sul. “A produção daqui não dá conta”, constata Ferragut, que vende parte do que cultiva para o consumo in natura. Ele conta com a iniciativa de revitalização para poder usar no futuro apenas matéria-prima local. “Vai ser muito melhor quando isso for possível”, considera. Por isso, também é associado da Avivi e aderiu ao movimento para o desenvolvimento da atividade. Até plantou variedades finas no seu parreiral – 300 pés das variedades Cabernet e Merlot.

Ferragut começou a produzir a bebida comercialmente em 1961, por conta. Antes disso, o pai fazia vinho apenas para consumo próprio. A nova atividade era uma tentativa de driblar as dificuldades com a agricultura. Aprendeu e aperfeiçoou sozinho, numa situação muitas vezes crítica. “Passamos muita dificuldade”, recorda. Mas foi com a ajuda do vinho que conseguiu criar os filhos e manter a posse da terra.

Os quatro herdeiros moram na propriedade, cada um em sua casa, e, embora tenham atividades próprias, ajudam na fabricação do vinho, processo exclusivamente familiar. Ricardo Ferragut, o mais entusiasta, informa que esse é um dos segredos do êxito do trabalho, além do aperfeiçoamento constante.Novas tecnologias – A Ferragut é considerada vinícola de produção artesanal, embora use recursos tecnológicos já há algum tempo. Incorporou ao processo de vinificação o uso da desengaçadeira-esmagadeira (para separação do cabinho e esmagamento da uva), engarrafadeira, bomba para trasfega (efetua a transferência do líquido de uma vasilha para outra, limpando-o do sedimento), tonéis de inox e, principalmente, a análise química periódica do produto.

“Esse é nosso maior diferencial”, conta Ricardo. Cada lote de vinho passa por quatro análises ao longo de um ano, para avaliar quais itens garantem a qualidade e quais os que podem ser corrigidos durante o processo. “A chegada da química à região foi fundamental. Seu trabalho é totalmente acessível financeiramente e, além disso, ela nos orienta, sem interferir no nosso modo de trabalhar”, afirma Ricardo.

A profissional em questão é a química e bióloga Jacira Tosin de Lima, de Jundiaí, que há mais de 30 anos trabalha com vinhos. Em 21 deles, prestou serviços a uma indústria do setor, até que, aposentada, resolveu abrir sua própria empresa para prestar o serviço de consultoria técnica aos pequenos produtores. “Percebi que eles queriam melhorar a qualidade do seu produto, mas não tinham noção de como fazer isso. Montei a empresa e passei a visitá-los, para explicar a importância da análise química no processo de vinificação”, conta.

Hoje reúne em seu cadastro 350 produtores, também incentivados a associarem-se em prol da profissionalização. Com esse intuito, montou com 21 deles e 14 adegas a Cooperativa Agrícola dos Produtores de Vinho de Jundiaí (AVA), para tornar a comercialização dos produtos viável. “A lei não reconhece esses produtores artesanais, alguns com adegas de 120 anos. Temos de lutar contra essa condição de informalidade”, lamenta. Turismo enogastronômico – A importância do diferencial proporcionado pelo trabalho da química e bióloga é ressaltada também por outros membros-integrantes da cadeia vitivinícola regional. “Na verdade, só consigo produzir um bom vinho por causa dessas pessoas empenhadas em fazer a tradição valer e renascer remodelada”, diz Ricardo Azzolin, um dos donos da cantina e também adega que leva o nome da família. Ele se refere a Hernandez, Jacira e outros protagonistas do Projeto de Revitalização. “Eles nos orientaram e mostraram novo horizonte”, afirma.

Azzolin aposta no chamado turismo enogastronômico como recurso para um desenvolvimento regional aliado à preservação. “Mas, para isso, precisamos fazer produtos de qualidade”, alerta.

Descendente de italianos, Azzolin, de 31 anos, faz da cultura dos imigrantes um atrativo à parte de sua cantina. Por isso, em 1982 pensou em voltar a produzir vinho, como o seu nonno (avô) fazia. Nessa altura, a família do jovem não possuía mais o sítio em que ele cresceu e viu o avô, muitas vezes, fazer a bebida para a família. Isso não o intimidou. Investiu um bom dinheiro na construção da adega em que recebe os turistas hoje em dia e na fabricação da bebida, feita inicialmente com as receitas dos mais velhos. “Ia açúcar, muito açúcar. E então borbulhava”, diverte-se.

O panorama só mudou depois que passou a contar com as orientações técnicas. “Não haveria evolução sem acesso aos métodos”, constata o vinicultor. Agora vende na adega e no restaurante perto de 10 mil litros por ano entre vinho e suco de uva feitos lá, o que é considerado por ele um atrativo fundamental. Seu próximo sonho é ter novamente um sítio e plantar as uvas de seus vinhos finos. “Só com união e apoio vamos chegar lá. Assim vamos fazer história no Estado de São Paulo”, acredita.Syrah de uva paulista – Em Louveira, outro descendente de imigrantes italianos, Daniel Micheletto, mostra orgulhoso a área experimental que criou há dois anos com 300 pés de uvas para vinho fino. Investiu R$ 15 mil no projeto, quantia vultosa para os padrões do Sítio Santa Rita, que tem como tradição o cultivo de niagaras para mesa. Diz que só apostou nisso porque há mercado consumidor, visto que sua adega vende tudo o que produz.

No seu parreiral de teste com uvas Syrah, foram aplicadas várias técnicas recomendadas pelo IAC, como o sistema de cultivo em “Y”, para a planta ficar mais alta, o que a deixa mais protegida e espalha melhor os cachos. Colocou também proteção contra granizo, que diz cair muito por lá. “Não abro mão também das análises da Jacira”, diz Micheletto, de 31 anos, que quer conquistar cada vez mais qualidade.

Sua idéia é ter uma pequena produção de vinho aliada ao turismo. Em 2007 engarrafou 4 mil litros da bebida, esse ano já foram 6 mil e pretende começar no meio de junho a processar as uvas do projeto-piloto para fazer vinho fino só com matéria-prima própria. Segundo ele, se der tudo certo, em agosto de 2009 seus Syrah de uva paulista estarão à venda. Contudo, prefere não precisar a quantidade.

Segunda fase:

Projeto entra na segunda fase

O Projeto Revitalização da Cadeia Vitivinícola Paulista: Sustentabilidade, Governança e Competitividade, iniciado em fevereiro de 2007, envolve efetivamente quatro municípios, cujos dados de produção e consumo de uva para a indústria se destacaram: Jarinu, Jundiaí, São Roque e São Miguel Arcanjo.

A iniciativa, que entra agora na segunda fase de três programas, tem o intuito de funcionar como piloto para futura aplicação nas demais cidades com tradição na atividade. Após os procedimentos da primeira, em que foram realizados workshops para o envolvimento coletivo, iniciada a movimentação para a revitalização e definidos como os três principais agentes da cadeia os viticultores, os vinicultores e os viveiristas (produtores de mudas), é chegada a hora de sair a campo: serão aplicados questionários aos membros identificados para a realização de um diagnóstico da situação.

“A partir deles poderemos desenhar a cadeia como um todo, criar um banco de dados, além de chegar aos outros participantes desse mercado, como os produtores de rolha e garrafa, entre outros”, explica a coordenadora Adriana Verdi. Compõem ainda os objetivos do projeto a articulação entre os agentes, para que cada um saiba da demanda do outro, e o conhecimento das vias de comercialização do produto.

Além disso, a etapa compreende o desenvolvimento de subprojetos: ao IAC cabe a análise do banco de germoplasma (unidade conservadora de material genético de uso imediato ou com potencial de uso futuro) para o desenvolvimento de novas variedades de uvas. O Ital, em conjunto com a Unicamp, cuidará da classificação dos vinhos produzidos, por meio de análises química e sensorial baseadas nas normas do Ministério da Agricultura.

Esse trabalho segue até fevereiro de 2010, quando será a hora da implementação das políticas públicas traçadas a partir dos levantamentos feitos. A Fapesp financiou a primeira fase com R$ 50 mil e investe R$ 200 mil nesta segunda etapa.

Indústria na torcida

Embora não dependam exclusivamente do desenvolvimento regional para o andamento do seu negócio, representantes da indústria paulista de vinho torcem pela revitalização. O diretor da Vinícola Goes, por exemplo, considera essencial a aglutinação da cadeia paulista para a melhora do setor como um todo. “Se a produção e o turismo rural aliados ao vinho crescerem no Estado, estaremos avançando como país no setor, pois é aqui que está o maior mercado consumidor”, explica.

Criada há 67 anos em São Roque, produz dez milhões de litros da bebida por ano: 85% de vinhos de mesa e 15% de vinhos finos. Mantém, para tal, uma unidade de produção no Rio Grande do Sul desde 1989, criada para dar conta da demanda, principalmente dos vinhos finos. Segundo o diretor da empresa, o hábito de degustação dessa bebida no País tem se disseminado pouco a pouco. E, nesse nicho, a indústria vinícola estrangeira tem levado a melhor. “Como o consumo está concentrado no Estado, a produção de vinhos com uvas locais pode significar um grande diferencial de mercado e nos fazer vencer a concorrência”, considera.

Raílson Vieira, superintendente da Vitivinícola Cereser, de Jundiaí, aplaude o desenvolvimento de pesquisas para a criação de novas variedades, formas de cultivo e manejo. “Gera uma dinâmica muito positiva para o avanço da região”, observa. Entende como fundamental a criação de condições para que os produtores continuem fixados lá. “São eles que estimulam a cultura do turismo e

05/28/2008


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