Para José Maranhão, direitos garantidos na Constituição aprimoram a diferença entre a civilização e a barbárie



Ao garantir os direitos individuais e coletivos, sociais e políticos, "a Constituição promoveu um extraordinário avanço na direção de tudo aquilo que diferencia a civilização da barbárie", avalia o senador José Maranhão (PMDB-PB). Em entrevista concedida por e mail à Agência Senado, o parlamentar lembrou que a Carta resgatou "o cidadão sistematicamente humilhado e diminuído pelo regime autoritário" para o Estado Democrático de Direito, tendo por isso merecido a alcunha de Constituição Cidadã, dada pelo deputado Ulysses Guimarães.

José Maranhão acrescentou que o país resolveu todas as suas crises políticas - incluindo o impeachment de um presidente da República - absolutamente dentro da legalidade. Para o senador, as 62 emendas já aprovadas ao texto não significam que a Carta tenha sido mal elaborada, mas refletem o fato de ela ser "o produto da circunstância do regime de transição, sem sangue (como nas revoluções armadas), porém negociado a partir de acordos". Essas emendas, para ele, se devem, por um lado, "à mudança de conjuntura e de paradigmas" e, por outro, "ao fato de a Carta ser minudente e programática, o que exigia, mesmo para alteração de temas não tipicamente constitucionais, a edição de uma emenda constitucional".

Agência Senado - A Constituinte é convocada pelo primeiro presidente civil depois de quase 30 anos de ditadura militar, em meio a um grande anseio pela redemocratização do país. A Carta correspondeu às expectativas?

José Maranhão - Entendo que do ponto de vista político, a Constituição de 1988 representou uma grande vitória. O país conseguiu fazer a transição de um regime autoritário para a democracia de forma suave, sem traumas. É admirável a força das instituições a partir daí. O Brasil passou os últimos vinte anos sem nenhuma ameaça de retorno ao autoritarismo, resolvendo todas as crises políticas - que incluíram, até mesmo, o impeachment de um presidente da República - absolutamente dentro da legalidade. Hoje, os poderes funcionam perfeitamente e de forma autônoma, sem maiores conflitos que não os que são, normalmente, esperados em uma sociedade democrática e plural. As Forças Armadas, de sua parte, permanecem, estritamente, em suas funções constitucionais, abstendo-se, totalmente, de participação política. A sociedade civil e os partidos políticos atuam sem amarras e a liberdade de expressão é plena.

Agência Senado - Por ter participado da Constituinte brasileira, o senhor se considera um protagonista da história recente do país?

José Maranhão - Indiscutivelmente, tendo em vista a importância da Assembléia Nacional Constituinte, todos os constituintes devem ser considerados protagonistas da história recente do país.

Agência Senado - Na Assembléia Constituinte, o senhor foi o 2º vice-presidente da Comissão da Organização do Estado (1987). O resultado do trabalho dessa comissão foi satisfatório? O senhor considera o Estado brasileiro bem organizado e distribuído?

José Maranhão - Não há dúvida de que a Constituição de 1988 fez um trabalho admirável do ponto de vista da organização das instituições no Brasil. Agora, é importante lembrar que a lei não é suficiente para resolver os problemas. Ela apenas fornece um arcabouço. A tarefa de organização do Estado, assim, vai depender da evolução da cultura política do país e de um longo aprendizado democrático. Trata-se de uma tarefa complexa e, na maior parte das vezes, não é indolor.

Agência Senado - A Constituição favoreceu o desenvolvimento regional? Quais tópicos sobre esse assunto o senhor destacaria?

José Maranhão - A Constituição de 1988 teve um papel fundamental na descentralização do país e no fortalecimento dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Trata-se de providência que foi muito importante para possibilitar o desenvolvimento regional. Ademais, vale lembrar que a Carta constitucionalizou os fundos regionais e estabeleceu suas fontes de financiamento. Esse procedimento tem sido fundamental para assegurar recursos permanentes para o desenvolvimento regional.

Agência Senado - O senhor recentemente presidiu a Comissão Mista do Orçamento. Não incluir o orçamento impositivo na Constituinte foi um erro?

José Maranhão - O debate em torno do tema do orçamento impositivo é extremamente importante. Entretanto, não podemos nos esquecer que, no momento em que a Constituição de 1988 foi aprovada, o país vivia um contexto de inflação muito elevada. Numa conjuntura como aquela, não havia como pensar em orçamento impositivo, uma vez que a inflação praticamente destruía a possibilidade de o orçamento ser um verdadeiro instrumento de definição de prioridades e de atuação do governo. Efetivamente, é somente agora, com a estabilização monetária, que podemos discutir seriamente o tema.

Agência Senado - Passados vinte anos da promulgação da Constituição, que dispositivo constitucional foi prejudicial ao país e não deveria jamais ter sido aprovado?

José Maranhão - Essa é uma questão que deve ser considerada em perspectiva. De fato, é muito fácil ser profeta do passado e hoje podemos afirmar que opções que os constituintes tomaram à época, como, por exemplo, o modelo de previdência social, trouxeram grandes dificuldades para o país. Entretanto, não se deve esquecer o contexto no qual a Constituição foi aprovada, que dificultava, tanto do ponto de vista técnico, como, principalmente, do ponto de vista político, a adoção de uma alternativa. A Constituição precisava, naquele momento, de dar respostas a questões que eram circunstanciais e que, alterada a conjuntura, tiveram que ser corrigidas posteriormente. Mas tudo isso faz parte do jogo democrático.

Agência Senado - O que, por outro lado, era imprescindível, mas ficou de fora da Carta?

José Maranhão - Nossa Constituição, como outras contemporâneas que foram aprovadas em contexto similar - de transição de um regime autoritário para um democrático -, como a portuguesa de 1976 e a espanhola de 1978, é uma Carta minuciosa, tratando de uma vasta gama de matérias, muitas das quais podem ser consideradas não típicas desse tipo de documento. Assim, é difícil considerar que algum tema ficou fora da Constituição, uma vez que, sem dúvida, a Carta cobriu as matérias típicas, como organização do Estado e declaração de direitos. Evidentemente que, dentro do espírito de particularizar as normas estabelecidas no texto constitucional, algumas iniciativas se justificaram e lograram êxito na forma de emendas.Em 2004, apresentei uma PEC, aprovada na CCJ [Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania], em 17 de junho do corrente, para assegurar recursos mínimos às atividades de pesquisa básica e aplicada e de desenvolvimento tecnológico no país.Por ela, até o exercício financeiro de 2015, será obrigatório destinar 2,5% do PIB [Produto Interno Bruto] para ciência e tecnologia, de modo a favorecer o desenvolvimento do país, uma vez que existe comprovada correspondência entre os gastos com pesquisa e desenvolvimento promovidos pelos países e a qualidade de vida das respectivas populações.

Agência Senado - O senhor se arrepende de ter votado favoravelmente a algum tópico da Constituição?

José Maranhão - A elaboração da Constituição federal é um ato eminentemente político e social inserido num determinado cenário histórico no qual se impõe a máxima "a política é a arte do possível".Naquele cenário, era o que se podia fazer.O Congresso Constituinte era o espelho fiel da sociedade, refletindo um determinado momento histórico repleto de conflitos e de demanda s reprimidas, cuja natureza, na maioria das vezes, se traduzia em valores libertários, o que era natural, após a longa noite da ditadura. O constituinte, enquanto operador político, não estava atuando para refletir o seu sentimento pessoal e, sim, para expressar, dentro de critérios de fidelidade, o sentimento da sociedade. Não se trata de sentimento pessoal, mas de se privilegiar o coletivo. Assim, não se pode falar em arrependimentos, o que seria aplicar um reducionismo incompatível com a grandeza da tarefa de se elaborar uma Constituição democrática.

Agência Senado - De que dispositivo o senhor mais se orgulha de ter votado a favor?

José Maranhão - O "Titulo II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais", no qual se inserem os direitos individuais e coletivos, sociais e políticos. Nesse sentido, a Constituição promoveu um extraordinário avanço na direção de tudo aquilo que diferencia a civilização da barbárie, resgatando o cidadão sistematicamente humilhado e diminuído pelo regime autoritário e inscrevendo-o definitivamente no Estado Democrático de Direito, privilegiando o interesse coletivo da sociedade.Exatamente por isso foi ela apresentada ao Brasil, pelo saudoso Dr. Ulysses, como a Constituição Cidadã.

Agência Senado - As 56 emendas já feitas à Constituição são um indicativo de que o trabalho dos constituintes poderia ter sido melhor?

José Maranhão - Vale ressaltar que nem todas as mudanças de regime político no mundo ocorreram de forma consensual, pacífica e negociada.A Constituição não podia expressar uma unidade ideológica de vez que a mesma não foi elaborada sob a égide de um processo revolucionário vitorioso.Ao contrário, foi o resultado de uma transição pacífica e negociada.O fato de ter recebido emendas não significa ter sido mal elaborada, mas é o produto da circunstância do regime de transição, sem sangue (como nas revoluções armadas), porém negociado a partir de acordos.A sua heterogeneidade reflete em larga escala o caráter dessa transição e o espírito que possibilitou o esgotamento da ditadura militar; não se tratava de um ato perfeito e acabado, mas refletia os conflitos da sociedade naquele momento histórico. Na verdade, a Constituição de 1988 já recebeu 62 emendas, sendo 56 emendas aprovadas pelo procedimento normal e seis emendas constitucionais de revisão, votadas durante a revisão constitucional de 1993. Esse elevado número, provavelmente sem paralelo em outros países democráticos, é, certamente, reflexo da conjuntura em que a Carta foi aprovada, conforme já comentado anteriormente. Ou seja, não podemos, simplesmente, debitar o número de emendas a alguma deficiência do processo de elaboração da nossa Constituição. Em boa parte, a edição se deveu, de um lado, à mudança de conjuntura e de paradigmas e, de outro, ao fato de a Carta ser minudente e programática, o que exigia, mesmo para alteração de temas não tipicamente constitucionais, a edição de uma emenda constitucional.



02/10/2008

Agência Senado


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