Poesia de Fernando Pessoa vira tema de mestrado na Unesp



Produção dos escritor está dividida em duas categorias: a ortônima, que contém a obra “ele-mesmo”, e a heterônima

Considerado pelo crítico literário Harold Bloom o mais representativo poeta do século XX, ao lado de Pablo Neruda, o português Fernando Pessoa (1888–1935) tem como principal característica a heteronímia, ou seja, a capacidade de se multiplicar em personalidades distintas e complexas, além de assinar textos com o próprio nome (obra ortônima), semi-heterônimos e pseudônimos, totalizando mais de 70 nomes.

A pesquisadora Suely Aparecida Zeoula de Miranda, na tese de mestrado O marinheiro na poesia de Fernando Pessoa: porto ou travessia?, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras (FCL), câmpus de Araraquara, penetra nesse fascinante universo.

Orientada pela docente da FCL Renata Soares Junqueira, Suely busca estabelecer um diálogo entre O marinheiro, drama estático de Pessoa, de 1913, e sua obra poética posterior. “Verifico como as sementes dos três heterônimos de Pessoa, surgidos, segundo ele mesmo, no ano seguinte, estão no texto teatral”, afirma.

Publicado em 1915, no primeiro número da revista Orpheu, O marinheiro passa-se no quarto de um castelo, onde três jovens velam o corpo de uma donzela. “Elas jamais saem do seu lugar. O ambiente é simbolista, e o local só se comunica com o mundo exterior graças a uma única janela”, comenta a pesquisadora.

Vozes dos heterônimos - O caixão domina a cena. “É uma clara alusão à morte, única personagem verdadeira do teatro da vida”, interpreta a autora. “As três jovens não têm nomes, talvez privilegiando o sentir e o pensar, valorizando as manifestações espirituais, a atmosfera obscura, subjetiva, a percepção de uma outra realidade e a captação do mundo e do sentido das coisas pelo símbolo.”

A produção de Pessoa, como aponta Suely, está dividida em duas categorias: a ortônima, que contém a obra do Pessoa “ele-mesmo”, e a heterônima. Nesta, atribui a cada personagem criado uma biografia, caracteres físicos, traços de personalidade, formação cultural, ideologia, profissão. Nascem, assim, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos (os heterônimos perfeitos), além de vários outros semi-heterônimos.

Enquanto o ortônimo é saudosista-nacionalista e lírico, Caeiro apresenta uma poesia bucólica e subjetiva; Reis, pagã e sensacionista; e Campos, turbulenta e forte. “Caeiro é o fundador e criador de uma nova poesia da natureza; Reis inventa o neoclassicismo; Campos é o poeta modernista, capaz de intensificar as sensações até o paroxismo”, define Suely.

A pesquisadora acredita que muito de Caeiro existe na Primeira Veladora. Ela faria constante alusão à natureza, revelando-se extremamente subjetiva em suas considerações (“Falai-nos muito mais do vosso sonho. Ele é tão verdadeiro que não tem sentido nenhum”). “Como Caeiro, suas falas concentram-se no sentir, no uso de uma linguagem direta e natural, que combina prosa com poesia”, afirma Suely.

Autora de frases como “Eu devia agora sentir mãos impossíveis passarem-me pelos cabelos – é o gesto com que falam das sereias”, a Segunda Veladora, para Suely, tem uma forma humanística de ver o mundo, já prenunciando o culto às entidades pagãs. Nesse aspecto, poderia ser a semente de Ricardo Reis. “Se a Primeira só privilegia o sentir, esta mostra falas mais bem elaboradas no sentido do raciocínio, do equilíbrio, do pensar”, comenta.

Tributo ao paradoxal - A Terceira Veladora, ao pronunciar frases como “Falai-me da morte, do fim de tudo, para que eu sinta uma razão para recordar”, por sua vez, teria um espírito inconformado, que extrai do desespero a própria razão de ser, algo próprio de Álvaro de Campos. “Assim como Campos está situado entre Caeiro e Reis, ela situa-se claramente entre a Primeira e a Segunda, mostrando ora o sentir de uma – nela levado ao extremo – ora a artificialidade da outra”, afirma Suely.

Pessoa ele-mesmo também estaria presente em O marinheiro. “Voltado profundamente para o misticismo e a simbologia, ele pode estar realmente representado pela donzela morta. Essa morte pode ser o símbolo da semente, que morre para gerar outras vidas”, diz a autora.

Para a autora, as três veladoras que, no início, parecem personagens distintas, aos poucos vão se diluindo, até se reduzirem a, aparentemente, uma só. “Para viverem e poderem sentir-se reais, falam o tempo todo, contando umas às outras os seus sonhos, que incluem a difusa história de um marinheiro.”

Suely conclui seu estudo aceitando o fato de que a obra pessoana é um tributo a tudo o que é paradoxal e contraditório. “Ela nos ensina que a verdade não existe, que as coisas são apenas o que queremos que elas sejam, que todos somos medíocres, que nada sabemos, porque não há nada para saber”, acredita. “A obra de Pessoa é um caminho de infinitas paisagens, não um ponto de chegada. É uma viagem interminável, não o porto.”

Diversas personalidades - Fernando Pessoa é considerado um dos maiores poetas de língua portuguesa. Por ter vivido a maior parte da juventude na África do Sul, ele traduziu, escreveu, trabalhou e estudou o inglês. Tendo atuado no jornalismo, na publicidade e no comércio, sua vida na literatura foi um desdobramento em várias outras personalidades conhecidas como heterônimos. Morreu de problemas hepáticos, aos 47 anos.

Da Unesp



03/10/2008


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