Revista 'Em Discussão!' debate a saúde financeira do SUS
O presidente do Senado, Renan Calheiros, fala sobre o SUS durante sessão
A rede pública de saúde do Brasil é ambiciosa. Ao criar o Sistema Único de Saúde (SUS), a Constituição estabeleceu que cada brasileiro, rico ou pobre, precisa ter todas as necessidades atendidas sem pagar nada — de uma aspirina a um remédio anticâncer que custa milhares de reais, de uma consulta por causa de dor de garganta a uma complicada cirurgia no coração.
Entre a letra da lei e a realidade, porém, existe um abismo. Faltam médicos. A espera por uma consulta pode durar meses. Por uma cirurgia, anos. Pronto-socorros vivem abarrotados de pacientes. Em hospitais, eles convalescem em macas pelos corredores. Ambulâncias ficam na garagem por falta de gasolina. O Brasil ainda registra novos casos de elefantíase, esquistossomose, mal de Chagas e hanseníase. A dengue, que mata, ressurge todo verão.
As mazelas da saúde não têm uma explicação única. Especialistas responsabilizam tanto as falhas na gestão quanto a corrupção. Entretanto, são enfáticos ao apontar que o maior dos problemas é, de longe, o subfinanciamento. Para fazer tudo aquilo a que se propõe, o SUS não tem dinheiro suficiente.
A edição de fevereiro da revista Em Discussão!, publicada pelo Jornal do Senado, trata especificamente do financiamento da saúde. O tema é esmiuçado ao longo de 82 páginas, em reportagens que explicam desde as tentativas já feitas de reforçar o caixa do SUS até os projetos de lei em estudo hoje no Congresso Nacional, passando pelas experiências de outros países. A nova edição já está disponível na Livraria do Senado e no site do Senado .
Bilhões insuficientes
— Em todo o Brasil, o cidadão que procura tratamento frequentemente depara com toda sorte de desrespeito, como longas filas e descaso. Isso é inaceitável, porque a manutenção da saúde está ligada ao direito à própria existência — disse o presidente do Senado, Renan Calheiros, numa sessão temática realizada em setembro passado em que senadores, ministros e militantes da saúde discutiram o SUS.
Em 2012, o governo federal, os estados e as prefeituras destinaram à saúde R$ 173 bilhões. Esse valor custearia todo o Programa Nacional de DST e Aids durante quase um século e meio.
O montante que alimenta o SUS aparenta ser fabuloso, mas três comparações deixam claro que não é. A primeira é com a rede privada. De todo o dinheiro que sustenta a saúde no país, a fatia grande do bolo (54%) está no sistema privado. A parcela menor (46%) mantém o sistema público. O desequilíbrio aumenta quando se leva em consideração que a grande maioria dos brasileiros (76%) não tem plano de saúde e depende do SUS quando adoece.
A segunda comparação é com países que também têm um sistema universal e integral. No Brasil, o poder público investe em saúde 4% do produto interno bruto (PIB), menos que Reino Unido (7,7%), Canadá (7,8%) e Argentina (4,9%).
A última comparação é com os planos de saúde. Enquanto os convênios médicos gastam, em média, R$ 160 mensais com cada um de seus 48 milhões de clientes, a rede pública desembolsa R$ 72 por mês com cada um dos 200 milhões de brasileiros. A rede pública, além de tudo, tem uma lista de tarefas muito mais extensa que a dos planos de saúde. Cabem ao SUS o controle de epidemias e a vigilância sanitária de remédios e alimentos.
— O SUS está sem dinheiro, e isso se vê em itens banais. Consultórios não têm cadeira para os pacientes e hospitais não têm lençol. Como o médico pode oferecer um atendimento digno? Os políticos fazem promessas, mas, quando chegam ao governo, mostram que a saúde, na realidade, nunca foi prioridade — disse a Em Discussão! Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica.
Gastos crescentes
Falta dinheiro do governo federal. Segundo especialistas, os estados e as prefeituras já destinam à saúde o máximo que podem. A União arrecada a maior parte dos impostos, mas aplica no SUS uma parte pequena deles.
O Senado está empenhado em ajudar o governo a encontrar o caminho. Neste momento, os senadores analisam uma série de projetos de lei que buscam reforçar os cofres da saúde pública.
No início do ano passado, o Senado encarregou uma comissão temporária de debruçar-se sobre o problema e propor soluções.
Em setembro, em debate no Plenário, os senadores trataram do tema com dois ministros — Miriam Belchior, do Planejamento, e Alexandre Padilha, na época titular da Saúde.
A discussão ganhou fôlego em agosto, quando entidades do setor sanitário reunidas no movimento Saúde+10 apresentaram um projeto de lei que obriga o governo federal a aplicar 10% da receita bruta no SUS. Para que a proposta fosse aceita pelo Congresso, o Saúde+10 recolheu 2,2 milhões de assinaturas.
Caso o poder público não tome nenhuma atitude com urgência, o subfinanciamento ficará ainda mais profundo com o passar do tempo. Os gastos da saúde crescem num ritmo veloz.
Diariamente são lançados remédios e aparelhos novos e caros, que, em vez de substituir, passam a conviver com os antigos. A tomografia computadorizada, por exemplo, não levou à aposentadoria do velho aparelho de raios X. O Brasil tem cada vez mais idosos, que requerem mais tratamentos do que os jovens. Outro fenômeno é a judicialização da saúde. As pessoas recorrem à Justiça para obter do governo remédios e cirurgias que não recebem do SUS.
Para Mário Scheffer, professor de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP), a má qualidade do SUS tem empurrado os brasileiros para a saúde privada. Em 2000, 31 milhões de pessoas tinham plano de saúde. Hoje, 48 milhões. Afirmou ele à revista Em Discussão!:
— Nem mesmo os clientes dos planos estão satisfeitos. Os planos já mostraram que não são capazes de oferecer o atendimento adequado. Está claro que o governo deve tirar do papel o SUS previsto na Constituição. Para isso, precisa garantir um financiamento decente. Sem dinheiro, é impossível aumentar a quantidade e a qualidade dos serviços públicos de saúde.
Publicação do Senado foca grandes temas nacionais
Em reportagens aprofundadas, a revista Em Discussão! aborda os grandes temas nacionais em debate no Senado. A 19ª edição trata do financiamento do SUS.
A revista pode ser lida gratuitamente pela internet . Quem prefere a versão em papel pode comprá-la no site da Livraria do Senado, por R$ 10 cada edição — o valor já inclui as despesas de envio postal.
Em edições anteriores, Em Discussão! abordou assuntos como a má qualidade da educação e os entraves para a adoção de crianças.
Da CPMF à Emenda 29, soluções foram insuficientes
Desde 1988, ano de criação do SUS, 18 homens chefiaram o Ministério da Saúde. De Adib Jatene a José Gomes Temporão, de José Serra a Alexandre Padilha, todos tentaram convencer o presidente da República de que o SUS precisava de uma fatia mais generosa do Orçamento. Ministro nenhum teve sucesso.
— O governo diz que não há recursos suficientes. É uma desculpa que vem desde o início do sistema — diz Jurandi Frutuoso, secretário-executivo do Conass (entidade que representa os secretários estaduais de Saúde).
De acordo com Mário Scheffer, professor de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP), os ministros da Saúde esbarram na força dos ministérios da área econômica:
— O SUS vai continuar afundado em problemas enquanto prevalecer essa política econômca que prioriza a redução das despesas com ações sociais para alcançar elevados superávits primários e abater a dívida pública.
O SUS nunca contou com uma fonte de recursos ao mesmo tempo estável e suficiente.
A primeira grande resposta para o subfinanciamento foi dada em 1996, quando se criou a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira. A CPMF seria derrubada em 2007.
O segundo movimento ocorreu em 2000, com a aprovação da Emenda Constitucional 29. A União passou a ter de investir no SUS o mesmo volume aplicado no ano anterior mais a variação nominal do produto interno bruto (PIB) no período. Os estados, 12% das receitas próprias. E os municípios, 15%.
O terceiro e último avanço se deu em 2012, com a regulamentação da Emenda 29. Até então, União, estados e municípios se aproveitavam de uma brecha no texto e lançavam na conta do SUS gastos com saneamento básico, merenda escolar e aposentadoria de servidores públicos, atingindo artificialmente o mínimo obrigatório. A regulamentação estabeleceu que nada disso poderia sair dos cofres do SUS.
Nenhum dos três passos foi capaz de salvar a saúde. Para os especialistas, só há uma solução: obrigar a União a gastar um percentual de suas receitas, tal qual estados e municípios. Defendem que o piso esteja em 18,7% da receita corrente líquida da União (ou 10% da receita bruta). O governo aceita vincular não mais que 15% da receita líquida. Hoje, os gastos com saúde equivalem a 12%.
Em setembro passado, o então ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e a ministra do Planejamento, Miriam Belchior, participaram de uma sessão temática no Senado sobre o caixa do SUS. Padilha reclamou da falta de dinheiro, mas preferiu não cobrar explicitamente um quinhão maior do orçamento. Miriam, ao contrário, foi categórica e afirmou que reservar 18,7% da receita líquida seria “impossível”.
Para Gastão Wagner, que foi secretário-executivo do Ministério da Saúde em 2003 e 2004, as declarações dos dois já eram previsíveis:
— O ministro da Saúde é um cargo de confiança do presidente. Ele não pode destoar da política econômica do governo e sair brigando por mais recursos. Há um limite para o confronto com a área econômica. Para que a situação mude, é preciso haver pressão da mídia e da sociedade. Não há como superar o subfinanciamento esperando uma iniciativa do próprio governo.
Congresso busca novas fontes de dinheiro para o setor
O financiamento da saúde foi um dos principais temas do Congresso em 2013. Em resposta às críticas feitas à má qualidade dos serviços nas manifestações de junho, comissões analisaram a questão na Câmara e no Senado e chegaram à mesma conclusão: o SUS carece de dinheiro federal.
A definição de um piso para os investimentos da União na saúde mobilizou entidades do setor, governo e parlamentares. O Legislativo buscou conciliar a demanda da sociedade (o projeto de lei de iniciativa popular do movimento Saúde+10) com os limites de gastos do governo.
Assinaturas
Não é sempre que o Congresso recebe um projeto de lei com 2,2 milhões de assinaturas. Na última vez que algo parecido aconteceu, foi aprovada uma lei para exigir que políticos que se candidatem a qualquer cargo tenham a ficha limpa.
Com essas assinaturas, o movimento Saúde+10 apresentou um projeto que garante à saúde pública 10% da receita corrente bruta (RCB) da União.
O debate começou com a mobilização da sociedade pela regulamentação da Emenda Constitucional 29, que, em 2000, previu nova forma de financiamento da saúde, com compromissos da União e percentuais da receita corrente líquida (RCL) de estados (12%) e municípios (15%).
Os militantes já entendiam que a carência de recursos deveria ser suprida pelo estabelecimento de um percentual para a União. A defesa dos 10% da RCB foi encampada pela 14ª Conferência Nacional de Saúde, em 2011.
Em 2012, regulamentou-se a Emenda 29. Porém, a lei manteve o cálculo da participação federal no SUS — o mesmo montante aplicado no ano anterior mais a variação do PIB.
— Frustração, porque os ganhos não foram ganhos — disse Jurandi Frutuoso, secretário-executivo do Conass (órgão dos secretários estaduais de Saúde).
Em 2012, surgiu o Saúde+10, com o objetivo de alterar a legislação para que também a União tivesse parte da receita vinculada à saúde.
O projeto (PLP 321/2013) está na Câmara. A versão atual diz que o governo federal deve destinar 15% da RC em 2014, até chegar a 18,7% em 2018 — R$ 190 bilhões a mais ao SUS em cinco anos.
Emenda parlamentar
Em 2013, os senadores, no mesmo texto da PEC do Orçamento Impositivo, que vincula à saúde metade das emendas parlamentares de execução obrigatória, fixaram um percentual mínimo para os investimentos do governo federal — 15% da RCL, de forma gradual, até 2018.
Mas a decisão ainda não foi endossada pela Câmara, onde tramita uma proposta de percentual mais elevado para os investimentos da União, 18,7% da RCL em 2018 — equivalente à demanda do Saúde+10.
Sem a aprovação nas duas Casas, os investimentos federais na saúde, estimados em cerca de 12% da RCL em 2013, permanecerão obedecendo à regra em vigor. Isso porque as emendas parlamentares destinadas ao setor não aumentam o valor total, apenas passam a integrar o rol dos recursos que já financiam a saúde.
Novas tentativas de criação da Contribuição Social para a Saúde (CSS), tributo nos moldes da extinta CPMF, também foram ensaiadas na Câmara em 2013.
Propostas de fontes alternativas, como a taxação de grandes fortunas, caminham a passos lentos no Congresso.
11/02/2014
Agência Senado
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