Trem-bala é questionado em estudo de consultor do Senado



Um caso clássico de má qualidade da gestão de investimentos públicos. Assim o consultor do Senado Federal Marcos Mendes qualifica o Trem de Alta Velocidade (TAV) entre Rio de Janeiro e Campinas, projeto considerado prioritário pelo governo federal, cuja licitação está em andamento. Em artigo publicado pelo Centro de Estudos da Consultoria do Senado, o autor diz que não foram claramente caracterizados os problemas que o TAV se propõe a resolver, como tampouco houve uma estimativa precisa de seus custos.

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Para o autor, a leitura dos estudos de viabilidade do investimento feitos em 2009 pelo Consórcio Halcrow-Sinergia permite deduzir - embora "com alguma dificuldade" - que o principal problema a ser solucionado pelo TAV seria "o congestionamento e baixas condições de segurança, tanto nos aeroportos de Congonhas-SP e Santos Dumont-RJ quanto nas ligações rodoviárias entre as duas cidades".

Doutor em Economia pela Universidade de São Paulo (USP), Marcos Mendes critica a falta de dados sobre os problemas analisados e a ausência de propostas alternativas, como trens de velocidade intermediária ou mudanças na estrutura aeroportuária. Segundo ele, o custo de uma ferrovia para um trem com velocidade de 160 km/h fica entre 25% a 60% do custo de um TAV.

No texto, o autor também questiona as prioridades do governo ao lançar um edital para um trem de alta velocidade, desconsiderando problemas "mais impeditivos do crescimento da renda e do bem-estar", como congestionamentos e riscos no eixo Rio-São Paulo e a lenta mobilidade nos centros urbanos. Para o consultor, medidas para resolver esses problemas "alcançariam uma grande massa de usuários de baixa renda, ao contrário do TAV, cujo público alvo é de alta renda".

Canto da sereia

"O processo decisório parece estar fortemente influenciado por motivação política", afirma o consultor, na conclusão de seu trabalho. Para ele, a decisão de se implantar o TAV, sem considerar investimentos alternativos, "parece ter se iniciado com o canto da sereia de que não seria necessário utilizar recursos públicos no projeto". De acordo com ele, a ideia de que investidores privados construiriam e operariam o TAV "trouxe o apelo de que se poderia realizar uma obra de grande visibilidade sem que isso drenasse recursos públicos de outros projetos".

O edital da obra, porém, prevê que, do custo total estimado, de R$ 34,6 bilhões, o Tesouro Nacional aportará até R$ 20 bilhões, na forma de empréstimos subsidiados à futura concessionária, repassados via Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A taxa de juros desses empréstimos pode ser ajustada para baixo, com a consequente ampliação do subsídio, caso o movimento de passageiros fique abaixo do esperado. Também será criada uma empresa pública federal para ser sócia do empreendimento, que aportará R$ 3,4 bilhões para desapropriações. Está previsto ainda que essa empresa poderá fazer aportes posteriores para demandas criadas por eventuais mudanças do projeto, entre elas mudanças de percurso.

"O fato de eventual frustração de receitas poder vir a ser compensada mediante redução do custo de empréstimos públicos reduz o estímulo para que o consorciado se esforce na gestão eficiente do empreendimento", afirma o consultor. Argumenta ainda que o alto comprometimento do governo no custeio do projeto o obrigará a fazer aportes adicionais de recursos, caso seja necessário salvar o empreendimento, que se tornará "too big to fail" (muito grande para dar errado, numa tradução livre).

Subestimado

O consultor aponta evidências de subestimação no cálculo dos custos. Segundo ele, o valor de US$ 33,4 milhões por quilômetro está abaixo do padrão internacional, situado entre US$ 35 e 70 milhões. Ele acrescenta que o projeto brasileiro possui características que encarecem o projeto, como o trajeto inclinado (o Rio de Janeiro está no nível do mar e São Paulo a 760 metros de altitude) e um grande número de túneis e viadutos, além de custos de desapropriação e de impacto ambiental. E um estudo realizado em 2004 englobando 258 projetos de infraestrutura de transportes em diversos países concluiu que projetos ferroviários ficam em média 45% mais caros que a estimativa inicial.

Os estudos de viabilidade apresentam uma tabela com os custos de 25 projetos de trens de alta velocidade realizados no mundo. O maior custo por km é o da linha Omiya-Morioka (Japão), na qual cada um dos 466 km de extensão custou 48,4 milhões de euros. Em seguida vem a linha Tokyo-Nigata, também no Japão, com 300 km e custo unitário de 43,6 milhões de euros. Em Taiwan, a linha Taipei-Kaohsiung tem 346 km e cada um custou 42,5 milhões de euros.

O projeto Rio-Campinas vem nesta tabela em oitavo lugar, com extensão de 511 km e um custo unitário de 20,7 milhões de euros. Há na tabela trechos com custos muito inferiores, como a ligação entre Tokyo e Osaka, com 515 km e custo unitário de 5,9 milhões de euros; Paris e Lyon, com 417 km a 5,1 milhões de euros; e Fortezza-Verona, na Itália, com 190 km e custo por quilômetro de 3,3 milhões de euros.

O custo médio do km ficou em 18,9 milhões de euros. Para o consultor, a explicação para valores tão díspares, inclusive para projetos diferentes dentro de um mesmo país, pode ser explicada por características específicas de cada projeto. Na França, na Alemanha e na Itália, por exemplo, foi utilizada em alguns trechos a infraestrutura ferroviária preexistente.

De acordo com Marcos Mendes, o projeto brasileiro tem 39% de seu trajeto passando por túneis (18%) e pontes (21%), sinalizando com isso um custo por quilômetro mais alto, próximo aos dos trens do Japão, Coréia e Taiwan, construídos em terrenos acidentados. No custo estimado total essas obras arquitetônicas equivalem a 52% do total. Um acréscimo de apenas 10% no custo dessas obras já significa uma despesa adicional de R$ 1,8 bilhão. Caso o projeto brasileiro fique 45% mais caro, como a média no setor, o custo aumentaria R$ 15,6 bilhões, levando o cust o por quilômetro a 30,1 milhões de euros (ou R$ 87,2 milhões), argumenta o consultor.

Contingências

Marcos Mendes chama a atenção para o fato de que os custos de contingências (riscos) não estarem previstos nos estudos de viabilidade. Ele cita trecho do relatório do consórcio Halcrow-Sinergia segundo o qual "é padrão incluir-se um fator de contingência durante o estágio de viabilidade de um projeto" para cada um dos riscos específicos avaliados, como condições geológicas e de traçado. Mas essas contingências não foram incluídas na estimativa de custos "seguindo as orientações do governo federal, em vista da partilha dos riscos por meio da participação pública no empreendimento".

"Percebe-se a postura do governo federal no sentido de subestimar o custo de investimento (talvez para viabilizar a sua implementação) e se dispor a absorver os excessos por meio de financiamento público (via subsídio de juros, aportes adicionais de capital ou outro mecanismo contratual ou extracontratual)", afirma o consultor.

Demanda

Segundo o consultor, especialistas consideram necessários pelo menos 20 milhões de passageiros por ano apenas para cobrir os custos operacionais de um TAV. A demanda estimada entre Rio e São Paulo, no entanto, não passa de 6,4 milhões de passageiros por ano. O estudo aponta um trânsito maior nos trechos São Paulo-Campinas (12,4 milhões) e São Paulo-São José dos Campos (8,6 milhões), o que permite, lembra o consultor, iniciar o projeto em um trecho menor para depois, se necessário, ampliar o percurso. Ele lembra que o TAV passará por áreas de alta densidade populacional, mas de baixa renda, o que somente agrega custo ao projeto, sem gerar expectativa de receita.

O autor cita estudo segundo o qual o TAV é competitivo, em relação ao transporte aéreo, para viagens de até três horas ou 750 km, principalmente entre cidades com aeroportos longe do centro. Para jornadas de até 100 km, como os trechos dentro do estado de São Paulo, os automóveis privados são os principais competidores.

Marcos Mendes argumenta ainda que o edital tem como teto para o preço da passagem R$ 0,49 (US$ 0,27) por quilômetro, valor que supera a tarifa média cobrada no Japão (aproximadamente US$ 0,25), provavelmente a mais cara do mundo. Estudo por ele citado indica que as tarifas médias na França e na Espanha têm um custo de aproximadamente US$ 0,10 por passageiro por km, chegando ao dobro disso no norte da Europa. Em outras áreas da Ásia está em torno de US$ 0,10 e chega a US$ 0,07 na China.

Para complicar ainda mais, o TAV tem um baixo grau de conexão com outros sistemas de transporte urbanos. O consultor argumenta que os aeroportos de Congonhas e Santos Dumont, concorrentes direto do TAV, são muito próximos ao centro da cidade. Observa também que o sistema de ônibus interestadual opera com eficiência e os automóveis têm como atrativo uma rede de rodovias em bom estado de conservação, embora cobrem pedágio.

O consultor acrescenta que o projeto patina nos prazos estabelecidos. Quando foi anunciado, em 2007, a previsão era de que estaria pronto já para a Copa do Mundo de 2014. Depois, ficou para a Olimpíadas de 2016, mas também essa data já desperta dúvidas.

Avaliação independente

Por fim, Marcos Mendes sugere que uma instância independente avalie o projeto. Cita a Comissão de Monitoramento e Avaliação, vinculada ao Ministério do Planejamento, criada em 2005 para melhorar a eficiência do gasto público. A comissão abriga o Comitê Técnico para Projetos de Grande Vulto (CPTGV), responsável por analisar projetos de infraestrutura com custo acima de R$ 50 milhões. A avaliação de estudos prévios para a viabilidade de um projeto pelo CPTGV passou a ser condição necessária para inclusão do investimento no orçamento federal, mas os projetos incluídos no PAC ficaram isentos dessa avaliação.

O consultor sugere ainda que a avaliação pode ser feita pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Ele lembra que o projeto do TAV está sendo tocado no âmbito do Programa Nacional de Desestatização (PND) e o TCU exarou diversos acórdãos sobre o assunto. Esses acórdãos, acrescenta o consultor, são extremamente detalhados, mas não discutem as premissas e a qualidade das estimativas de demanda e de custo, fazendo apenas correções pontuais no edital de licitação.



05/11/2010

Agência Senado


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