Uma carta com defeitos e virtudes



Em 1985, ao assumir a Presidência da República no momento trágico da morte de Tancredo Neves, tinha pela frente a responsabilidade da transição democrática. Eram muitas as questões, a maior delas a de uma nova Constituição, há muito exigida pela sociedade.

Começamos desbastando os graves problemas de direitos individuais e sociais que tinham se acumulado. Os pontos de consenso eram mais aparentes que reais, e foi difícil alcançar o entendimento que os viabilizou dentro de um clima de confiança, sem ameaças para a marcha democrática.

Foi minha a iniciativa de convocar a Assembléia Nacional Constituinte. Ela foi realizada a partir de eleições completamente livres, creio que as mais livres da história do Brasil.

Cumpri o dever, tendo sido votado o primeiro turno, de alertar a nação sobre os riscos que corríamos. A Constituição estava sendo feita com os olhos voltados um pouco para o passado, um pouco para o lado e bem pouco para o futuro.

Fui o primeiro a jurá-la. Fui o que mais determinação teve em cumpri-la. Estudei-a. Alertei a nação sobre a ingovernabilidade que seria criada por alguns de seus pontos. Não para meu governo, mas para os governos que me sucederam. Meu dever era fazer o que estava a meu alcance para viabilizá-la. Foi o que fiz e me orgulho de ter institucionalizado a democracia que ela definia.

A Constituição de 1988 é uma constituição híbrida, parlamentarista e, ao mesmo tempo, presidencialista. É muito detalhista, tornando difícil sua execução. Assumimos compromissos conflitantes. Colocamos na Constituição muita matéria que devia ser regulada por lei ordinária.

Como todas as constituições, tem defeitos e tem virtudes. Ela é excelente na parte dos direitos humanos e sociais. Na mensagem de convocação da Assembléia Constituinte, eu já falava da necessidade de colocarmos os direitos sociais em nível constitucional.

Ela abriu, no entanto, conflitos na competência dos poderes, em sua autonomia e harmonia. Sobrepôs obrigações de estados e da União. Gerou dificuldades econômicas e administrativas.

Como atestado dos defeitos da Constituição, tivemos mais de 1.100 emendas tramitando na Câmara, mais de 570 no Senado, das quais 40 aprovadas, fora as seis da revisão constitucional, algumas retomando assunto já modificado.

Passamos, nos últimos 200 anos, da defesa dos direitos da propriedade, nas primeiras medidas de direito de D. João VI, para a defesa dos direitos individuais, na formação da República; pela defesa dos direitos sociais, em que 1988 marcou um grande avanço teórico.

Precisamos ir adiante, com medidas concretas. Os processos políticos devem acompanhar a sociedade de informação, encontrando meios de legitimar a representação. Conciliaremos o Estado desejado com o Estado possível. O objetivo é uma democracia plena, a justiça social. Sobre esse horizonte, construiremos o futuro.



08/10/2003

Agência Senado


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