Estudo abre novas perspectivas para o tratamento de anemia falciforme



Pesquisa desenvolvida no Hemocentro mostra que enzimas desempenham papel importante na patogênese da doença.

Estudo de pós-doutorado desenvolvido pela pesquisadora Carla Fernanda Franco Penteado e outros cientistas do Hemocentro da Unicamp, sob orientação do professor Fernando Ferreira Costa, abre perspectivas para novas formas de tratamento da anemia falciforme, doença hereditária que atinge em média um a cada cinco mil recém-nascidos. A pesquisa acaba de ganhar o 1º lugar entre os trabalhos apresentados no IV Simpósio Internacional de Hemoglobinopatias, promovido pelo Instituto Estadual de Hematologia Arthur de Siqueira Cavalcanti (HEMORIO) com patrocínio do Ministério da Saúde, no período de 4 a 6 de setembro, no Rio de Janeiro. O prêmio foi dado pela Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia

Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Carla constatou pela primeira vez a relação entre as enzimas metaloproteinases (MMPs) com a anemia falciforme. Segundo ela, os resultados sugerem que as MMPs, principalmente a MMP-9, desempenham papel importante na patogênese da doença, podendo tornar-se alvo terapêutico no tratamento de suas manifestações clínicas, como por exemplo a hipertensão pulmonar, reconhecida como maior causa de complicações nos pacientes afetados.

“O trabalho é importante por tratar-se da primeira informação deste tipo na literatura mundial e pode, potencialmente, contribuir para um melhor entendimento dos mecanismos que conduzem à hipertensão pulmonar na anemia falciforme”, observa o professor Fernando Costa. Segundo ele, como esta é uma das mais problemáticas complicações acarretadas pela doença, os dados do trabalho poderiam, no futuro, contribuir para o tratamento e reduzir a mortalidade.

O estudo revelou um significativo aumento na concentração da MMP-9 em pacientes com anemia falciforme, estando diretamente relacionada ao número de células inflamatórias presentes no sangue, como os neutrófilos. Como os quadros inflamatórios têm papel importante no processo de obstrução dos vasos sofrido pelos portadores da doença, o trabalho pode abrir campo para novas abordagens terapêuticas visando especificamente as MMPs.

Além disso, pesquisadora verificou aumento da atividade e da expressão gênica da MMP-9 em células mononucleares, que também integram o sistema imunológico. “Isso pode ser importante no caso das doenças pulmonares que acometem os portadores de anemia falciforme, como hipertensão pulmonar e síndrome torácica aguda, porque o pulmão é colonizado por muitas células mononucleares”, observa.

Para desenvolver o trabalho, Carla pesquisou 60 pacientes, dividindo-os entre os que não recebiam medicação e aqueles que faziam tratamento à base de hidroxiuréia, única terapia disponível para o tratamento da doença. Embora todos apresentassem aumento nos níveis e na atividade das MMPs, naqueles submetidos ao tratamento sua atuação e expressão gênica foram reduzidas. “Esse dado mostra que a hidroxiuréia pode afetar a expressão gênica/atividade da enzima e ajudar no controle da doença”, explica a pesquisadora.

As metaloproteinases compreendem uma extensa família de enzimas proteolíticas que estão associadas à degradação da matriz extracelular. Estão presentes em todo o organismo e são responsáveis por vários eventos fisiológicos, participando diretamente nos processos de desenvolvimento, formação de novos vasos e cicatrização. Também são importantes no remodelamento tecidual toda vez que ocorre uma lesão. Porém, quando sua atividade está em desequilíbrio podem causar determinadas doenças ou estar envolvidas no seu desenvolvimento. No câncer, por exemplo, ajudam a célula tumoral a invadir outros tecidos, participando no processo de metástase.

A participação dessas enzimas em doenças como câncer, infarto agudo do miocárdio e artrite reumatóide já era conhecida, mas ainda não havia nenhum estudo relacionando as MMPs à anemia falciforme. O próximo passo de Carla será aprofundar a pesquisa em camundongos transgênicos cujo organismo reproduz as características da doença. “Isso permitirá realizar estudos que seriam inviáveis em humanos”, observa. Essa nova fase será desenvolvida em parceria com os pesquisadores do Centro Multidisciplinar para Investigação Biológica da Unicamp.

Carla, que em 2006 já havia apresentado parte do trabalho no Congresso Americano de Hematologia, acredita que, no futuro, o estudo poderá ajudar no desenvolvimento de novas drogas para o tratamento da anemia falciforme. “Em alguns casos poderá servir como marcador para determinar se a pessoa pode vir a desenvolver hipertensão pulmonar ou síndrome torácica aguda”, acredita. “Nesse primeiro momento o objetivo era constatar alterações na enzima e relacioná-las à doença. Agora, precisamos estudar os pacientes com hipertensão pulmonar e síndrome torácica aguda para verificar se a alteração na enzima é significativa”, completa.

A  anemia falciforme decorre de uma deformação das hemácias (os glóbulos vermelhos), que têm formato bicôncavo – com depressões de ambos os lados que fazem lembrar uma bala do tipo “soft”. O tamanho da célula vermelha é de 7 micra (1 micra equivale à milésima parte do milímetro), mas a plasticidade lhe permite passar por vasos sanguíneos de até 2 micra. As hemácias são ricas em hemoglobinas, moléculas que dão a cor vermelha ao sangue e têm a função vital de transportar o oxigênio dos pulmões para os tecidos.

Na anemia falciforme, ocorre uma mutação na cadeia beta de hemoglobina. “Quando a hemácia chega aos tecidos e libera o oxigênio, a hemoglobina fica na forma desoxigenada e se polimeriza, distorcendo a hemácia, que se torna rígida e ganha o formato de foice”, explica Fernando Costa. Esta hemoglobina anormal é denominada “S”. Sem flexibilidade para passar por capilares pequenos, as hemácias vão se acumular e obstruir a circulação do sangue. Acontece então a oclusão vascular e as lesões nos tecidos. Como vasos sanguíneos estão por todo o corpo, há risco de lesões em qualquer parte, como sistema nervoso central, pulmões, fígado, rins e baço.

Geralmente, os sintomas aparecem a partir dos seis meses de vida da criança. Os mais freqüentes são crises dolorosas provocadas pela obstrução de pequenos vasos, dores que podem se tornar extremas e passar ao abdômen, tórax e articulações. Há crianças que apresentam inchaço bastante doloroso nas mãos e nos pés, e aquelas muito suscetíveis a infecções bacterianas, como pneumonias e meningites. Na adolescência, úlceras próximas aos tornozelos são comuns, registrando-se, também, casos de atraso no desenvolvimento físico e sexual. As obstruções vasculares no baço, que funciona como um “filtro” do sangue, trazem risco de vida: o órgão vai gradativamente perdendo sua função, o que aumenta muito a possibilidade de infecções nesses pacientes. “Infecções graves representam uma das principais causas de morte nos primeiros anos de vida”, acrescenta o professor.

Herança – A anemia falciforme é uma doença característica de descendentes de africanos, e calcula-se que 8% desta população no Brasil sejam heterozigotos para a hemoglobina S. No entanto, devido à grande miscigenação no país, não se pode afirmar que seja uma doença apenas de negros ou pardos. Estima-se uma média de 1 caso em cada 5 mil recém-nascidos no Estado de São Paulo, onde o “teste do pezinho”, capaz de detectar a doença, já se tornou praxe. “Na Bahia, onde a população de descendentes de africanos é maior, a incidência certamente é mais elevada. Existem populações com 20% de portadores do traço falciforme em certos países da África”, compara.

Todos recebemos dos pais um par de genes da globina beta, responsável pela síntese de hemoglobina. A hemoglobina normal é chamada de A e os indivíduos normais são AA, pois recebem dois genes normais, um do pai e outro da mãe. Quando a pessoa recebe dos pais um gene A e outro S (anormal), torna-se portado r do traço falciforme, sendo AS, um heterozigoto. Recebendo de ambos os pais um gene da hemoglobina anormal, o indivíduo será um homozigoto (SS), portador da anemia falciforme. Deste modo, um homem e uma mulher heterozigotos podem ter filhos normais (AA), com um gene alterado (AS) ou homozigotos (SS). A probabilidade de um casal de heterozigotos ter um filho com anemia falciforme (SS) é de 25%.

Clayton Levy

Do Jornal da Unicamp

 

 



09/30/2007


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