Jairzinho: memórias e histórias do Furacão de 1970



Em um campinho do bairro de Manguinhos, na zona norte do Rio de Janeiro, o professor chama a atenção de um aluno que bateu a falta durante o treino de forma displicente.

O treinador manda voltar a bola. “Tem que bater com cuidado, Dudu. E não adianta ficar bravo. Quanto mais se aborrecer, menos vai raciocinar”, diz. Na entrada do campo, a placa da escolinha de futebol “Furacão da Cidadania” dá a dica de quem é o mestre exigente.

Dudu cobra a falta novamente e Jairzinho faz uma pausa para conversar com o Portal da Copa. Ele é o único jogador que marcou gols em todos os jogos de uma edição de um Mundial. Foram sete gols em seis partidas na campanha do tri.

O furacão de 1970 é técnico de futebol, mas, como está sem clube no momento, dedica-se ainda mais ao projeto que ensina o esporte a 200 crianças e adolescentes da periferia do Rio de Janeiro.

Jairzinho lembra os grandes momentos da carreira com uma riqueza de detalhes que impressiona. Fala da admiração que nutria por Garrincha – quando o via jogar pulando o muro que separava a casa dele do treino do Botafogo – e, principalmente, da satisfação por ter jogado ao lado do ídolo.

Mas nada como a alegria em reviver a Copa de 1970. “Você perdeu o maior espetáculo da Terra”, diz à repórter, que não era nascida na época do tricampeonato brasileiro. O furacão enumera os motivos que fizeram aquele grupo conquistar a tão sonhada Taça Jules Rimet.

Ele também explica as razões do fiasco do Brasil na Copa de 1966, na Inglaterra. “Primeiro, o excesso de convocados. Segundo, você ter no elenco jogadores que já tinham cumprido o ciclo e não tinham mais tanta energia” diz.

Jairzinho comenta ainda as dificuldades enfrentadas em 1974 por uma equipe marcada por lesões. “Joguei a Copa toda com uma contratura. Eu chorava porque queria jogar mais do que joguei em 70, e não consegui. Foi uma tristeza inesquecível”, conta.

Por fim, o furacão fala do futebol atual que, segundo ele, sofre do problema da falta de renovação. “Sempre fomos um país revelador. Recentemente só revelamos o Neymar e o Paulinho... em quantos anos?”, questiona.

Mesmo assim, Jairzinho exalta o amor à camisa da Seleção, fator que, aliado à vantagem de jogar em casa, pode dar o hexacampeonato ao país em 2014. “Eu acredito no Brasil, até porque não tem mais bicho papão no futebol mundial”. Confira:

Botafogo e Garrincha 

Eles falam que comecei como gandula porque eu morava na General Severiano, ao lado do campo do Botafogo. Eu e meus colegas pulávamos o muro para ver o treino e jogar peladas atrás do campo. O goleiro gostava muito de todos nós. Éramos mais de 20 garotos. O nome dele era Gilson, e nos tratava como amigo. Sempre mandava uma bola pra gente.

O Botafogo era uma Seleção. Quem chamava atenção era Nilton Santos, Didi, bicampeões do mundo, e principalmente o Garrincha, o maior jogador de todos os tempos, que era meu ídolo e é meu ídolo até hoje.

Como eu gostava de fazer gol, evidentemente Garrincha era a minha grande referência. Garrincha fez chover. Ele driblava um, dois, três. Fez gol de letra, de perna esquerda, de falta, de cabeça. Fez tudo que um jogador podia fazer e se consagrou como o maior jogador da Copa de 1962.

Ousadia recompensada 

Tive o grande prêmio em 1963, quando voltei do Pan-Americano. O treinador do Botafogo profissional era o Zolo Rabelo, e o treinador do juvenil era o Paraguaio. O Zolo pediu ao Paraguaio que nós nos apresentássemos a ele, para avaliar quem podia ser aproveitado no profissional. Eu lembro que treinávamos de manhã e o profissional de tarde.

Minha mãe sempre comprava o Jornal dos Sports. Lembro que peguei o jornal de manhã e olhei: “Zolo Rabelo, preocupado com a má fase de Quarentinha, pensa em pedir a contratação de um centroavante”. Aí eu pensei: “Ih, é a minha chance!” De tarde, eu disse ao Zolo: “Sr. Zolo, quero te comunicar uma coisa. Eu não jogo só de ponta-direita, eu jogo de centroavante”. Aí ele disse que ia dar uma olhada. Ali começou a surgir minha grande oportunidade.

Na primeira vez que fui treinar no profissional, no meu lado direito estava o Garrincha, na diagonal, o Didi. Eu pensei: “Caramba, o meu ídolo e o maior meia da história do futebol até então!”. Do meu lado esquerdo, o Amarildo, o homem que substituiu Pelé em 1962 e não deixou dúvida. Lá na ponta-esquerda, o Zagallo, o cara que inventou o 4-3-3. Com todas essas feras, eu cresci.

O Didi falou assim: “Jair, eu já te conheço, fica tranquilo. Toda vez que eu passar do meio campo, você se prepara que vou botar você tantas e quantas vezes na cara do Manguinha (o Manga, o goleiro). Em 15 minutos, eu tinha feito dois gols e nunca mais saí de lá.

Estreia improvisada 

Eu fui como reserva do Garrincha. Fiquei contente. Sabia que só ia jogar se o Garrincha sofresse contusão ou fosse expulso. Mas pensei: “Estou numa Copa do Mundo”.

Veio o primeiro jogo, contra a Bulgária, e o Feola tinha o hábito de escalar a equipe uma hora antes do jogo. Fomos para o vestiário e ele foi citando os nomes desde o Gilmar até o ataque. Quando chegou na ponta esquerda, falou: “Pela esquerda, Jairzinho”.

Quando ele falou isso, eu pensei: “Meu Deus, vou jogar uma Copa do Mundo!” Veio essa emoção, essa adrenalina, mas por outro um contraste, porque eu nunca havia treinado com o Feola como ponta esquerda. Só que eu era peladeiro, gostava de jogar em todas as posições para poder sentir as dificuldades que a posição podia proporcionar. Falei: “Vou jogar, não quero saber”. E joguei bem. Mas não fomos bem sucedidos nos outros jogos.

Erros de 1966 

Primeiro, ter excesso de convocados. Foram 44 jogadores, acredita? Quatro em cada posição. Foi muito rápido, um mês de preparação. Cada vez que íamos para uma cidade, ia cortando, cortando. Segundo, você ter conhecimento do jogador que já cumpriu com o seu ciclo e já não tem mais energia, até porque a preparação física nessa época não era nada.

Jogadores que já tinham cumprido o ciclo, como Gilmar, Djalma Santos, Bellini, Orlando, Altair, Zito. O Feola repetiu eles todos. Para mim foi uma experiência de como não se deve fazer um planejamento.

Cinco números 10 em campo 

Você perdeu o maior espetáculo da Terra, que foi a Copa de 70. Vamos pelo início. Mario Lobo Zagallo e toda a comissão técnica criaram um cronograma de preparação de dois meses e meio. Outro ponto: fizemos um teste de todos os seguimentos, uma avaliação de resistência, de velocidade, de salto, flexibilidade. Todo o cronograma para fortalecer o grupo. E foram 23 jogadores, não 44. Dois períodos de treino por dia, com um total de seis horas.

Mas o ponto mais importante foi a inteligência do Zagallo de ser, até hoje no mundo, o único treinador de Seleção que colocou em campo cinco números 10, que faziam a diferença no Brasil: Pelé, Jairznho, Rivellino, Tostão e Gérson. E foi uma convulsão na Copa, porque todos os adversários não saibam como o Brasil jogava.

Tinha outro ponto favorável, que era a evolução da tecnologia, que não tinha em 66, que era o videotape. Víamos como jogavam os adversários. Quando fomos jogar a decisão contra a Itália, a gente já sabia como eles atuavam.

Do meio campo para a defesa deles, eles faziam marcação homem a homem. O Gigi Riva, que era o atacante mais perigoso deles, não voltava para marcar. Quando fazíamos o treinamento, era para eu tirar o Facchetti, na posição de lateral esquerdo, e levá-lo para a lateral direita. E funcionou. Assim saiu o gol do Gérson, o gol de cabeça do Pelé, meu próprio gol, já centralizado, e o quarto do Carlos Alberto, já que o espaço estava todo aberto.

Nós também agradecemos muito à Seleção da Alemanha. Nós não jogamos nenhuma prorrogação e a Itália jogou a prorrogação contra a Alemanha. Eles sentiram o cansaço no segundo tempo. Quando acabou, você nem imagina a vibração total, nós todos chorando de alegria. Nunca vibrei tanto na minha vida.

Infográfico sobre a Copa do México, que consagrou a seleção brasileira com o tricampeonato mundial

Recorde e ducha nos rivais 

Joguei a maior Copa da minha vida. Eu fiz gol em todos os jogos. Sou o único jogador de Seleção até hoje que fez gol em todos os jogos de uma Copa.

Foram seis jogos, eu fiz sete gols. Desde o lençol no Viktor (goleiro da Tchecoslováquia) até o gol do título contra a Itália. Eu fiz os gols que, no popular do futebol, esfriavam o adversário.

Contraturas em série 

Eu já tinha o gosto da derrota, porque pior do que 66 não poderia ser, quando fomos eliminados na primeira fase. Em 74, fomos para a preparação com dois graus, três graus abaixo de zero. Isso influenciou nos nossos organismos e tivemos uma série de sequelas, como contraturas.

Alguns jogadores ficaram até fora. Teve o Leivinha, que se machucou, o  Zé Maria, com aquela saúde toda, teve contratura, o Piazza teve, Clodoaldo teve, e eu tive contratura no primeiro jogo, contra a Iugoslávia. Nunca falei isso, joguei a Copa toda com essa dor. E eu chorava porque queria jogar mais do que eu em 70, mas não consegui. Foi uma tristeza inesquecível. 

Que fim levaram os craques?

No futebol daquela época, cada clube tinha seis craques. No de hoje, no Brasil, nenhum clube tem craque mais. O nosso possível craque, que estava se formando, foi embora. Hoje quem é o craque do futebol brasileiro? O Seedorf?

Eu fico imaginando o Neymar fora da Seleção Brasileira... E aí? Hoje quem é o 10 que faz a diferença? Porque o Neymar é 11. O Neymar precisa ser orientado, pois é um jogador de alta qualidade técnica e não pode se fixar somente em um setor. Ele tem que interagir, tem que jogar do meio pra frente em todas as posições. Tem que olhar e enxergar onde tem a falha do adversário e trabalhar em cima, no ponto fraco do adversário. 

Escassez de revelações

Hoje você quer ver um grande espetáculo e não vê. Esta aí o Cruzeiro, quase campeão brasileiro, mas não é um time sensação. Ninguém fala que tal jogador do Cruzeiro é um espetáculo, todos falam do grupo. O problema é a falta de renovação. Sempre fomos um país revelador. Recentemente só revelamos o Neymar e o Paulinho. Em quantos anos?

Outra coisa é que os jogadores que vão para a Seleção não se conhecem. Um está na Itália, outro na Espanha, outro na Alemanha, outro na França, na Rússia.

Cinco ou seis países diferentes, cada um com uma filosofia. E, se você não é craque, tem que se adaptar à filosofia de jogar desse país. Depois, na Seleção, tem de se adaptar. Será que vai ter tempo? Eu toda hora estava jogando contra o Pelé, Tostão, Rivellino. 

A diferença do arroz e feijão

Eu acredito no Brasil, até porque não tem mais bicho papão no futebol mundial. Se você vir aqui para o nosso lado, só tem a Argentina, porque tem o Messi. Mas nós temos o Neymar. Vai ser Messi e Neymar disputando quem vai ganhar o título. E temos hoje uma Seleção europeia que vem deslumbrando o mundo numa renovação maravilhosa que é a Alemanha.

Nós somos favoritos porque o arroz e o feijão são nossos. Nós vamos comer arroz e feijão, eles não. A água é nossa, eles vão ficar com medo de beber a nossa água. A torcida é nossa, nós vamos jogar no calor, todos esses pontos nos favorecem. E dentro de campo, tem o amor à camisa, a vontade de ser campeão.

Fonte:
Portal da Copa



04/11/2013 17:56


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