O pecado original da República
Ano de 1889: cem anos da Revolução Francesa. A corrente jacobina dos republicanos brasileiros julgava ser essa a ocasião ideal para a proclamação de nossa República, que deveria, segundo ela, ser feita revolucionariamente pelo povo lutando nas ruas e nas barricadas. O principal porta-voz dessa corrente, Silva Jardim, pregava abertamente o fuzilamento do conde d’Eu, o marido da princesa Isabel. Sendo o conde um nobre francês, seu eventual fuzilamento daria à revolução brasileira um sabor especial, pois lembraria a morte na guilhotina do rei Luís XVI.
Um ponto central da propaganda republicana era a idéia de autogoverno, do povo governando a si mesmo, do país se autodirigindo, sem necessidade de uma família real de origem européia e de um imperador hereditário. Das três correntes principais da propaganda, a jacobina era a que atribuía maior protagonismo ao povo.
A corrente mais forte era a liberal-federalista, de derivação anglo-americana. O liberalismo vinha do lado anglo, da Inglaterra; o federalismo, do lado norte-americano. O liberalismo predominou no Manifesto Republicano de 1870, mais bem representado por Saldanha Marinho, e o federalismo, no projeto de constituição dos republicanos paulistas de 1873, cujo representante mais influente era Campos Sales. Por sua ascendência liberal, oriunda dos liberais do Império, ela admitia participação popular, embora sem lhe atribuir o primeiro plano, como faziam os jacobinos. Pelo lado federalista, no entanto, não havia muita simpatia pelo povo. Interessava-lhe, sobretudo, o autogoverno estadual a ser conquistado pelo federalismo.
A terceira corrente era a positivista, também de filiação francesa, não da Revolução, mas do filósofo Augusto Comte. Os positivistas eram os únicos que não previam papel ativo para o povo na República. Os protagonistas do regime seriam, no campo espiritual, os próprios positivistas, no campo material, os empresários. Os positivistas não admitiam direitos, apenas deveres. O dever do povo, ou dos trabalhadores, era trabalhar, o dever dos empresários e o do Estado era cuidar do bem-estar do povo.
Prometida pelas duas principais correntes da propaganda, cabe perguntar como a democracia política, a incorporação do povo, foi posta em prática pelo novo regime. A primeira década republicana foi marcada pela presença de militares no governo, por agitações, revoltas, guerras civis. O povo fez sentir sua presença durante o governo do marechal Floriano Peixoto, apoiado pelos jacobinos. A participação jacobina atingiu o ponto máximo na tentativa de assassinato do presidente Prudente de Morais, em 1897. A partir do próximo presidente, Campos Sales, a corrente liberal-federalista, sob a hegemonia de São Paulo, passou a predominar, cada vez mais federalista, cada vez menos liberal.
Até 1930, pode-se dividir o povo da República em três partes. Imaginemos um grande círculo contendo em si círculos menores. O grande círculo representa o total da população do país; os círculos menores, as parcelas dessa população dividida de acordo com sua participação política. Movimentando-nos do centro para a periferia, chamemos o círculo menor de povo eleitoral, isto é, aquela parcela da população que votava; o círculo seguinte, um pouco maior, representa o povo político, isto é, a parcela da população que tinha o direito de voto de acordo com a Constituição de 1891; o círculo seguinte é o do povo excluído formalmente da participação via direito do voto (ver desenho abaixo).
De acordo com os dados do censo de 1920, teremos uma população total, representada pelo círculo maior, de 30,6 milhões. Este é o povo do censo que, pelo menos em tese, possuía direitos civis. Mas quantos desses cidadãos civis eram também cidadãos políticos, quantos pertenciam ao corpo político da nação? Para calcular esse número, temos primeiro que deduzir do total os analfabetos, proibidos por lei de votar. O analfabetismo, na época, atingia 75,5% da população. Feito o cálculo, restam 7,5 milhões. Depois, é preciso descontar as mulheres. Embora a lei não lhes negasse explicitamente o direito do voto, pela tradição não votavam. Ficamos com 4,5 milhões. Os estrangeiros também não tinham o direito do voto. Nosso número cai para 3,9 milhões. Finalmente, os homens menores de 21 anos também não votavam. Ficamos reduzidos a míseros 2,4 milhões de brasileiros legalmente autorizados a participar do sistema político por meio do voto. Ficam fora do sistema, excluídos, 28,2 milhões, 92% da população.
Se eram poucos os que podiam votar, menos ainda eram os que de fato votavam. Nas eleições presidenciais de 1910, uma das poucas em que houve competição, disputando Rui Barbosa contra o marechal Hermes da Fonseca, a abstenção foi de 40%. Os votantes representaram apenas 2,7% da população. No Rio de Janeiro, capital da República, onde 20% da população estava apta a votar, compareceu às urnas menos de 1%. Votar na capital era até mesmo perigoso devido à ação dos capangas a serviço dos candidatos. Quem tinha juízo ficava em casa. Como disse Lima Barreto de sua República dos Bruzundangas: “[Os políticos] tinham conseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este elemento perturbador – o voto”. A eliminação do voto completava-se com a fraude. Ninguém podia ter certeza de que seu voto seria contado a favor do candidato certo.
Significa isso que o povo da Primeira República não passava da carneirada dos currais eleitorais e da massa apática dos excluídos? Seguramente que não. Por fora do sistema legal de representação havia ação política, muitas vezes violenta. Entre os poucos que votavam, os que escolhiam não votar e os muitos que não podiam votar, havia o que chamo de povo da rua, isto é, a parcela da população que agia politicamente, mas à margem do sistema político, e às vezes contra ele. É difícil calcular o tamanho desse povo. Podemos apenas surpreendê-lo em suas manifestações. E podemos também dizer que ele existia tanto nas cidades como no campo.
Nas cidades, sobretudo nas maiores, a tradição de protesto vinha de longe e manifestava-se o mais das vezes nos quebra-quebras. Ela se intensificou a partir da proclamação da República, atingindo o ponto máximo no protesto contra a vacinação obrigatória em 1904. A novidade republicana ficou por conta do movimento operário em fase de organização. Foram inúmeras as greves que atingiram a capital da República e São Paulo, além de outras capitais. Seu auge verificou-se durante a Primeira Guerra Mundial e nos anos que a seguiram.
Calculou-se que 236 greves foram feitas na capital e no estado de São Paulo entre 1917 e 1920, envolvendo cerca de 300 mil operários. Em torno de 100 mil operários participaram da greve geral de 1917 no Rio de Janeiro. Outra novidade republicana foi a participação política dos militares, jovens oficiais e praças. A mais conhecida e mais dramática dessas manifestações foi a revolta dos marinheiros contra o uso da chibata, em 1910, em que se destacou o marinheiro João Cândido.
O efeito político das manifestações urbanas foi limitado porque elas se davam fora dos mecanismos formais de representação. O próprio movimento operário, na medida em que era orientado pelo anarcossindicalismo, sobretudo em São Paulo, fugia da participação eleitoral e nunca organizou um partido político duradouro até que fosse fundado o Partido Comunista, em 1922.
No mundo rural, foi igualmente intensa a participação do povo. Aí também havia uma longa tradição que foi intensificada pelas mudanças políticas introduzidas pelo novo regime. As figuras centrais das agitações rurais eram beatos e cangaceiros. O mais dramático de todos esses movimentos, pelo número de mortos, foi sem dúvida o de Antônio Conselheiro nos sertões da Bahia. A seu modo, os beatos do Conselheiro agiram politicamente, ao recusar o pagamento de impostos, ao rejeitar mudanças nas relações entre Igreja e Estado. Lutando contra a “lei do cão” do novo regime, os rudes sertanejos humilharam o Exército, que contra eles lançou quatro expedições, e deram um exemplo único em nossa história de fidelidade incondicional às crenças adotadas.
Movimento semelhante ao de Canudos foi o do Contestado, localizado em terras disputadas entre Paraná e Santa Catarina. O monge José Maria dera-lhe início ainda no Império. Proclamada a República, seu sucessor reagiu contra o que chamava de “lei da perversão”, o equivalente da “lei do cão” do Conselheiro. A partir de 1911, outro sucessor de João Maria, José Maria, lançou um manifesto monarquista e nomeou imperador um fazendeiro analfabeto. Criou uma sociedade assemelhada ao comunismo primitivo, sem dinheiro e sem comércio. Canudos e Contestado foram combatidos e destruídos com violência pelo Exército, que não hesitou em usar canhões contra sertanejos pobremente armados.
No Ceará, padre Cícero organizou uma comunidade sertaneja que, à época de sua morte, em 1934, contava 40 mil pessoas. Padre Cícero não contestava o sistema, como o Conselheiro e José Maria. A seu modo, agindo mais como coronel político, fundou uma República paternalista muito próxima da população. Manipulando valores tradicionais e colocando-os a serviço da modernidade, reduziu a distância entre o legal e o real, aproximou da população o poder. Alguns de seus seguidores, como os beatos José Lourenço, Severino e Senhorinho, fundaram comunidades radicais ao estilo do Contestado. Padre Cícero entendeu-se com os poderes da República e foi tolerado. Os três beatos foram massacrados juntamente com seus seguidores.
Os cangaceiros, frutos do mesmo meio social que gerou os beatos, mantinham, como padre Cícero, contatos estreitos com os poderes da República. Mas fugiam ao controle dos coronéis e dos governos estaduais. Foram também combatidos sem trégua e destruídos. Beatos e cangaceiros representavam formas de organização e de reação construídas à margem do sistema político. Canudos, Contestado, e mesmo o Juazeiro do padre Cícero, eram modelos alternativos de República. Apesar de inviáveis por serem produtos do isolamento geográfico e da imensa distância cultural entre a população e o mundo oficial, essas Repúblicas foram destruídas a ferro e fogo e só deixaram traços na memória popular. A exceção foi Canudos, que foi imortalizado por Euclides da Cunha, não por acaso um intelectual estranho no ninho das elites.
O grosso do povo excluído era mantido sob controle pela própria organização social do mundo rural, baseada na grande propriedade. O povo eleitoral era enquadrado pelos mecanismos de cooptação e manipulação. O povo da rua era quase sempre tratado à bala, nas cidades ou no campo.
Mas a República usou também métodos menos violentos para lidar com seus excluídos. Produziu missionários do progresso que se puseram a catequizar os cidadãos incultos e tratar os doentes. Foram missionários do progresso Pereira Passos, reformador do Rio de Janeiro, Osvaldo Cruz, saneador da cidade, Artur Neiva e Belisário Pena, saneadores dos sertões. O maior de todos eles, no entanto, foi o general Rondon, positivista ortodoxo, que dedicou boa parte da vida à proteção dos indígenas. Muito superiores pelos métodos aos que destruíam pela força os movimentos populares, esses missionários não estiveram imunes a uma visão tecnocrática e autoritária. O povo para eles era massa inerte e analfabeta a ser tratada, corrigida e civilizada. De certo modo, eram messias leigos, com a diferença de que não tinham o apoio popular dos messias do sertão.
A Primeira República, em seus 41 anos de existência, não fez jus às promessas da propaganda de promover a ampliação da participação política, o autogoverno do povo. Não unificou os três povos, não os incorporou. Não transformou em cidadãos o jeca doente de Monteiro Lobato e dos higienistas, o áspero sertanejo de Euclides, os beatos de Canudos e do Contestado, o bandido social do cangaço, o anarquista do movimento operário.
A ausência de povo, eis o pecado original da República. Esse pecado deixou marcas profundas na vida política do país. Quando, em meio à crise de nossos dias, assistimos ao aumento da descrença nos partidos, no Congresso, nos políticos, de que se trata se não da incapacidade que demonstra até hoje a República de produzir um governo representativo de seus cidadãos?
José Murilo de Carvalho é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de A cidadania no Brasil: o longo caminho (Civilização Brasileira, 2001).
(RHBN. Nº 5. Novembro 2005. PP. 20-24)
Revista de História da Biblioteca Nacional
01/05/2012 20:11
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