Ocupação de Petrópolis não respeitou plano original da cidade
Fui criada em Petrópolis. Escutei as histórias que meus avós contavam sobre barreiras e enchentes, inclusive de como perderam a primeira casa. E quantas vezes eu, meus irmãos e minha mãe não fomos surpreendidos pelas águas dos Rios Quitadinha ou Palatinado; quando estávamos na Rua do Imperador ou ficávamos ilhados na escola sem ter condições de voltar para casa, ou ainda quando nos pendurávamos no muro atrás do sobrado onde morávamos, para ver o que a enxurrada trazia pelo Rio Bingen abaixo, nos dias de chuva?
Também foi lá em Petrópolis que comecei a trabalhar como jornalista, ainda cursando a faculdade de jornalismo no Rio de Janeiro. No dia 2 de dezembro de 1981, trabalhava após o expediente normal, quando o jornal foi invadido pelas águas do Quitandinha. Naquela noite, não paramos mais. Após constatar que a rotativa estava livre das águas saímos para as ruas e testemunhamos a tragédia daquele ano, minha primeira grande cobertura desse tipo e que, da mesma forma que hoje, atraiu os grandes veículos de comunicação da capital sequiosos de notícias numa época geralmente de baixa produção de manchetes escandalosas boas para aumentar as vendas.
Ao longo desses 30 anos, nas mais diversas situações, acompanhei de perto ou à distância, pequenas e grandes catástrofes e os efeitos das tragédias na vida de centenas de famílias. Já não eram mais novas catástrofes, repetiam-se ciclicamente como de fato revelaram os levantamentos que pude fazer na documentação existente na cidade.
Petrópolis foi constituída a partir do decreto imperial de 1843. Arrendadas as terras ao major Júlio Frederico Koeler (militar e engenheiro nascido na região banhada pelo Rio Reno, na Alemanha e naturalizado brasileiro) a cidade teve um planejamento urbanístico tão bem detalhado que é apontada por alguns historiadores e estudiosos como a primeira cidade planejada do Brasil. Do projeto constam detalhes sobre as áreas mínimas dos terrenos e a proteção das matas das encostas. E, principalmente, Koeler inverte a lógica portuguesa. Os rios, não mais corriam nos fundos das casas, mas na frente e não mais seriam utilizados como coletores de dejetos, mas se integrariam ao projeto urbanístico como já acontecia na Europa, de onde ele viera.
No art. 6º das instruções para a execução do decreto imperial fica estabelecida a reserva, no alto das montanhas e colinas, das matas necessárias à conservação das águas. O objetivo era evitar o esgotamento dos recursos hídricos assim como o deslizamento das encostas. Para construir Petrópolis, Koeler realizou um levantamento topográfico minucioso durante mais de um ano. Portanto, naquela época já era de conhecimento dos fundadores da cidade a conformação dos terrenos íngremes e rochosos propícios à erosão quando submetidos às fortes chuvas de verão. E no artigo 15 os foreiros estavam obrigados "a velar pela conservação das árvores destinadas ao assombramento das estradas, ruas, caminhos e praças e das matas reservadas para construção sitas em sua frente ou fundos." Dom Pedro II, com sua visão ampliada e além do seu tempo, já naquela época contratava especialistas e solicitava projetos de proteção e preservação.
Tudo isso foi deixado de lado, alguns anos mais tarde e, mais de um século depois, o avanço da especulação imobiliária fincou seus tentáculos sobre o casario da área central e vales próximos, num cenário em que as primeiras crises da indústria têxtil geravam suas vítimas em todo o país e na América Latina, assim como em Petrópolis, um centro têxtil que registrava seu declínio econômico gradativo.
Em processos sucessivos de crescimento motivados por fatores diversos, a cada década restavam - para as populações pobres que fugiam do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e até da Bahia, em busca de melhor qualidade de vida - a beira dos rios, destruindo-se as matas ciliares; os fundos de vales, dispensados pela elite; e finalmente as encostas. Em meados da década de 70 permitiu-se a construção de prédios com mais de 12 andares na área central, quebrando-se definitivamente os paradigmas propostos por Koeler, no plano original. Koeler aceitava um crescimento vertical moderado, mas desde que a altura das construções fosse limitada em função da largura das ruas. Além disso, passou-se a permitir construções nos distritos livremente, inclusive Itaipava.
De tudo isso, é importante frisar:
1- como faz mal a nossa falta de memória;
2- quão omissos têm sido os governantes ao longo dos anos, permitindo que a ocupação do nosso solo continuasse ocorrendo sem planejamento, mas, sobretudo, para atender a sanha dos ambiciosos, inclusive dos políticos populistas que se embriagam de votos à custa da ignorância do povo;
3- quão responsável são a classe política por ser patrocinada e ao mesmo tempo apoiar os grupos que permitiram que os fatos assim se sucedessem; e nós, eleitores, que, por omissão ou falta de informação, continuamos mantendo, no poder, políticos que só se voltam para o próprio umbigo.
4- e, o que acho mais importante: como faz falta a educação, nos mais diversos sentidos. Sem ela, determinados padrões se repetem, infelizmente.
E, por fim, continuo perguntando, como fiz em artigo publicado em janeiro de 82: Para onde transferir as famílias levadas a viver nas áreas de risco? Até quando vamos continuar assistentes impotentes das tragédias humanas, agora postadas segundo a segundo na rede mundial, enquanto ouvimos técnicos dizerem que poderiam ter sido evitadas? O Plano de Koeler para Petrópolis já dizia isso há 168 anos!
Sobre o assunto, vale uma visita à página do Instituto Histórico de Petrópolis (www.ihp.org.br), para a leitura do trabalho de Manoel de Souza Lordeiro sobre a atualidade do plano urbanístico de Koeler.
Ester Monteiro / Rádio Senado
26/01/2011
Agência Senado
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