Parlamentares na mira do Supremo







Parlamentares na mira do Supremo
BRASÍLIA - O Congresso promulgou ontem a emenda constitucional que restringe a imunidade parlamentar. A partir de hoje, deputados e senadores acusados de crimes comuns poderão ser julgados pelo Supremo Tribunal Federal sem licença do Legislativo.
Há dois senadores e 22 deputados na mira do STF. Um dos primeiros a responder processo deve ser Luiz Otávio (PPB-PA), acusado de desviar recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O deputado Ibrahim Abi-Ackel (PPB-MG), relator do projeto da emenda, é outro. A acusação é peculato em favor do filho, Paulo Abi-Ackel.

Ministro - O caso remonta a 1984, quando Abi-Ackel era ministro da Justiça do governo militar. Paulo teria usado servidores, carros, viagens, combustível, diárias e dependências do Ministério da Justiça para conseguir permanência de estrangeiros no país, portes de arma e declarações de utilidade pública para entidades filantrópicas.
''Essa acusação será pulverizada e destruída'', diz o ex-ministro. ''É uma coisa tão destituída de importância que a Câmara nunca decidiu apreciar o pedido do Supremo''.

Aécio - A redução da imunidade foi aprovada no Senado em 1996 e ficou por cinco anos nas gavetas da Câmara. Só voltou à ordem do dia por decisão do presidente da Câmara dos Deputados, Aécio Neves (PSDB-MG), tomada este ano. Depois de saborear o triunfo pessoal, Aécio estava ontem no meio de mais uma batalha: a aprovação do Orçamento. O presidente da Câmara tentou negociar com o líder do PT, deputado Walter Pinheiro (BA) o fim da obstrução oposicionista.
Caberá à Procuradoria Geral da República a iniciativa de pedir a reabertura de pelo menos oito processos contra parlamentares brecados pelo Congresso. Essa é a avaliação da assessoria do presidente do STF, ministro Marco Aurélio de Mello. Um dos casos que podem ser reabertos é o do senador Ronaldo Cunha Lima (PSDB-PB). Em 1994, Cunha Lima feriu com três tiros o então governador da Paraíba, Tarcísio Buriti.

Jurisprudência - O procurador-geral, Geraldo Brindeiro, ainda não avaliou se a emenda permite o desarquivamento. O STF só pode pronunciar-se caso Brindeiro consultar o tribunal. Marco Aurélio adianta: ''A jurisprudência diz que o pedido de licença é um procedimento administrativo e como tal pode ser revisto''.
Além de Luiz Otávio, Abi-Ackel e Cunha Lima, estão na mira os deputados Armando Abílio (PSDB-PB), Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), Delfim Netto (PPB-SP), Edison Andrino (PMDB-SC), Enio Bacci (PDT-RS), Osório Adriano (PFL-DF) e Ricardo Barros (PPB-PR).


Família Covas troca Tasso por Serra
SÃO PAULO - A família do falecido governador Mário Covas desembarcou da pré-candidatura ao Planalto do governador do Ceará, Tasso Jereissati, e, com a cúpula do tucanato paulista, passou a apoiar o nome do ministro da Saúde, José Serra. ''A atitude (abrir mão da pré-candidatura) está de acordo com o caráter e o princípio democrático de Tasso. Ele é um homem de partido e, se não tem como tornar viável a candidatura, está abrindo mão dela pela unidade do PSDB'', disse ontem a advogada Renata Covas Lopes, filha do governador e porta-voz da família.

Ela considera definitiva a decisão de Tasso e diz que a família cumpriu o último desejo de Covas ao manifestar publicamente o apoio a Tasso, numa festa promovida na capital paulista em 22 de outubro. ''O nome agora é Serra e vamos defendê-lo até o fim'', afirma Renata, que ontem participou com o irmão, Mário Covas Neto, o Zuzinha, e o governador Geraldo Alckmin da solenidade de integração dos comandos das polícias Civil e Militar. Renata classificou de ''bobagem sem tamanho'' as especulações de que Tasso poderia vir a apoiar a candidatura da governadora do Maranhão, Roseana Sarney (PFL), à Presidência da República. ''Ninguém está brincando de retirar candidatura. Ele saiu para ajudar a viabilizar o nome do Serra.''

Seguindo a análise do pai, os filhos acham que a aliança que permitiu a eleição e a reeleição de Fernando Henrique Cardoso não sobreviverá. ''A aliança tinha sentido com o presidente Fernando Henrique como pólo de aglutinação. Agora é uma costura difícil e não funciona automaticamente'', disse Zuzinha, do PSDB paulista. ''Aliança não é um casamento para a vida inteira.''
Já o governador Geraldo Alckmin anunciou que vai trabalhar pela manutenção da aliança que elegeu Fernando Henrique. Ele também acha que a decisão de Tasso Jereissati é irreversível. ''Hoje não tem outro nome. É o Serra.''


FH: ''Brasil nunca chegará a essa situação''
Presidente pede aprovação rápida do Orçamento até o Ano Novo e diz que realidade brasileira é diferente da argentina

BRASÍLIA - Antes de viajar a Montevidéu, Uruguai, para a reunião do Mercosul, o presidente Fernando Henrique Cardoso se solidarizou com a Argentina, reafirmou a importância do Mercosul e disse que o Brasil está sendo conduzido de uma maneira ''segura, sem tropeços, mas, naturalmente, com resistências''. Segundo Fernando Henrique, não há possibilidade de o país se contaminar com a crise institucional argentina. ''Não temos crise social, não temos crise política'', afirmou.

O presidente aproveitou a oportunidade e pediu rapidez na votação do Orçamento de 2002, o que mostraria ao mundo que o país está no caminho certo e garantiria tranqüilidade num momento de turbulências internacionais como o atual. ''Faço um apelo ao Congresso: que acelere as decisões sobre o Orçamento'', disse.
Enquanto na Argentina o presidente Fernando de la Rúa não consegue apoio para seu Orçamento, Fernando Henrique insistiu que a situação aqui é diferente e pediu que o Congresso Nacional aprove o projeto até o Ano Novo.

''É preciso verificar que nós, aqui, estamos discutindo aumentos e redução de custos, redução da gasolina e aumentos de salário, enquanto que, em outros países, está se discutindo a redução de salários. Nas minhas mãos, o Brasil nunca chegará a uma situação desse tipo, de ter que discutir redução de salários'', comparou o presidente.
De acordo com Fernando Henrique, caso tenha que se esperar até fevereiro para a votação, haverá ''uma perda para o povo, perda de investimentos''. Ele criticou alguns setores da oposição por estarem emperrando o Orçamento.
Seguem trechos da entrevista coletiva concedida à imprensa, antes do embarque do presidente a Montevidéu.

- Como o senhor vê a reação do mercado em relação à situação da Argentina?
- Tenho acompanhado, sem muita atenção, porque tive um dia muito atribulado. O mercado tem reagido bem à situação da Argentina, o que é normal, porque o Brasil tem governo, tem um povo que está trabalhando, tem rumo. E acho que está reagindo muito bem o mercado.

- O senhor conversou com o presidente de La Rúa ontem à noite?
- Certamente, conversei com o presidente de la Rúa, que me disse que vai à reunião de Montevidéu. Então, vou também à reunião de Montevidéu.

- Que tipo de contaminação pode haver da crise argentina, institucionalmente, aqui no Brasil, onde se espera uma eleição?
- Nenhuma, nenhuma. A situação do Brasil é totalmente diferente, institucionalmente. Não temos crise social, não temos crise política. Os Poderes se entendem. Vivemos em um clima de harmonia. Cada um define sua posição como quer, naturalmente, cada Poder. Ainda ontem, tive o prazer de receber a visita do presidente do Supremo Tribunal Federal. O Executivo mantém um relacionamento correto com o Judiciário. Com o Congresso, da mesma maneira. O Congresso toma suas deliberações. O Executivo procura absorver essas deliberações, mesmo quando contrariam - como é natural, ele tem que fazer isso mesmo - a proposta inicial do Executivo, com responsabilidade. Nunca es queço que meu dever maior é com o país e não com eleição, nem com agradar este ou aquele. É ver se há possibilidade de tomar decisões que permitam ao Brasil continuar em um caminho de correção, na parte econômica e na parte social. Então, não existe paralelo. A situação brasileira é tranqüila. Não há dificuldade nessa matéria. O meu apelo não é um apelo com o temor de intranqüilidade. É com a vontade de ver o Brasil, mais depressa, mostrar ao mundo que tem um caminho firme e sustentado pelo país.

- O senhor teme um golpe na Argentina?
- Não.


Mais FGTS na compra de Furnas
Governo estuda aumentar de 50% para 60% a parcela do fundo que poderá ser usada na compra de ações da estatal
O governo estuda aumentar a parcela do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) que os trabalhadores poderão usar na compra das ações de Furnas Geração, estatal que surgirá da divisão da atual Furnas entre geração e transmissão, conforme já anunciado pelo governo. A proposta considerada é aumentar o percentual de 50% - patamar permitido para a compra de ações da Petrobras com o dinheiro do fundo, no ano passado - para 60%.
As ações de Furnas Geração que excedem o controle do governo serão oferecidas ao público, doméstico e internacional, no ano que vem, após a conclusão de um complexo processo de reestruturação societária das empresas estatais elétricas - Eletronorte e Chesf, além de Furnas - anunciado esta semana pelo governo, e detalhado ontem pelo pelo presidente da BNDESpar, o braço de participações do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, Eleazar de Carvalho.

Reforço - Por trás da pulverização, justifica o governo, está o objetivo de fortalecer o mercado de capitais brasileiro. Todas as estatais serão divididas entre geração e transmissão, mas o controle das empresas que surgirão daí continuará com o governo, que agora descarta completamente a hipótese de promover mais privatizações até o fim de 2002, até pela falta de interesse do mercado. Saíram frustradas as tentativas de leiloar por exemplo a Cesp-Paraná e a Copel, considerada a jóia da coroa do setor elétrico.
A idéia é manter o nome Furnas para a empresa que cuidará dos ativos de geração, e que terá as ações oferecidas ao público. Os acionistas de Furnas serão os mesmos da Eletrobrás, além dos atuais minoritários da empresa, cuja participação será ''devidamente ajustada por conta da incorporação'', segundo consta do texto explicativo distribuído pelo governo.

Furnas se tornará, a partir de um complexo projeto societário, uma empresa independente da Eletrobrás, e não mais uma subsidiária. Para chegar até essa empresa independente, o governo idealizou antes a cisão da Eletrobrás, a criação de uma holding, a Eletro-Holding, e de uma empresa temporária, a Geradora Transitória, que será absorvida por essa holding. A holding terá como acionistas os mesmos acionistas da Eletrobrás. A parte da transmissão de Furnas será batizada de Eletrobrás Transmissão.


Muito imposto e pouca poupança
IBGE mostra que carga tributária bateu recorde de 32% do PIB, enquanto economias dos brasileiros encolheram R$ 16 bi

O brasileiro está pagando mais impostos, poupando menos, destinando mais dinheiro ao consumo e se endividando. Os gastos das famílias brasileiras foram os principais responsáveis pelo crescimento de 4,36% registrado ano passado pelo Produto Interno Bruto (PIB), que é o total de riquezas produzidas no país. No ano passado, o PIB chegou a R$ 1,086 trilhão. Desse total 32,3% viraram impostos, o percentual mais alto desde 1947, quando teve início a pesquisa de Contas Nacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em 2000, o consumo das famílias brasileiras cresceu 3,75% em relação ao ano anterior. Já a participação das famílias na poupança total do país caiu de 52,6% em 1999 para 37,56%. A maior perda foi no montante depositado em aplicações financeiras que passou de R$ 20 bilhões para R$ 4 bilhões. ''A principal causa dessa redução da poupança financeira foi a queda dos juros, que estimulou o consumo baseado em dívidas. A taxa média anual de juros passou de 106% em 1999 para 71% no ano passado'', disse Carlos Sobral, gerente do IBGE. Outras razões foram o aumento dos impostos e a retração dos salários.

Rombo - Com menos dinheiro poupado pelas famílias, o país precisou de mais recursos externos financiar seus gastos. Foram R$ 49,1 bilhões, oriundos de investimentos estrangeiros e empréstimos, montante 6,97% superior ao de 1999. Esse dinheiro foi usado para cobrir o buraco de R$ 50 bilhões nas contas do governo.
''Já descontados os gastos com prestação de serviços, ainda sobraram R$ 93 bilhões para o governo. É dinheiro suficiente para cobrir as despesas com previdência e assistência social e fechar o orçamento. A causa fundamental do rombo foram os R$ 69 bilhões gastos com pagamento de juros da dívida'', explicou Sobral. Mesmo alto, o déficit representa um recuo em relação aos R$ 70 bilhões do ano anterior. Para os analistas do IBGE, a principal causa da melhora das contas públicas foi o aumento da arrecadação de impostos.
Juntos, os governos federal, estaduais e municipais abocanharam R$ 351,4 bilhões, ou 32,3% de tudo que o país produziu no ano. Foi um aumento de 15% em relação ao ano anterior puxado pelo aumento das alíquotas de Cofins, CPMF (0,2% para 0,38%) e congelamento da tabela do Imposto de Renda. O valor arrecadado com tributos que incidem sobre a renda e a propriedade cresceu 18%, atingindo a cifra de R$ 83 bilhões.

Revisão - Neste ano, o PIB já acumula alta de 2,25%, de acordo com os novos números apresentados pelo IBGE para a produção dos três primeiros trimestres. A revisão dos dados apontou uma melhora em relação à expansão de 2,17% da divulgação anterior. Em valores absolutos, o PIB do terceiro trimestre ficou em R$ 299 bilhões e o acumulado até setembro chega a R$ 867,5 bilhões, contra R$ 767,8 bilhões de igual período do ano passado. No mercado, a expectativa é que o resultado do ano fique abaixo de 2%.
O IBGE também voltou a apontar queda no PIB no segundo trimestre em relação ao anterior. Na primeira divulgação, em agosto, o instituto criou polêmica ao apontar queda de 0,99% nesse resultado. Um mês depois, o número foi substituído para um aumento de 0,12%. Ontem, voltou a ficar negativo. ''São resultados preliminares e sempre sujeitos a revisão. No dado anterior, as estimativas se baseavam nos pesos dos setores em 1999. Como as contas nacionais de 2000 foram concluídas, esses dados foram substituídos. Mas a diferença é mínima'', explicou Eduardo Nunes, chefe do Departamento de Contas Nacionais do IBGE.


Gasolina vai cair 20%, prevê FH
BRASÍLIA - O preço da gasolina poderá cair mais do que os 16% estimados inicialmente pelos técnicos do Ministério das Minas e Energia. A partir do próximo dia 2 de janeiro, quando ocorrer a abertura do mercado de petróleo, o combustível terá uma queda de 25% nas refinarias e de 20% nas bombas, em média, segundo o presidente Fernando Henrique Cardoso.

O óleo diesel, de acordo com o presidente, ficará 8% mais barato nas refinarias e 6% nos postos. Apenas o GLP (gás de cozinha) terá aumento, de 12%, o que representa cerca de R$ 2,30 a mais no preço do botijão de 13 quilos. Fernando Henrique sancionou ontem a lei que regulamenta a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), novo imposto sobre os combustíveis que substitui a antiga Parcela de Preço Específico (PPE) - fórmula para equacionar a chamada conta-petróleo.
Com a abertura do mercado de petróleo, grupos privados nacionais e estrangeiros poderão importar combustíveis, tornando o preço mais barato no mercado interno. A Cide acaba saindo mais barata do que a antiga PPE, o que vai permitir que a gasolina chegue ao con sumidor cerca de R$ 0,35 mais barata.


Artigos

Leis e desemprego
José Celso de Macedo Soares

Neste alvorecer do século 21, em que o desemprego parece ser o grande mal, causa-nos espanto a concepção de certos lideres sindicais a respeito do que chamam de ''conquistas dos trabalhadores''. Comecemos pela nossa legislação trabalhista. Gera mais conflitos do que soluções. Procura dificultar a dispensa dos empregados em vez de facilitar a admissão. Criada nos idos de 1940 pela ditadura Vargas, está desatualizada dos modernos conceitos da relação patrão-empregado.
A parafernália de documentos e papéis para admissão e dispensa dos empregados, a tendência a garantir tudo por lei, tudo na tradição estatutária, faz com que empregadores fujam dos empregados formais. Daí a quantidade de mão-de-obra informal que dificulta toda e qualquer apreciação correta da economia do país. A Constituição e a Consolidação das Leis do Trabalho estão cheias de direitos que, em outros países, resultam de negociações, de discussão dos contratos coletivos ou individuais.

Nos países de tradição negocial, poucos são os direitos garantidos por lei, ficando a maior parte das normas do trabalho para ser discutida na negociação ou na formalização dos contratos. Ai se vê a primeira das falácias dos chamados direitos dos trabalhadores: procurar colocar tudo na legislação, dificultando portanto a formalização de contratos que poderiam, inclusive, garantir direitos maiores, não previstos em lei, a quem é contratado. Não é sem razão que nas nações que adotam a tradição negocial, como Estados Unidos e Japão, o nível de desemprego é bastante inferior ao dos que adotam a tradição estatutária, como Brasil e França.
O enorme aparato da Justiça Trabalhista no Brasil, com sua burocratização, seu alto custo, indica que já é tempo de pensarmos em algo novo a respeito. A quantidade de reclamações trabalhistas entope-o de processos e mais processos. Tudo isso aumenta o custo operacional das empresas, que têm de pagar advogados para defendê-las muitas vezes de demandas que nunca imaginaram ter de enfrentar. E isso terá forçosamente de ser jogado no custo do bem produzido. A culpa menor é dos juízes, pois têm de cumprir as leis, que não foram feitas por eles, e sim pelos legisladores. O modelo varguista das relações de trabalho esgotou-se. É o principal entrave ao emprego no Brasil.

Ao contrario do que se pensa, não são os custos sociais sobre a folha de pagamento que fazem empresários hesitarem na hora da contratação de um empregado. Esses custos são conhecidos e perfeitamente calculados. O que os amedronta são os custos desconhecidos que futuras demandas trabalhistas - alimentadas por uma legislação caótica e desatualizada - poderão causar. E tome desemprego. Pensem nisso nossos legisladores e sindicalistas.


Colunistas

DORA KRAMER

Altíssima intensidade

Considerando que já não há governo legitimamente reconhecido como tal pela sociedade Argentina, a questão agora não é mais quanto tempo - e se - Fernando de la Rúa resistirá figurativamente no cargo. A preocupação central deve ser com o destino da democracia de um país oficialmente em estado de sítio e verdadeiramente em estado de ebulição e desgoverno total.
''Não se trata hoje de uma nação, mas de uma imagem refletida num espelho quebrado que ainda não terminou de trincar'', define o deputado do PT Aloísio Mercadante. Um oposicionista que tem uma análise positiva sobre os efeitos da crise para o Brasil - ''haverá algum reflexo, nem todos negativos, mas estamos descolados deles'' -, e, embora economista, arrisca um prognóstico de comportamento para o desfecho: ''Quem sabe esse tranco não faça a Argentina se reencontrar com a humildade.''

É evidente que Mercadante desenvolve raciocínios mais elaborados a respeito da origem da crise, mas compreende que hoje as razões econômicas tornaram-se quase irrelevantes frente ao quadro político de desgoverno e o cenário de beco sem saída que a situação impôs: ''Ou eles dolarizam a moeda com moratória ou fazem a moratória e desvalorizam o peso. Nos dois casos será um desastre.''
Antes disso, porém, a Argentina precisará encontrar a saída política que lhe permita juntar forças para pensar e propor uma solução. Qualquer que seja ela. Mas sempre partindo do pressuposto de que nova conformação de comando é imprescindível.

Ontem à tarde, em Buenos Aires, quem acompanhava de perto os confrontos da população com a polícia, relatava que o cerne da revolta popular concentrava-se no fato de os argentinos sentirem-se traídos por terem votado numa proposta de governo e, há dois anos, estarem sendo governados por algo inteiramente diferente.
A começar por um presidente abúlico, eleito por uma aliança partidária que lhe virou as costas quase que de imediato, forçado a ir buscar nas mágicas econômicas e financeiras de Domingo Cavallo o apoio que não soube construir e que, diante da arrogância e dos desacertos do pretenso salvador, ficou desmoralizado perante o país.

Aliás, pela alta intensidade da reação do povo argentino à limitação dos saques bancários depois de terem sido limitados os salários, os empregos, as oportunidades e a esperança num futuro cujo caos eles mesmo resolveram antecipar nas ruas, o termo ''desmoralizado'' não define a situação de De la Rúa.
O que ele está é sendo repudiado, pelos mesmos que o elegeram, por defeito de origem que um povo politizado não perdoa: incapacidade total de governar ou criar em torno de si condições de governabilidade.
Nessa altura são inúteis, por falsas, quaisquer tentativas de comparações com o Brasil. São povos diferentes, com histórias divergentes. Tudo na Argentina é mais intenso e radical. Do populismo que foi e voltou três vezes (a última pela figura de Carlos Menem), à truculência da ditadura, passando pela violência dos problemas econômicos (eles chegaram à hiperinflação), pelo radicalismo das soluções (De la Rúa saindo, seria o segundo, o outro foi Raúl Alfonsín, a fazê-lo por fadiga de material), incluindo aí a transição para a democracia, feita à custa da humilhação da derrota na Guerra das Malvinas.

São processos em que sempre se atinge a situação-limite e talvez, agora, seja o momento de a Argentina encontrar uma solução pactuada, com concessões que por lá não estão acostumados a fazer. Provavelmente é a isso que o deputado Mercadante se refere quando fala em ''reencontro com a humildade''.
O problema é que pactos precisam de lideranças para conduzi-los. E o presidente Fernando de la Rúa, quando pronunciou-se, à tarde, para dizer que continua à frente da presidência, mostrou que não é talhado à função: transferiu responsabilidade à maioria peronista (o Partido Justicialista) e quase apelou que dessem uma solução que caberia a ele encontrar. Tal como quando, na prática, entregou a presidência a Cavallo e ficou isolado, rodeado dos filhos e de dois ou três amigos, abstendo-se do comando para o qual foi eleito.
Parece que é isso que os argentinos não agüentam mais, pois sabem que têm e cobram - lá à maneira deles, intensa e radical - seu direito ao futuro e à retomada da dignidade do passado.

Final infeliz
Caso não vote o Orçamento, este ano, o Congresso estará, além de abstendo-se de sua função primordial (pelo menos no sentido da concepção da existência do Parlamento), providenciando um final infeliz para os trabalhos legislativos que estavam recuperando credibilidade.
Votaram-se questões cruciais neste fim de ano, mas sem o Orçamento, os parlamentares anulam esses resultados por incapacidade de cumprir o básico e ainda criam a desconfiança de que haja uma boa parcela esperando convocação extraordinária, em janeiro, para rece ber um extra. O que não fica nada bem para Suas Excelências.


Editorial

Réquiem Argentino

Diante dos tumultos que expressaram nas ruas a profunda crise social do país, e depois da saída do ministro Domingo Cavallo, o presidente argentino Fernando de la Rúa se sentiu na obrigação de se retirar também, quando fracassou sua tentativa de formar um governo de união nacional. Era um gesto desesperado de congelar a crise da mesma forma que há 10 anos seu antecessor Carlos Menem congelou o peso em relação ao dólar.
Passado o último decênio, com as evidências, no setor econômico, de que havia necessidade de afrouxar a camisa-de-força cambial, a Argentina entrou no respirador artificial. Idealizador dos vários pacotes econômicos que iam fracassando à medida que iam sendo implantados, Cavallo também saiu de cena, o que talvez possibilite ao próximo governo resistir mais alguns rounds na luta inglória que já gerou muita pobreza, 18% de desempregados, colapso da Previdência, calote nos fornecedores e demissões em massa no serviço público, além, é claro, de desconfianças com relação ao futuro do Mercosul - bloco econômico a que a Argentina pertence juntamente com o Brasil, Paraguai e Uruguai.

A atual crise social argentina não é inédita em sua História, embora ressurja com algumas características diferentes. No auge da hiperinflação de 1989, quando o então presidente Raúl Alfonsín entregou o governo a Menem com seis meses de antecedência, para permitir a vigência de um plano que domou a inflação mas semeou efeitos com pertinácia de bomba-relógio, mesmo assim o presidente engolfado na crise econômica, igualmente com terríveis conseqüências sociais, tinha a solidariedade dos partidários da União Cívica Radical. De la Rúa, também radical, e seu polêmico escudeiro Cavallo nem isto tiveram. Ambos os partidos majoritários ajudaram a precipitar a crise política.

Mas persiste a dúvida: como terminará esta história? Horas antes de defenestrar o ministro Cavallo, De la Rúa pedira ao Congresso que aprovasse o Orçamento como sinal para o exterior de que estaria cumprindo as metas do Fundo Monetário Internacional, sobretudo para a liberação do empréstimo de US$ 1,2 bilhão tido como imprescindível para evitar o calote da dívida. Mas o FMI, em contrapartida, e de forma até cruel, afirmou que o programa econômico do governo argentino é - para usar sua própria palavra - insustentável.
O câmbio fixo amarrou desde 1991 o peso ao dólar. Em face da força da moeda americana os produtos argentinos ficaram sem competitividade. Além disto, no plano interno, a política do governo de ajuste permanente encontrou o limite na sociedade. Impossibilitado de retirar parte de seu dinheiro dos bancos, a população se rebelou, num movimento diametralmente contrário ao que ocorreu no Brasil no início do governo Collor com o confisco da poupança nacional - quando a população, atônita, aceitou passivamente a rasteira.

Na queda-de-braço com o FMI, o governo De la Rúa teve de entregar os pontos. No plano exterior, levantam-se dúvidas naturais sofre o futuro do Mercosul criado com tanta expectativa para enfrentar a nova realidade mundial compartimentada em blocos econômicos, a exemplo do Nafta (EUA-Canadá-México) e da União Européia, com sua moeda única que começa a circular a partir do dia 1°.
A reunião de hoje, em Montevidéu, dos presidentes do Mercosul, poderá costurar as relações econômicas entre os países ainda não feridos pela turbulência argentina, sobretudo agora que não haverá mais necessidade de conviver com as regras nem sempre lógicas de Cavallo. O dilema é exclusivamente argentino: dolarizar de vez a economia ou desvalorizar o peso. Não é dilema nascido ontem. Mas não resta dúvida de que a questão do câmbio conversível obrigará a Argentina a tomar posição.

De la Rúa, vencedor da eleição presidencial (e perdedor da recente eleição legislativa), ficou com as batatas, quentes. Os argentinos talvez ainda se recordem do discurso de posse de Menem em seu segundo mandato, em 1995, quando arrancou aplausos do auditório ao afirmar: ''Assim como pulverizei a inflação, vou aniquilar o desemprego.'' A inflação continua a deslizar sobre o fio da navalha, pronta para dar o bote, e o desemprego, um dos panos de fundo da atual crise, continua a bater seus próprios recordes.

Quando despediu Cavallo, o antigo presidente Menem provou à opinião pública que o Plano Cavallo podia continuar sem ele, da mesma forma que a partir de então, com o retorno dos radicais ao poder, demonstrou-se que o Plano Cavallo podia continuar mesmo sem os peronistas. O fracasso da tentativa de união nacional mostrou que o Plano Cavallo se insere como ave de mau agouro entre radicais e peronistas como alma danada que atormenta os argentinos.

O tema da moeda única para o Mercosul entrou em ritmo de tango. É uma inevitabilidade que terá de ser encarada pelos parceiros do bloco. No caso argentino, a dolarização é uma espécie de engessamento de sua moeda nacional e deixa pouco espaço ao governo para manobras em caso de choques econômicos.
O governo argentino que assumirá em caráter transitório terá de enfrentar a dura lição da rebelião nas ruas, antes que o gás se esgote completamente. A opinião pública falou. Terá sido ouvida?


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12/21/2001


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