Projeto mapeia pontos de preservação em São Paulo



Idéia é construir um quadro de referências conceituais para o tombamento de bens

O modernista Mário de Andrade não via muita beleza no patrimônio cultural da cidade de São Paulo. O que via era a predominância dos critérios históricos, inclusive nos arredores. Como superintendente regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), durante a década de 1930, o escritor mapeou poucos marcos que, segundo seus parâmetros estéticos, mereceriam ser tombados: igrejas seiscentistas e setecentistas – como as Igrejas de São Benedito, de São Francisco e de São Miguel Paulista, a Ordem Terceira do Carmo, o Mosteiro da Luz – e algumas construções bandeiristas.

“A atuação de Mário de Andrade na área de preservação é paradoxal. No âmbito federal, ele apresentou um projeto bastante evoluído, centrado nas obras de arte pura ou de arte aplicada de interesse estético, e naquelas ligadas ao artesanato. Na época, já contemplava o patrimônio imaterial, as artes populares, propondo um roteiro etnográfico do Brasil”, lembra a professora Maria José de Azevedo Marcondes, do Instituto de Artes (IA) da Unicamp.

Paradoxal, na opinião da pesquisadora, é que para São Paulo o intelectual tenha restringido tanto o projeto, julgando o patrimônio pobre em comparação com Pernambuco, Bahia ou Minas Gerais. “Os modernistas preservaram o barroco, em busca da identidade do país no passado colonial, e o moderno, como a Pampulha – tombada antes mesmo de ser construída”.

Maria José afirma que os modernistas renegaram todo o patrimônio erguido na Primeira República. “Do ponto de vista ideológico, o ecletismo representava uma arquitetura européia. E, esteticamente, não consideravam aqueles bens como uma “boa arquitetura”, apenas como soluções trazidas de fora”.

Maria José coordena o projeto de pesquisa “Território e Patrimônio: critérios de seleção e valoração do patrimônio cultural da cidade de São Paulo”, desenvolvido com apoio da Fapesp e que dá continuidade a outro estudo com o mesmo título, este financiado pelo CNPq e concluído em julho de 2007.

O objetivo principal é construir um quadro de referências conceituais para o tombamento de bens por parte dos órgãos de proteção. “Não existe a pretensão de elaborar diretrizes, já que esses órgãos estão bem-estruturados desde Lúcio Costa, Rodrigo Melo Franco de Andrade e Mário de Andrade”, esclarece a professora da Unicamp.

Ocorre que a análise das intervenções e dos critérios de tombamento em São Paulo, a partir da leitura de processos mediados por órgãos preservacionistas nos três níveis de governo, é bem vinda pelas autoridades da área. Os especialistas teriam assim uma ferramenta adicional para nortear suas ações.

Melhor ainda se a autora vem credenciada por atividades dentro dos próprios órgãos de proteção. Ela foi conselheira do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo) e participou da definição das Zonas Especiais de Preservação Cultural (Zepecs) na capital.

Até os anos 1960, informa Maria José Marcondes, prevaleceram os critérios artísticos e históricos clássicos para preservação, contemplando, sobretudo, as obras com valor artístico e as ligadas a fotos memoráveis da nação. “Veio então um movimento internacional que deu novas referências e ampliou o conceito de patrimônio cultural, como a Carta de Veneza”.

Os critérios históricos, por exemplo, passaram a ser vinculados também com os ciclos econômicos, com a história da técnica (taipa de pilão, tijolo e concreto armado) e com a história da arte. “A atuação do órgão estadual de preservação após os anos 60, e do órgão municipal após os anos 80, levou à incorporação também dos critérios antropológicos – onde entram os imigrantes com as suas culturas – e dos ambientais”.

Território – Em seu trabalho, Maria José preocupa-se em incluir a noção de território enquanto instância formadora de identidades. “Os modernistas não compreenderam que o patrimônio eclético era justamente o patrimônio de São Paulo. Embora seja inegável a grande contribuição desta geração, na chamada fase heróica do Iphan, ela ignorou a importância do imigrante na construção da cidade e o impacto desta construção no restante do país”.

A pesquisadora observa que a Estação da Luz, apesar de simbolizar a expansão das ferrovias e o ciclo do café, foi tombada apenas nos anos 90, ainda assim por seus atributos históricos e não pelos artísticos. “Via-se o país como um tecido homogêneo, o que não é. São Paulo também não é homogênea, pois a periferia e as áreas centrais trazem heranças diferentes, vindas tanto da Colônia como da Primeira República”.

Com acesso garantido aos acervos dos órgãos preservacionistas, a professora da Unicamp constatou uma documentação muito bem sistematizada até os anos 60, o que facilitou bastante o trabalho na primeira parte da pesquisa. O levantamento fica mais difícil a partir da ampliação do conceito, com a soma de moinhos, galpões industriais, vilas operárias, mercados, áreas verdes e também de construções modernas.

“Existe preocupação com esta abertura do leque como uma arca de Noé, onde tudo cabe. Outro aspecto é que as atividades preservacionistas hoje envolvem parcela maior da sociedade e não se restringem aos saberes técnicos, como antes. Daí, a importância de consolidar critérios para que obras substanciais não deixem de ser preservadas”, adverte a professora.

Ruínas – Nesse sentido, Maria José Marcondes ressalta que os problemas em São Paulo não se relacionam tanto com o inventário – descobrir o que mais deve ser tombado – mas quanto a assegurar a conservação dos bens eleitos. “O trâmite é muito moroso e um processo pode ficar sob análise por até vinte anos, sem que os bens sejam tombados nem conservados”.

O Moinho Matarazzo, no Brás, é uma construção emblemática tombada em 1992, que a pesquisadora mostra em foto de 1900. “Este patrimônio evidencia as transformações na cidade com o surgimento de construções de influência ‘manchesteriana’ no início do século passado. Da Fábrica Matarazzo, na Água Funda, sobraram apenas as chaminés”.

Outra foto mostrada pela autora é do Moinho Minetti Gamba, na Mooca, cujo tombamento vem motivando polêmica com a Câmara de Vereadores, alimentada nos jornais. “O processo inclui uma área envoltória que também deve ser preservada, a fim de que prédios mais altos não atrapalhem a visibilidade. Isto conflitou com grandes interesses imobiliários”.

Alguns especialistas vêem o tombamento como um instrumento excessivamente duro, além de gerar pesados ônus ao poder público. Segundo Maria José, outros países preferem os inventários ou as leis de zoneamento. “No Brasil, o tombamento prevalece para fazer frente à especulação imobiliária, que comumente força mudanças nas regras de zoneamento na Câmara”.

Cidades-jardins – A pesquisadora da Unicamp esclarece que seu projeto contempla os inventários realizados nas Zepecs, concentrando-se nos processos de tombamentos dessas zonas “É um universo bem grande, que inclui várias modalidades. Em São Paulo, além dos critérios antropológicos, estão muito presentes os critérios ambientais”.

Os Jardins e o Pacaembu são bairros tombados. Estão em andamento outros projetos de proteção de áreas verdes, como no Sumaré, em Interlagos e no Jardim da Saúde, bairros já tombados na esfera municipal. A professora recorda, ainda, o caso peculiar do Jardim América. “Ali o critério não foi propriamente ambiental, mas por representar o primeiro projeto na América Latina seguindo o conceito das cidades-jardins, executado pelo urbanista inglês Barry Parker”.

Um patrimônio imaterial da cidade também está prestes a ser contemplado, com o registro da Festa de San Genaro. Para Maria José Marcondes, São Paulo reflete desta forma todo o processo de mudanças de conceito, que passou dos monumentos históricos para os conjuntos urbanos e agora chega às paisagens culturais. “Patrimônio não é mais aquilo que tem 100 anos de existência. A entrada do moderno eliminou esta distância no tempo”.

Do Jornal da Unicamp



09/10/2007


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