A construção do desembarque









A construção do desembarque
O PFL já decidiu entregar os quatro ministérios que ocupa e cerrar fileiras com a oposição a Fernando Henrique Cardoso. Só não o fez ainda porque estuda uma saída honrosa para o grupo do vice-presidente Marco Maciel, que não sairá em litígio

Eram 19h de ontem quando o presidente do PFL, Jorge Bornhausen, terminou de redigir uma nota à imprensa. A nota era uma resposta ao ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira. No sábado, o ministro defendera a ação da Polícia Federal, que invadiu na sexta-feira o escritório da empresa Lunus, da governadora do Maranhão, Roseana Sarney, e de seu marido, Jorge Murad, em busca de documentos que os comprometessem com as irregularidades da extinta Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Aloysio disse que a ação policial era normal e que, se Roseana reclamava, é porque se julgava acima da lei. Para Bornhausen, era o sinal que faltava. Naquele momento, começou o desembarque do PFL do governo Fernando Henrique Cardoso.

‘‘Ninguém esperaria do ministro da Justiça um aviso prévio, que ele se vangloria de não ter feito’’, diz a nota de Bornhausen. ‘‘Esperava-se que, diante da gravidade do fato, ele tivesse examinado a fundamentação legal do mandado de busca e apreensão antes mesmo de ser sumária e arbitrariamente executado.’’

Quando a ação policial foi deflagrada, ainda na sexta-feira, Bornhausen começou a sentir pressões dos correligionários do PFL. Roseana sentia-se ultrajada. Julgava que a ação tinha o interesse político de macular sua biografia, enlamear sua candidatura. Algo inaceitável para ela. Imediamente, a governadora já promoveu a primeira baixa pefelista no governo. Hoje, seu irmão, Sarney Filho, deixa o Ministério do Meio Ambiente.
Da Bahia, o ex-senador Antonio Carlos Magalhães pregava o mesmo. De Pernambuco, o vice-presidente da República, Marco Maciel receitava cautela. Para Bornhausen, naquele momento só havia um modo de o governo manter o PFL. Algum bombeiro tucano deveria reconhecer que, de fato, houve um abuso por parte da Polícia Federal e pedir desculpas.

O fim de semana passou e não houve esse aceno. Ao contrário: o ministro da Justiça defendeu o ocorrido. A elegante nota de Bornhausen limita-se a responder às palavras de Aloysio. Mas, nas entrelinhas, é cristalina: o aceno esperado não houve, o PFL deixará o governo.

De Florianópolis, Bornhausen disparou telefonemas para os principais caciques pefelistas. A todos, repetiu que o que importa nesse momento é a unidade do PFL. Terá de ser costurada uma solução unânime, uma saída em uníssono do governo, sem notas dissonantes. ‘‘Quem acha que vai rachar o PFL, está enganado’’, garantiu.

‘‘E não venham com a piadinha da vocação governista do partido. Quem fizer essa brincadeira estará se esquecendo que o PFL nasceu de um rompimento que todos apostavam que não aconteceria’’, concluiu Bornhausen. No final do governo João Figueiredo, um grupo, capitaneado por Bornhausen, ACM e Marco Maciel, rompeu com o PDS, o partido governista, e fundou o PFL para, junto com o PMDB, formar a Aliança Democrática e eleger Tancredo Neves.

Hoje, a cúpula do PFL reúne-se em Uberaba, no triângulo mineiro, e em Belo Horizonte para começar a sacramentar a saída do governo. Aproveitarão um ato da agenda de pré-campanha de Roseana, que visitará uma exposição agropecuária. Na quinta-feira, está marcada uma reunião da Executiva. Depois dela, o rompimento será oficialmente anunciado. De hoje até quinta, Bornhausen terá de costurar o desembarque. Convencer os reticentes. E o trabalho mais delicado será com relação ao vice, Marco Maciel.

Maciel foi eleito com Fernando Henrique Cardoso. Ele faz, institucionalmente, parte do governo. Para ele, portanto, é bem mais difícil romper. Não é um simples caso de entregar o cargo. Bornhausen terá de encontrar uma saída honrosa para Marco Maciel.

Inelegível
Uma opção está sendo pensada. Maciel será candidato ao Senado. Como candidato, não poderá assumir a Presidência da República nas ausências de Fernando Henrique, sob o risco de tornar-se inelegível. Assim, Maciel poderia se considerar de certa forma impedido de exercer plenamente a sua função. E, no dia 5 de abril, sdata-limite para desincompatibilização, renunciaria. Nesse pouco mais de um mês, permaneceria na vice-presidência o mais discretamente possível.

No final da noite de ontem, Serra também divulgou uma nota. Ela denuncia o estado de espírito do pré-candidato tucano, acusado pelo PFL de arquitetar a investigação sobre Roseana e seu marido. Trechos da nota estão riscados. O senador desistiu de oficializar as palavras mais fortes.

Na versão final, Serra qualifica de ‘‘estapafúrdias, para não dizer malucas, as insinuações de que existe alguma relação entre o episódio que envolve a empresa Lunus, ou o processo da Sudam e o PSDB’’. O ex-ministro da Saúde apelou aos outros presidenciáveis para que coloquem suas pretensões no terreno do debate. ‘‘Renovemos as alianças políticas que nos permitirão chegar à vitória e dar condições de governabilidade ao país’’. Se essa aliança deve ser renovada em torno de Serra, o PFL deixa claro que já não dá mais.


Investigação contra Jorge Murad prossegue
Apesar dos protestos de Roseana Sarney e da ameaça de rompimento do PFL, a apuração da Polícia Federal no caso Sudam continua, agora no interior do Maranhão. Ontem, documentos foram apreendidos na Fazenda Nova Holanda

O PFL está em pé de guerra com o governo e com o PSDB. Mas, a despeito da chiadeira, as investigações sobre o envolvimento do gerente de Planejamento do Maranhão, Jorge Murad, marido da governadora Roseana Sarney, com desvios de verbas da Sudam prosseguem. Munidos com o mesmo mandado de busca a apreensão usado na sexta-feira para coleta de documentos na Lunus Participação — empresa de Murad e Roseana —, agentes e delegados da Polícia Federal apreenderam ontem documentos no escritório do projeto Nova Holanda Agropecuária, na cidade de Balsas, distante 833km de São Luís.

Suspeita-se que parte dos R$ 32,9 milhões repassados pela Sudam à Fazenda Nova Holanda tenham sido desviados. E que Murad tenha uma espécie de contrato de gaveta, sendo, portanto, o verdadeiro dono do projeto. A fazenda já pertenceu a Murad. Em 1993, ela foi vendida para a Nova Holanda. A apreensão dos documentos na Fazenda Nova Holanda foi feita por quatro agentes da equipe comandada pelo delegado Paulo de Tarso de Oliveira, da Divisão de Combate ao Crime Organizado e Inquéritos Especiais, sediada em Brasília.

No início da noite de ontem, Murad distribuiu uma nota à imprensa em que nega qualquer envolvimento com o desvio de verbas da Sudam. Ele contesta reportagem da revista Época desta semana. O marido de Roseana diz que a sua empresa, a Lunus Participações, não mantém relação com um escritório de contabilidade que teve documentos apreendidos pela Polícia Federal no ano passado, conforme informou a reportagem.
‘‘Essa notícia é absolutamente falsa, uma vez que a contabilidade da Lunus é realizada na própria empresa pelo contador Augusto Sampaio. A Lunus e eu próprio jamais tivemos qualquer relacionamento, seja de natureza profissional ou pessoal, com o escritório (citado pela revista Época)’’, diz Murad, na nota oficial.
Murad critica ainda trecho da reportagem que relaciona os documentos apreendidos no escritório de contabilidade com a criação de empresas no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas. ‘‘Isso é um despautério e solicito ao governo federal divulgar em nome de quem estão registradas as empresas relacionadas na reportagem, que teve acesso aos segredos de Justiça não revelados sequer aos que deveriam ser parte do processo .’’

A ligação entre a Nova Holanda Agropecuária, que recebeu recursos da Sudam, e a Lunus, eixo da investigação sobre Jorge Murad, também é taxativamente desmentida. ‘‘A Lunus jamais teve relação de negócio ou de qualquer outro tipo com a Nova Holanda, e jamais participou de qualquer projeto na Sudam’’, diz a nota oficial, assinada por Murad.

Uma outra nota oficial, esta assinada pelo presidente da Associação dos Juízes Federais, Flávio Dino, defende a decisão da juíza Ednamar Silva Ramos, da Seção Judiciária de Tocantins, que autorizou a apreensão de documentos na empresa Lunus na última sexta-feira. E também o despacho do juiz Tourinho Neto, presidente do Tribunal Regional Federal (TRF), que no mesmo dia concedeu mandado de segurança, determinando que o material apreendido permaneça no Maranhão até que a Justiça se pronuncie sobre a correção da decisão judicial.


Maurício Corrêa: opção do PPS, PDT e PTB ao Buriti
Com a verticalização das alianças, surge a possibilidade de uma nova candidatura ao GDF. Amanhã, partidos se reúnem para discutir o assunto

A decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de obrigar os partidos a repetirem nos estados a mesma aliança formada para a campanha presidencial aumentou a possibilidade do surgimento de uma quarta candidatura ao Governo do Distrito Federal (GDF). Integrantes do PPS, do PDT e do PTB, unidos em torno do presidenciável Ciro Gomes (PPS), articulam o lançamento de um candidato da coligação à sucessão do governador Joaquim Roriz. Entre os nomes cogitados, está o do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Maurício Corrêa.

A articulação para lançar uma candidatura da aliança PPS/ PDT/PTB ao Palácio do Buriti foi iniciada pelo próprio Ciro. O presidenciável precisa de um novo palanque no Distrito Federal, uma vez que PPS e PT não poderão fazer coligação regional. Na quinta-feira, o ex-ministro da Fazenda se reuniu em Brasília com a direção nacional do PTB e conseguiu marcar, para amanhã, um encontro entre dirigentes locais do PPS e PDT com o ex-governador Wanderley Vallim, presidente da comissão provisória instalada para dirigir o PTB no DF.

Acordo
O principal desafio para emplacar a candidatura ao GDF será justamente convencer o PTB a participar de uma eventual chapa. Antes da posição do TSE de verticalizar as alianças, o partido havia decidido apoiar Roriz. No PTB estão aliados ferrenhos do governador, como os deputados distritais César Lacerda, Benício Tavares e Edimar Pireneus. Mas entusiastas de uma candidatura própria apostam que a intervenção feita na semana passada pelo PTB na direção regional da legenda, que resultou na indicação de Wanderley Vallim para comandar a sigla, facilitará um acordo.

No grupo que trabalha pelo lançamento de um candidato da coligação PPS/PDT/PTB à sucessão de Roriz, o nome preferido para encabeçar uma eventual chapa é o de Maurício Corrêa. A escolha do candidato será submetida aos partidos e não está descartada a indicação de um nome do PPS, como o ex-distrital Carlos Alberto Torres, ou do próprio Wanderley Vallim (PTB). A avaliação, no entanto, é de que a candidatura mais consistente para concorrer com Roriz seria a do ministro do STF, que foi senador e disputou o GDF em 1990. Ele terminou a eleição em terceiro lugar, atrás de Roriz e do candidato petista Saraiva e Saraiva.

O ministro do Supremo disse ao Correio que desconhece qualquer articulação para lançá-lo candidato ao GDF. ‘‘Não estou sabendo de nada’’, afirmou. A amigos próximos, no entanto, Corrêa tem demonstrado animação com uma eventual volta à política com o apoio de dois importantes partidos de esquerda — PDT e PPS — e a possibilidade de atrair o PTB, tradicional aliado de Roriz.

O ex-senador, que já tem tempo de trabalho para se aposentar como ministro do STF, poderia deixar o cargo até seis meses antes das eleições e se filiar a um partido para disputar o GDF. Para tornarem-se candidatos, juízes, ministros de tribunais superiores e integrantes do Ministério Público não precisam cumprir o prazo de filiação de um ano. Podem se filiar a algum partido assim que se desligarem do cargo.

Cargos
A eventual perda do apoio do PTB na disputa pelo Palácio do Buriti seria um dos problemas que Roriz enfrentaria por causa da decisão do TSE de uniformizar as alianças nacionais e regionais. Outros partidos da ampla coligação costurada pelo governador em torno de sua candidatura à reeleição, formada por PMDB, PFL, PSDB, PPB e PTB, podem ter de abandonar a chapa.

PFL e PSDB, por exemplo, têm pré-candidatos próprios à Presidência e ficarão impedidos de se aliar a Roriz se não houver coligação com o PMDB para a campanha presidencial. Amanhã, de volta de viagem à China, o governador começa uma nova rodada de negociações com os partidos para tentar evitar a implosão da aliança.
Uma das primeiras medidas de Roriz será suspender a reforma administrativa do GDF, que estava praticamente pronta. As mudanças seriam feitas justamente para atender interesses de partidos aliados, como parte da negociação para que as legendas apoiassem o governador nas próximas eleições. A distribuição de cargos na nova composição do governo será usada por Roriz para tentar manter PFL, PSDB, PPB e PTB na sua base de apoio.

Mesmo que formalmente algum dos partidos não possa se aliar ao PMDB, Roriz deverá propor coligações ‘‘brancas’’, informais. Se o PFL não puder fazer acordo oficial com o PMDB, por exemplo, o governador não lançaria candidato ao Senado para substituir o deputado federal Paulo Octávio (PFL-DF). O empresário continuaria candidato de fato de Roriz ao Senado, desde que o PFL não lance concorrente ao Buriti. A mesma tática poderá ser aplicada aos demais partidos.


Oposição vence convenção do PMDB
A ala do PMDB que defende a candidatura própria obteve ontem mais uma vitória na disputa contra os governistas do partido. Numa convenção extraordinária realizada na Câmara Municipal de São Paulo, o grupo ligado ao governador de Minas, Itamar Franco, e ao ex-governador de São Paulo, Orestes Quércia, conseguiu aprovar por unanimidade mudanças nas regras das prévias partidárias, marcadas para 17 de março. As decisões deverão ser contestadas judicialmente pela executiva peemedebista, que apóia uma aliança com o PSDB do presidenciável José Serra. O PMDB oposicionista conseguiu reduzir o quorum da votação que irá escolher o candidato à presidência de 50% para 20% dos filiados. Outro item aprovado garante que o nome escolhido nas prévias deverá ser confirmado pelo partido em julho e terá total poder de decisão sobre as alianças e sobre a propaganda eleitoral. ‘‘Eles não imaginavam que a convenção de hoje (ontem) teria quorum. Então, na convenção do dia oito, fariam que não tivesse quorum e, com isso, a prévia não seria realizada’’, disse o governador Itamar Franco, principal nome entre os pré-candidatos peemedebistas. ‘‘O PMDB terá candidato próprio, não importa as manobras que eles façam’’, comemorou ontem o senador Pedro Simon (RS).


João Paulo, 17 anos
Morte de jovem que contraiu a doença do tipo hemorrágica no Rio de Janeiro é a primeira da história do DF. Família acusa governo de negligência. Secretaria de Saúde suspeita que outras duas pessoas morreram em Brasília do mesmo mal

João Paulo Pereira Viana nasceu com 4 kg e mamou no peito da mãe por um ano e um mês. Aos 17 anos, o jovem cearense de Ipu já media 1,86 metro e tinha músculos desenvolvidos pelas artes marciais. Ele chegava a treinar cinco horas por dia. O rapaz tinha físico atleta até que um mosquito cruzou seu caminho, no Rio de Janeiro, durante o carnaval. Dez dias depois de voltar para Brasília, João foi internado no Hospital Regional de Taguatinga (HRT) com dengue hemorrágica. Lutou contra o vírus por mais nove dias. Na madrugada de ontem, às 3h50, pela primeira vez, a dengue matou no Distrito Federal.

‘‘Nada derrubou meu filho, só essa doença infeliz. Perdi meu filho por causa do governo’’, desabafou a mãe do rapaz, Selma Viana, 46 anos. João Paulo teve falência múltipla dos órgãos. Vinha realizando sessões de hemodiálise diariamente e recebia sangue por transfusão desde o dia 22. Seus rins e pulmões já não funcionavam mais. Ele respirava com o auxílio de aparelhos na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do HRT. Seu fígado e sua medula também apresentavam alterações.

‘‘Foi muito violento. Apesar de ser uma doença grave, o estado dele evoluiu muito rápido. Esperávamos que ele revertesse o quadro’’, avaliou a médica plantonista da UTI do HRT Maria Luiza Oliveira. A família só conseguiu retirar o corpo de João Paulo do hospital no final da tarde de ontem, depois da necrópsia feita por um médico do setor de anatomia patológica do próprio HRT.

O diretor do hospital, Charles Roberto Lima, explicou que foi necessária a confirmação da causa da morte por meio de exames histológicos (nos tecidos). ‘‘Ele era um rapaz forte. Temos de confirmar se realmente foi só a dengue que provocou sua morte’’, afirmou o médico. O resultado dos exames de sangue que apontaram para dengue hemorrágica foi divulgado na última sexta-feira pela Secretaria de Saúde do DF.

Há também a suspeita de duas outras mortes por dengue no DF. Um morador de São Sebastião e um morador de Riacho Fundo, que morreram em janeiro no Hospital Regional da Asa Norte (Hran), também podem ter sido vítimas da manifestação mais grave da doença.

Apesar dos sintomas de dengue hemorrágica, os exames de sangue dos dois pacientes deram negativo. Mesmo assim, a Secretaria de Saúde colheu amostras de tecidos do fígado dos dois pacientes. O material foi enviado para a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, mas não há previsão de quando o resultado dos exames será divulgado.

No carnaval, João foi ao Rio de Janeiro com a namorada Ivone, 26 anos, com quem se relacionava havia dois meses. Eles viajaram de carro e ficaram hospedados na casa de um tio de Ivone, em Duque de Caxias, uma área crítica de ocorrência de dengue.

O casal se divertiu durante uma semana. Foram ao desfile de carnaval na Marquês de Sapucaí, comemoraram a vitória da Mangueira e retornaram para Brasília apenas no dia 15. Os primeiros sintomas (febre alta) foram sentidos por João Paulo no dia seguinte e foram tratados pela família com medicamentos antitérmicos. Uma semana depois, já com diarréia, dor no corpo e manchas vermelhas na pele, o jovem chegou à emergência do HRT.

Revolta
Com o olhar perdido nas paredes do quarto de João Paulo, dona Selma pensava na morte do filho, que poderia ter sido evitada. Ela não queria que o rapaz viajasse para o Rio, mas vendo o ânimo do jovem ainda colaborou com R$ 60 nas despesas. ‘‘Esse governo que está aí não adianta mais. Já deviam ter feito alguma coisa. Meu filho era uma pessoa cheia de sonhos. Para onde vão esses sonhos agora?’’, desabafou para os vizinhos e amigos que estiveram em sua casa na tarde de ontem. João Paulo vivia com os pais e a irmã mais velha, Jocelma, 27 anos, no Riacho Fundo II.

‘‘Eu quero Justiça. Quero que as autoridades façam alguma coisa para outras pessoas não morrerem’’, criticou a irmã dele, Jocelma. Todos estavam confiantes na recuperação do rapaz, especialmente o pai, João de Deus Viana, 55 anos. ‘‘Meu filho lutou para viver.’’

Seu João visitava todos o dias a UTI. Na noite de sábado, um médico ainda teria dito que ele poderia conversar com o filho, pois o rapaz estava lúcido. ‘‘O doutor falou que tirava o aparelho de respiração da boca dele pra conversar comigo. Eu disse que não precisava. Achei a expressão de João Paulo boa, serena’’, disse o pai do jovem.

O cavaquinho guardado sobre o armário do quarto havia se tornado a paixão do rapaz desde o ano 2000. ‘‘Ele pensava em ser músico’’, conta a amiga de infância Lorena Ayres Borges Lima, 16 anos. O pai de João Paulo, com sacrifício, chegou a pagar aulas para que o filho aprendesse o instrumento. ‘‘Em seis meses ele já estava tocando muito bem. Sempre divertia os amigos nas festas’’, lembra Lorena.

João Paulo estava matriculado na 1ªsérie do ensino médio em um colégio próximo de sua casa. O último sonho do rapaz, porém, era entrar para o Exército. Ele se alistou para prestar serviço militar este ano e passou meses empolgado com a idéia de seguir carreira militar. Era disciplinado e religioso, herança da educação católica recebida dos pais. Quando foi levado por amigos ao HRT, para de lá não sair mais, ainda pediu à mãe: ‘‘Reza por mim’’. Selma vai atender o filho pelo resto da sua vida. ‘‘Não sei como vou conseguir viver sem ele’’.


Melhor do que em casa
As escolas da rede pública abrem hoje suas portas para milhares de alunos. Boa parte desses estudantes vive na mais absoluta miséria. Colégio, para eles, é fuga de uma dura realidade. Só quando vão à escola é que brincam ou comem direito

Parece um mundo paralelo. Na realidade das crianças pobres, férias não é sinônimo de diversão. Nos meses de recesso escolar, elas crescem sem perceber. De dia, ajudam os pais a cuidar da casa ou fazem bicos para arrumar dinheiro. De noite, ficam trancadas com medo da violência. Algumas até conseguem tempo livre para perambular por ruas cheias de barro, sem campo de futebol ou balanço para brincar. As mais sortudas se divertem tomando banho em córregos e assistindo televisão. Viagem, nem pensar.

Justamente por isso, meninos e meninas da periferia esperaram ansiosamente pelo dia de hoje. Dia de volta às aulas. Dia de voltar a ser criança. De ter espaço para brincar no recreio, comer merenda e aprender lição. Só tem um porém. O fantasma da greve apareceu de novo e assusta pais e alunos (leia reportagem nesta página).
Aos pais, só resta lamentar pelas crianças, que correm o risco de continuar em férias forçadas. Brincando em ruas de lama, trabalhando, pertinho da violência. Muitos souberam da possível greve pela televisão. E reconhecem o direito do professor, pois sabem como é ruim ganhar pouco e tomar conta de muitos meninos. Mas não querem ver os filhos nas ruas do Distrito Federal. Escola, para muitas mães e alunos, serve de fuga da realidade.


Artigos

Brasil de permanente (e saia justa) na ONU
Como é possível pretender palpitar nos destinos do mundo um país como este, cujo governante mor acaba de cortar 50% do orçamento do Ministério da Cultura e 70% do de Meio Ambiente?

Jorge Antunes

Imagine o Brasil com uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. Imaginou? Bem, agora imagine o representante brasileiro sentadinho na reunião, folheando a nova edição afegã de um livro do Paulo Coelho, ladeado pelos representantes do Reino Unido e da França. Conversa vai, conversa vem, o inglês pergunta ao brasileiro: ‘‘Quantos livros vocês publicar para cada um milhão de habitantes?’’ ‘‘Quatorze!’’, responde o brasileiro.

O inglês, meio aturdido, diz: ‘‘Que coisa, né? Nós publicamos 164 títulos’’. O francês, palrador, se mete na conversa: ‘‘Nós publicamos 78 títulos’’.

O francês, lembrando de que no início do século 19 estivera no Brasil importante missão artística de seu país, quer saber um pouco mais: ‘‘E na universidade, qual a taxa de matrícula?’’ Mais uma vez constrangido, responde o brasileiro: ‘‘Hum! Uns 11%!’’ O francês, com inflexão descendente, exclama: ‘‘C’est pas vrai! Na França a taxa é de 50%!’’ O inglês se espanta: ‘‘Em nossas Universidades ser pouco menos: 48%’’.
O chinês não fica muito tempo calado: ‘‘Eu conhecer cultura brasilêra! Em 74 o presidente Geisel, em intercâmbio cultural de reaproximação, enviou-nos a dupla Chitãozinho e Xororó. Muita bonito!’’ O russo, coradinho e risonho, interrompe e comenta o frenesi com que FHC, em sua recente visita a Moscou, bateu palmas na apresentação de obra de Tchaikovski no Bolshoi. Pergunta então: ‘‘Além de Tchaikovski, de quem mais ele gosta?’’ ‘‘Caetano’’, obtempera o brasileiro.

Não! Não dá! Como é possível pretender palpitar nos destinos do mundo, ao lado daquelas potências, um país como este, cujo governante mor acaba de cortar 50% do orçamento do Ministério da Cultura e 70% do de Meio Ambiente?

Os pré-candidatos à Presidência da República, entre os quais cada um de nós terá que escolher um — daqui a pouco mais de sete meses —, já esboçaram a que vêm: todos já falaram de economia, relações exteriores, salário mínimo, segurança, saúde, mas poucos falaram em educação e nenhum falou em cultura. Roseana, Lula, Ciro, Eneas, Garotinho, Serra: meto-os todos no mesmo saco — cheio —, por serem e estarem homogênea e desesperadamente sedentos de poder, buscando, cada um, coligações as mais esdrúxulas. O quadro é tão amedrontador que o absurdo já desponta como o mais coerente: uma coligação entre o PT social-democrata e o PSDB idem. Aliança centro-esquerda, frente centro-direita, tudo é possível, podendo até mesmo viabilizar-se uma aliança esquerdo-evangélico-católico-direita.

Proximamente, a França reviverá debates belíssimos, tal como em 94, com Chirac e Jospin discutindo, entre outras coisas, como tratar a cultura como assunto estratégico. De novo falar-se-á do apoio ao cinema francês, que deve enfrentar a invasão holywoodiana. Mais uma vez serão feitas promessas, de ambos os lados, de um serviço público, prestado por especialistas, perene e despolitizado. Novamente se revelará a consensualidade na defesa da francofonia, com a montagem de barricadas frente às tentativas de dominação alienígena. Renovar-se-á a coincidência de convicções, com relação à política cultural compensatória que proteja a jovem e nova criação artística da crueza e da perversidade das leis de mercado.

E aqui? O que se discutirá? Certamente, Olivetto, família Abravanel, Nicolau, Ilhas Cayman, Duhalde, voyeurismo televisivo, salário dos militares, celulares no presídio, coisas do tipo! Mas não esqueçamos de que já tivemos um ministro da Cultura, hoje perdido lá pelas bandas de Bucarest, que escrevia artigos reivindicando 1% da dotação orçamentária para a Cultura. Pagou o preço da audácia: foi chutado, em poucos meses, do ministério. Mas essas opções estão por aí. Falta juntá-las — talvez em torno do Zé Maria, do PSTU — e, então, botar embaixo o que está em cima, e em cima o que está embaixo.


Editorial

FIO DE ESPERANÇA

O plano de paz apresentado pelo príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Abdullah Ibn Abdulaziz, acende uma tênue luz no fim do túnel do conturbado Oriente Médio. A proposta prevê o retorno das fronteiras entre Israel e os territórios palestinos aos limites de 1967, anteriores aos da Guerra dos Seis Dias. Além disso, Telavive teria de abrir mão da Jerusalém histórica. Em troca, receberia a normalização nas relações com os países árabes.

Trata-se da velha idéia de troca de terra por paz. Mas tem novidades. O plano estabelece um princípio. Parte da convicção de que é preciso, antes de tudo, acabar com a matança indiscriminada. Sem entrar em detalhes, terá de ser negociado ponto a ponto. Será tarefa árdua, que exigirá o talento diplomático não só do mundo árabe, mas da Europa e, sobretudo, dos Estados Unidos.

Apresentado por um país muçulmano que mantém ligações estreitas com o Ocidente, recebeu apoio da União Européia. Mas os Estados Unidos, principal personagem no intrincado xadrez da região, mostram-se hesitantes, presos à velha tese de só começar as negociações quando cessarem os confrontos. O tempo tem-se encarregado de mostrar que os conflitos, longe de diminuírem, só têm aumentado em abrangência e intensidade.

Em princípio, a proposta é tentadora para Telavive, cercada de inimigos por todos os lados. E interessa aos palestinos, encurralados física e economicamente pelo poderoso vizinho. Sharon elegeu-se prometendo segurança e paz. Não cumpriu uma coisa nem outra. Sua impopularidade alcançou 53%. Cresce, dia a dia, o número de vítimas israelenses. A política do bate-rebate transformou a vida de palestinos e judeus em verdadeiro inferno. Uns e outros não têm mais coragem de andar na rua, ir ao mercado, mandar os filhos à escola.

Vislumbra-se, agora, a possibilidade concreta de retorno à mesa de negociações. Diferente dos anteriores, o plano saudita apresenta abrangência jamais antes discutida. Uma coisa é firmar a paz solitária com os palestinos. Outra é fazê-lo com os vizinhos e demais nações que não têm fronteira com Israel.

Se for aceito pelos 22 países que compõem a Liga Árabe, a normalização das relações internacionais mudará o cenário regional. Todas as partes terão finalmente concordado com um único modelo de paz. Do lado israelense, abre-se a perspectiva de o país, criado há pouco mais de 50 anos, respirar aliviado e aproveitar as possibilidades que o novo acerto lhe pode trazer em trocas comerciais e venda de tecnologia.

É natural que haja dúvidas sobre a proposta. Exaustivas negociações devem ser feitas. Mas é imperativo criar condições para que a proposta vingue. Na cúpula árabe marcada para o fim de março, muitas arestas terão de ser aparadas. As duas mais complexas são Iraque e Síria. Bagdá, pelo ódio a Israel. Damasco, pelas Colinas de Golã, perdidas na Guerra dos Seis Dias. Até lá, Israel e Estados Unidos têm em mão papel fundamental a desempenhar.


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03/04/2002


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