A mais democrática das Constituições



A Constituição de 1988 recebeu vários epítetos, como -A Constituição Coragem- e -A Constituição Cidadã-, pelo deputado Ulysses Guimarães, que a presidiu. Concluída antes da grande transformação mundial que reduziu as ideologias a pó, a Carta recebeu críticas dos dois pólos opostos do espectro ideológico brasileiro daqueles anos em que o Muro de Berlim ainda estava de pé.

O então presidente do Partido Comunista Brasileiro, Luís Carlos Prestes, a definiu como -a mais reacionária das constituições brasileiras-. Do outro lado, o principal formulador do pensamento liberal, o deputado Roberto Campos, disse: -É uma Constituição saudavelmente libertária do ponto de vista político, cruelmente liberticida no econômico, comoventemente utópica no social-.

Mas a Constituição tem uma virtude básica que ninguém pode negar: é a mais democrática de todas as que o país já teve. A começar pelo regimento e pela forma de elaboração. Nas outras constituintes republicanas, havia uma Grande Comissão, ou uma Comissão 21, formadas pelos parlamentares mais notáveis, que elaboravam um anteprojeto, enquanto os demais constituintes apenas esperavam para votar. A Assembléia Nacional Constituinte inovou: formaram-se, por sugestão do então deputado Fernando Lyra, oito comissões temáticas em que TODOS os constituintes eleitos em 15 de novembro de 1986 participaram. Os 487 deputados e 72 senadores de então dividiram-se entre as comissões com as quais tinham maior familiaridade temática.

Enquanto as constituintes de 1891, de 1934 e de 1946 trabalharam quase em segredo com suas comissões de notáveis, a de 1987/88 praticamente forçou a totalidade dos brasileiros a participar dos debates e da elaboração da nova Carta. Já havia no ar um Jornal Nacional , da Rede Globo de Televisão, com uma audiência de mais de 60 milhões de brasileiros. Houve ainda os noticiários de televisão e rádio chamados Diário da Constituinte , em rede nacional de 170 estações de televisão e mais de mil emissoras de rádio, em que se prestava contas de todas as atividades diárias de elaboração da Carta. Praticamente toda a sociedade brasileira se organizou em grupos de pressão e, durante 18 meses, cada brasileiro se familiarizou com temas complexos como sistema tributário, organização dos poderes, direitos e garantias individuais e coletivos, papel institucional das Forças Armadas, habeas data e mandado de injunção.

O líder do PMDB na Constituinte, senador Mário Covas, disse: -Mesmo que o resultado final não seja a Constituição dos nossos sonhos, será certamente a mais democrática, e que terá cumprido o papel didático de fazer todo brasileiro discutir institucionalmente o seu país-. Ao longo de 18 meses, um ano e meio, analisaram-se 61.020 emendas de parlamentares, além de 122 populares.

A nova Constituição inovou ao transferir para a abertura os Direitos e Garantias Fundamentais, em vez dos antigos Direitos Individuais das cartas anteriores, que ficavam no fim do texto. Instituíram-se novidades como o habeas data , pelo qual todo cidadão tem o direito a ter acesso às informações sobre si próprio armazenadas pelo Estado ou por quem quer que seja; o mandado de injunção, que permite a qualquer cidadão buscar judicialmente reparação sempre que a falta de norma reguladora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais.

Foi adotada a medida provisória, porque havia a expectativa de que prevalecesse o sistema parlamentarista de governo. Da Constituição portuguesa, retirou-se a idéia de uma revisão cinco anos depois da promulgação. Só que a Carta lusitana prevê revisões qüinqüenais, enquanto a brasileira previa apenas uma, em 1993. A revisão garantiu apenas a instituição do Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF), mais tarde transformado em Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF).

Ao todo, já houve 40 emendas, sendo que as principais ocorreram em 1995, no transcurso do primeiro ano do primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Foram as cinco mudanças no capítulo da Ordem Econômica, que eram quase consensuais: o fim do monopólio da Petrobras; a abertura do subsolo a empresas privadas; a permissão para navios de bandeira estrangeira na navegação de cabotagem na costa brasileira; a quebra do monopólio das telecomunicações e a mudança no conceito de empresa brasileira.

Em 5 de junho de 1997, foi, então, promulgada a emenda que permitia a reeleição do presidente da República, dos governadores e prefeitos, ficando os mandatos reduzidos de cinco para quatro anos.

Às críticas de que a Constituinte era excessivamente detalhista e poderia tornar o país ingovernável, o deputado Ulysses Guimarães respondeu: -A ingovernabilidade está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida são ingovernáveis-. O então presidente da República, José Sarney, contribuiu para a conturbada transição com um governo pautado pela paciência e pelo espírito democrático, eventualmente apontando problemas que o texto em elaboração poderia trazer aos futuros governos. Mas, ao ser promulgada a nova Carta, disse: -A Constituição não deve ser discutida. Eu a critiquei, sempre com espírito público, na fase de elaboração. Amanhã ela será lei. Ela é história. Serei o seu maior servidor-.




08/10/2003

Agência Senado


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