Acordo garante votação








Acordo garante votação
Após vários dias de impasse, a oposição recuou e desistiu de elevar o salário mínimo para mais de R$ 200, o que permitiu a análise do Orçamento para 2002 durante a madrugada de hoje

Os partidos das oposição desistiram de brigar pelo aumento do salário mínimo para R$ 220 ou R$ 210 e fecharam um acordo com os aliados do governo para votar o orçamento da União para 2002 durante a madrugada de hoje. ‘‘Foi o possível’’, resumiu Walter Pinheiro (BA), líder do PT na Câmara dos Deputados.
‘‘A oposição compreendeu que nem tudo o que ela reivindicou poderia ser atendido’’, comentou Aécio Neves, presidente da Câmara dos Deputados, ao anunciar o acordo no início da noite de ontem. ‘‘Agora o país poderá ter seu Orçamento, tão necessário à estabilidade e à tranqüilidade do país’’, comemorou.

Em compensação, a oposição conseguiu aprovar integralmente pelo menos uma das três exigências que vinha fazendo há duas semanas para votar o Orçamento no Congresso: a renegociação da dívida dos pequenos agricultores. Ela foi negociada pessoalmente com Amaury Bier, ministro interino da Fazenda, que no início da noite foi ao gabinete de Aécio Neves para conversar pessoalmente com parlamentares oposicionistas.
Eles acertaram a edição de uma medida provisória (MP) pelo governo prevendo a renegociação de cerca de R$ 450 milhões em dívidas contraídas por meio de 350 mil contratos de empréstimos para pequenos e médios agricultores. Calcula-se que por volta de 1 milhão de famílias serão beneficiadas pelo acordo.

Os agricultores que receberam financiamentos de até R$ 20 mil poderão aderir ao plano de renegociação até junho de 2002. Bastará que tenham pago ou venham a pagar pelo menos 10% do que devem. As dívidas serão roladas por 10 anos, mais outros 2 de carência. ‘‘É quase uma anistia’’, comemorou Inácio Arruda (CE), líder do PCdoB na Câmara dos Deputados e um dor articuladores do acordo.

As novas regras, segundo o acertado, terão de ser regulamentadas no máximo em 90 dias. Elas beneficiarão os agricultores que têm contratos fechados pelo Programa Especial de Crédito para a Reforma Agrária (Procera), destinados a assentados; pelo Programa Nacional de Fortalecimento Agricultura Familiar (Pronaf), e pelos fundos constitucionais, destinados às regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste.

Ficaram de fora apenas os que receberam dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Esses terão de esperar até a segunda semana de janeiro, quando governo e oposição voltam a se reunir para discutir o assunto, para saber se também direito à renegociação de suas dívidas.

Reajuste dos servidores
A terceira exigência da oposição ao longo das duas últimas semanas para que viesse a deixar de obstruir a votação do Orçamento era o aumento salarial dos servidores públicos. No acordo de ontem, conseguiu arrancar a criação de uma comissão de parlamentares que dentro de 60 dias irá analisar que categorias já obtiveram bons reajustes e que outras estão com salários defasados. ‘‘Vamos avaliar as distorções e propor soluções’’, explicou o deputado Miro Teixeira (RJ), líder do PDT na Câmara.

A oposição conseguiu ainda outras pequenas vitórias. Por meio de destaque realizado antes da votação, ela garantiu a retirada do valor de R$ 1,4 bilhão previsto pelo relator-geral do Orçamento, deputado Sampaio Dória (PSDB-SP) caso a contribuição previdenciária dos inativos viesse a ser aprovada pelo Congresso ao longo do próximo ano. O mesmo valor teve de ser cortado nas despesas, atingindo em sua maior parte verbas previstas para a própria Previdência.

Outra exigência feita pela oposição, e acatada pelo governo, tinha um caráter aparentemente técnico. Tratava-se de uma modificação feita na madrugada de ontem pela Comissão Mista de Orçamento sobre as despesas com o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust). No projeto original de Sampaio Dória ela estava na rubrica de investimento. Pela amanhã, havia passado para a rubrica de custeio. O Fust, arrecadado pelo governo junto às empresas de telecomunicações, será utilizado para a compra e instalação de computadores nas escolas públicas. Segundo a oposição, isso possibilitaria que todo o processo fosse controlado pelas empresas privadas, driblando a Lei de Licitações.

Elas poderiam, por exemplo, exigir apenas terminais funcionando com o Windows da Microsoft, deixando de lado o programa aberto Linux (de origem finlandesa e disponível gratuitamente na Internet), cada vez mais adotado por governos ao redor do mundo. Outra desvantagem seria o fato de que, considerado o Fust como ‘‘custeio’’, as empresas poderiam também considerar que estariam apenas prestando um serviço ao governo, tornando-se assim proprietárias dos equipamentos utilizados nas escolas públicas.

A oposição conseguiu ainda passar uma última exigência, a de que seja realizada uma reforma no modo de tramitação do Orçamento no Congresso, para pôr fim às intermináveis barganhas de última hora por recursos para emendas de interesse de deputados. Aécio Neves e Ramez Tebet (PMDB-MS), líderes da Câmara e do Senado, prometeram criar uma comissão para estudar o assunto.


Remanejamento
O Congresso fez uma série de mudanças no Orçamento-geral da União para o próximo ano.

Investimentos
Subiu de R$ 11 bilhões previstos no projeto original do governo para R$ 17,1 bilhões

Gastos com pessoal
O governo havia previsto R$ 69,2 milhões. Os deputados aumentaram para R$ 69,9 milhões

Despesas correntes
Somavam 196,4 bilhões no projeto original. Viraram R$ 204,9 bilhões no texto dos congressistas

Rolagem da dívida pública
Reajustada em 0,36%. De R$ 277,1 bilhões, foi reprogramada para R$ 278,1 bilhões

Reserva de contingência
Caiu de R$ 8,5 bilhões para R$ 6,4 bilhões. É o dinheiro separado para emergências, como socorro em situações de calamidade pública.

Superávit primário
Revisto de R$ 36,7 bilhões para R$ 37,2 bilhões. Essa é a parcela da arrecadação que não será usada em despesa de nenhum tipo. Faz parte do programa de ajuste fiscal.

Arrecadação federal
A receita com os impostos e taxas colhidos pela Receita Federal, antes estimados em R$ 200 bilhões, foram remanejados para R$ 213,3 bilhões

Imposto de renda
O projeto orçamentário não prevê a fonte do R$ 1,8 bilhão em arrecadação perdida com o reajuste da tabela do Imposto de Renda das pessoas físicas, aprovado em novembro. O projeto já foi aprovado pelo Senado e seguiu para sanção presidencial. O Palácio do Planalto tem até o dia 8 de janeiro para vetá-lo ou sancioná-lo.


De olho na campanha eleitoral
‘‘Essa pressa mostra que o deputado quer um espaço no ano eleitoral. Não sou contra a Câmara fazer homenagens, mas devia haver um critério’’

Deputados descobriram uma nova forma de agradar a seus eleitores com a proximidade das eleições: realizar na Câmara sessões solenes de homenagens. A nova fórmula está provocando uma situação inusitada na Casa: 2001 nem terminou e já estão marcadas 47 sessões solenes para 2002, incluindo dezembro. O autor do requerimento é o primeiro a ocupar a tribuna de honra e normalmente preside essas sessões sentado no alto do plenário, na cadeira do presidente da Casa.

Isso significa uma exposição em média de três horas na TV Câmara, demonstração de prestígio e elogios na imprensa de seu estado ou em publicações dirigidas. O deputado evangélico Lincoln Portela (PSL-MG) foi rápido. Das 47 sessões solenes marcadas para o próximo ano, 14 foram por meio de seus requerimentos. Prática que ele exerceu neste ano. Port ela emplacou sete sessões desse tipo em 2001 e ainda cedeu três datas marcadas para colegas. Grande parte das sessões dele é dedicada a igrejas evangélicas, sua base eleitoral.

O exemplo foi seguido por Glycon Terra Pinto (PMDB-MG), que em três anos de mandato nunca havia apresentado um pedido para a realização de sessão solene. Para o próximo ano, já marcou cinco para homenagear a Igreja Batista da Lagoinha, a Igreja Batista Getsmani e a Igreja Batista da Floresta, entre outras. ‘‘Essa pressa mostra que o deputado quer um espaço no ano eleitoral. Não sou contra a Câmara fazer homenagens, mas devia haver um critério‘‘, afirmou o líder do PT, Walter Pinheiro (BA).

Lista de pedidos
No requerimento da sessão em homenagem à Igreja do Evangelho Quadrangular, em 13 de novembro, os deputados Mário de Oliveira (PST-MG) e Josué Bengtson (PTB-PA) apresentaram extensa lista de pedidos ao presidente, Aécio Neves (PSDB-MG). Solicitaram a instalação de microfones no plenário para que um quarteto cantasse canções sacras, estacionamento para 15 ônibus, entrada no plenário de 29 cadetes com uniformes de gala, portando bandeiras dos estados e da igreja, e entrega de medalhas ou placas ao presidente da Igreja Quadrangular, ou seja, ao próprio Oliveira. Os pedidos foram negados. Mas, se a Câmara resolvesse atender a pedidos como esse, uma outra sessão solene poderia ter virado um show. No requerimento que apresentou para homenagear os 40 anos do programa do apresentador de TV Raul Gil, o deputado Magno Malta (PL-ES) pediu a instalação de microfones no plenário para que o homenageado cantasse uma música de sua autoria.

Com tudo isso, a Câmara já não consegue realizar homenagens em casos de acontecimentos imprevisíveis. O deputado Fernando Gabeira (PT-RJ) tentou marcar uma sessão em homenagem às vítimas dos atentados ao World Trade Center. Não havia data disponível.


Dólar puxa preços e inflação vai a 10,38%
Com a volta da estabilidade no câmbio, Fundação Getúlio Vargas e Banco Central prevêem taxas de até 4% em 2002. Isso deve ajudar a reduzir os juros

A queda do dólar nas últimas semanas, depois de meses seguidos de valorização em relação ao real, fez a inflação de dezembro despencar. O Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M), medido pela Fundação Getúlio Vargas, fechou este mês com alta de 0,22%, ante 1,1% em novembro. No ano, o índice acumula alta de 10,38%, ante 9,95% em 2000. Além da queda do dólar, o fim da entressafra de carne bovina e a chegada ao mercado da safra de feijão do verão foram decisivas para a queda no ritmo dos reajustes de preços.

Conforme o economista Paulo Sidney Cota, chefe do Centro de Estudo de Preços da FGV, a permanência dos fatores que fizeram a inflação cair em dezembro, mais a anunciada redução dos combustíveis, vão frear ainda mais os preços. Isso ajudará a compensar as tradicionais altas do mês, como as do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e das mensalidades escolares. ‘‘Tudo indica que vamos começar o ano que vem em deflação’’, disse Cota. Deflação é a queda generalizada de preços. Para o próximo ano, Cota prevê uma inflação de 4%, mantida a atual conjuntura favorável.

Estimulado pelas notícias favoráveis das últimas semanas, o Banco Central também reviu para baixo a estimativa de inflação para 2002 e projeta agora taxa mais próxima do centro da meta, fixado em 3,5% no ano. A previsão anterior era de 4%. Segundo a ata do Comitê de Política Monetária (Copom) divulgada ontem, os principais motivos para essa melhoria de expectativa são a queda do dólar e um aumento das tarifas públicas menor do que o esperado anteriormente, com destaque para energia elétrica e combustíveis. Diante do cenário traçado pelo BC, é provável que haja redução na taxa básica de juros (Selic) na próxima reunião do Copom. A taxa é mantida em 19% ao ano desde julho.

A projeção de elevação das tarifas de energia elétrica para o ano que vem passou por um grande ajuste e foi revista para 19%. No mês passado, a previsão era que o aumento poderia chegar a 30%. O preço combinado da gasolina e do óleo diesel deve cair 15,2% ao longo de 2002, segundo as novas estimativas do BC. Na ata de novembro, a avaliação era de queda de 4,2% nos preços dos derivados de petróleo ao consumidor.

As novas estimativas do BC se baseiam na inflação medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) que recuou de 0,83% em outubro para 0,76% em novembro. Conforme a ata do Copom, a inflação perdeu o fôlego porque a indústria e o comércio estão repassando a queda do dólar diante do real para os preços. A taxa só não está caindo mais porque as empresas tentam recuperar a margem de lucro, comprimida devido ao fraco desempenho da economia.

O otimismo do Banco Central não se limitou à taxa de inflação. A instituição confirmou a expectativa de retomada da atividade econômica no ano que vem. Conforme a ata, o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) ficará próximo de 2% neste ano e ligeiramente maior em 2002. No entanto, o cenário internacional ainda é incerto. A instituição avalia que a retomada do crescimento econômico dos países industrializados só deve ocorrer no segundo semestre do ano que vem. Na ata do mês passado, o BC esperava que a economia dos Estados Unidos começasse a se recuperar a partir do segundo trimestre de 2002. De acordo com o documento, o BC só não reduziu os juros na reunião do Copom deste mês por causa das incertezas no cenário externo, como a evolução da crise argentina.


Produção recorde na Petrobras
A produção de petróleo alcançou a marca de 1,560 milhão de barris no dia 20 deste mês, um resultado recorde, segundo dados divulgados pela Petrobras. A melhor marca anterior foi verificada no fim do ano passado, quando a produção atingiu 1,531 milhão de barris por dia. O Campo de Marlim, situado na Bacia de Campos, litoral norte do Rio de Janeiro, foi o maior responsável por esse novo recorde da empresa. Do total produzido no país no dia 20, Marlim produziu 641 mil barris, o equivalente a 41% da produção brasileira. O aumento expressivo na produção refletiu a entrada em operação das plataformas P-40 e P-38, no Campo de Marlim Sul, no último dia 16. Com apenas cinco dias de operação, essas plataformas totalizaram uma produção de 60 mil barris por dia.


Mandato de Saá divide aliados
‘‘Não. Aqui não tem ninguém trabalhando para que as eleições se realizem’’, confessava sorridente um dos mais importantes funcionários do novo governo. Entre os assessores de Adolfo Rodrigues de Saá e em algums setores do peronismo, a ordem é encontrar alguma forma de evitar as eleições marcadas para o próximo dia 3 de março. O projeto de ampliar o mandato de Saá até 2003, cancelando as eleições marcadas para daqui a 60 dias, ganhou ontem a adesão do ex-presidente Carlos Menem. E dividiu o Partido Justicialista, que reúne os partidários do ex-ditador argentino Juan Domingo Perón, e que está no poder.

Os justicialistas bateram boca dentro da Casa Rosada, sede do governo argentino. Menem fez a sua primeira visita a Saá depois da sua posse como presidente. E defendeu que ele continue no cargo até 2003. Alguns minutos depois, na mesma Casa Rosada, o governador de Córdoba, José Manuel de la Sota, lançou-se contra a idéia de Menem. De la Sota e Carlos Meném são os dois políticos mais importantes do PJ.

A briga, na verdade, envolve os projetos pessoais dos justicialistas. Menem, por força da legislação argentina, não pode participar das eleições. A lei estabelece que um presidente reeleito tem de se afastar de qualquer pleito por quatro anos. De la Sota e outros justicialistas sonham com as possibilidades colocadas pelas eleições de março.

‘‘Há um com promisso inicial que pode ser cumprido ou não. Vamos ver como evoluem os acontecimentos’’, disse Menem sobre as eleições. Logo em seguida, De la Sota contestou Menem, nos mesmos corredores da Casa Rosada. ‘‘Não se pode desconhecer o mandato da Assembléia Legislativa, que estabeleceu um ponto final para o mandato do presidente Rodriguez Saá’’, respondeu o governador de Córdoba.

No governo, três táticas estão sendo imaginadas para evitar as eleições de março. A primeira e mais provável é que a própria Justiça trave o processo eleitoral por considerar inconstitucional o que foi votado pela Assembléia Legislativa. O advogado Ricardo Monner Sanz já fez, na quarta-feira, uma representação nesse sentido, para que Saá fique até 2003. A segunda alternativa é convocar uma nova Assembléia Legislativa que prorrogue o mandato de Saá. É uma opção que envolve certo risco político porque uma reunião do Congresso é sempre incontrolável. A terceira estratégia é convocar um plebiscito, que referende a permanência de Rodriguez Saá. É também uma idéia perigosa: da mesma forma, os plebiscitos são imprevisíveis.


Artigos

Cotas
O exemplo dado pelo governo pode inspirar a sociedade para a busca da superação das desigualdades de tratamento com negros, mulheres e deficientes físicos
Sueli Carneiro

Temos recorrentemente discutido nesta coluna a magnitude das desigualdades raciais e o imobilismo na implantação de políticas para a sua reversão. Enfim esse imobilismo começa a se romper e o governo federal anuncia ações concretas.

A portaria assinada em 19 último pelo ministro da Justiça, Aloysio Nunes, prevê reserva de vagas para negros, mulheres e deficientes físicos em empresas que prestam serviços ao seu ministério.

É medida inspirada na ação pioneira implantada no Ministério de Desenvolvimento Agrário pelo ministro Raul Jungmann. O presidente Fernando Henrique, por sua vez, defende a extensão da política de cotas para os demais órgãos do governo.

Cabe ao Estado assegurar a realização do princípio de igualdade de direitos e oportunidades quando a sociedade não se mostra capaz de fazê-lo. Portanto, a necessidade de medidas como essas decorre da intransigência da sociedade em geral para a adoção de políticas de promoção da efetiva igualdade de oportunidades, em especial no mercado de trabalho. Fosse a redução dos padrões de desigualdades uma meta desejada e abraçada pelo conjunto da sociedade, o Estado não precisaria normatizar a matéria.

No entanto, os que prontamente se manifestam contra políticas de ação afirmativa ou sobre a implantação de cotas para inclusão dos afro-descendentes centram-se em argumentos que, ao intencionalmente deixarem de fora os dados conhecidos da exclusão social dos negros, acabam por advogar pelo imobilismo, pela manutenção do status quo. Mostram-se incapazes de, diante dos números chocantes das desigualdades, proporem qualquer medida de alteração dessa realidade brutal. Ou remetem a solução do problema para um futuro longínquo em que supostamente políticas macroeconômicas realizariam a façanha de reduzir a pobreza e a exclusão racial. Enquanto isso não ocorre, caberia aos negros conformarem-se com as suas condições adversas de vida. De preferência quietinhos.

Diz Lynn Huntley, diretora da South Education Foundation, que a ação afirmativa é solução para um problema determinado e um remédio que pode ser adotado via políticas públicas por ato governamental, por empresas, escolas, organizações não-governamentais etc.

Segundo ela, por exemplo, o empregador examina a sua força de trabalho e se pergunta se ela inclui a composição da diversidade do país. Em caso negativo, percebe ser necessário investigar o seu sistema de contratação e promoção. E deve dar um sinal claro aos seus gestores, que espera deles competência também na administração da diversidade.

Um dos argumentos-chaves da área de recursos humanos das empresas é o de que os negros não têm educação e qualificação suficiente para ocupar postos mais qualificados. Ora, em sendo assim e em havendo vontade política efetiva para mudar o padrão de exclusão racial, diferentes instrumentos de treinamento, qualificação e de estímulo à conclusão de níveis superiores de escolaridade poderiam ser utilizados para desenvolver uma política de diversidade. São práticas comuns realizadas pelas empresas para atingir outras metas.

Se houvesse vontade política nas universidades públicas para se tornarem mais democráticas renunciando a sua vocação de instrumento de reprodução das classes dominantes e integrar no seu interior a diversidade do país, e se reconhecidamente a maioria dos alunos pobres e negros apresentam defasagem em relação aos oriundos das classes superiores, um repertório cultural empobrecido correspondente a sua origem social e podem, segundo muitos, com sua entrada maciça ‘‘baixar’’ o nível da universidade pública, é dever dessa universidade encontrar os instrumentos capazes de permitir o aumento do nível cultural dos alunos, mediante estratégias de suplementação cultural (experiências já existentes em alguns estados), pois a universidade dispõe, como nenhuma outra instituição, dos meios para realizar o saneamento das debilidades educacionais trazidas pelos alunos oriundos de escolas públicas de baixa qualidade.

Dizem uns que ‘‘a idéia de cotas raciais é cruel, que escolher quais pessoas pobres devem ser salvas significa igualmente condenar os demais à ignorância e ao desamparo cos-tumeiros’’. Esse é um argumento que intencionalmente escamoteia o fato de costumeiramente serem os negros os relegados à ignorância e ao desamparo social. Se há 34 milhões de pobres, 65% deles são negros. Nesse universo de pobres, 22 milhões são indigentes; desses, 15 milhões são também negros, e a conseqüência desses níveis de miserabilidade é que a porcentagem de negros nas universidades é de 2% de numa população negra estimada em 45% da população total do país.

Portanto, o desafio de erradicação da pobreza, da miséria e da indigência depende de medidas de escala focadas nessa população historicamente excluída que políticas de cotas não alcançam.
A iniciativa do governo é importante mas insuficiente. Seu mérito fundamental é o de romper com o imobilismo e sinalizar para o conjunto da sociedade a necessidade de mudança no nosso padrão excludente de relações raciais, começando a mudança em sua própria casa. Indica, também, a disposição do Estado brasileiro de não mais tergiversar, como é de sua tradição, em relação a esse problema. O exemplo dado pelo governo pode inspirar a sociedade para a busca de propostas outras, originais e criativas para a busca da superação das desigualdades raciais. Pode ampliar a visibilidade e a multiplicação de experiências já existentes, abrindo caminho para que a idéia de uma verdadeira democracia racial possa vir a se tornar realidade em nosso país e se possa prescindir um dia de políticas compensatórias.


Editorial

Chuvas e oferta de energia

O regime pluviométrico foi considerado pelas autoridades do setor elétrico como o responsável pelo choque de energia elétrica que conduziu o país ao racionamento em maio passado. Com as medidas tomadas, evitou-se o pior — o apagão descontrolado na área do Operador Nacional do Sistema (ONS).

Mas os impactos sobre a economia foram dramáticos. O ritmo da atividade produtiva, que se acelerava desde o segundo trimestre de 2000, sofreu descontinuidade. As projeções do produto interno bruto (PIB) para este ano reduziram-se à metade. Ocorreram quedas nos investimentos diretos e procrastinação de projetos de grande escala que dependem de adequada infra-estrutura de energia elétrica para v iabilização.

Se, de um lado, o regime de chuvas fora anômalo, de outro evitou-se divulgar que o esgotamento do reservatório equivalente se iniciara havia mais de cinco anos. Nesse período, as usinas do sistema interligado operaram muito acima do limite da curva de utilização recomendada. Soma-se ao fato a falta de investimentos em geração e transmissão decorrentes de equívocos da privatização do setor e condicionamentos relacionados com o superávit fiscal recomendado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Em suma: houve imprevidência na gestão do setor elétrico nacional.

As previsões de chuva para o verão, na ótica da recuperação dos reservatórios, são muito favoráveis. O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) calcula, para o verão de 2002, aumento de até 20% na precipitação média em relação à média histórica dos últimos trinta anos. As região com perspectivas melhores engloba a nascente do São Francisco, que deságua na barragem de Sobradinho, no Nordeste, que havia atingido o limite tolerável de depleção.

O cenário otimista vindo dos céus levou o governo a abrandar as metas de consumo. Substituiu-as pelo racionamento via preço. Além do recente aumento para recompor o caixa das distribuidoras, as tarifas de energia elétrica sofreram em 2001 majorações superiores a três vezes a inflação do período.

Alguns especialistas julgam ter sido precipitada a decisão governamental de afrouxar as rédeas do racionamento. A retomada da atividade econômica sugerida, por exemplo, pelo baixo nível de estoques industriais apurado por pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, pode comprometer a recuperação dos reservatórios, apenas esboçada. A razão é simples. A reposição de estoques implica maior demanda de energia industrial.

As previsões relacionadas com os fenômenos naturais incluem elevada margem de risco e incerteza. É indispensável o acompanhamento atento da evolução do consumo de energia elétrica no país. Só a prevenção pode evitar novo e dramático contingenciamento da oferta.


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12/28/2001


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