Ao falar da morte de Tancredo, Sarney relembra sua luta para concluir a transição democrática
Vinte e cinco anos depois dos eventos inesperados que o levaram a assumir o Palácio do Planalto, o presidente do Senado, José Sarney, revelou que, em seu período como presidente da República, lutou até os últimos dias para "evitar as forças que tendem a expelir o ocupante da Presidência". Sarney respondeu a perguntas enviadas por escrito pela Agência Senado sobre os 25 anos da morte de Tancredo Neves, que se completam nesta quarta-feira (21 de abril). Em 2010 também se celebra o centenário de nascimento do político mineiro.
Com a distância histórica de mais de duas décadas, o presidente do Senado considera que o maior mérito de seu governo foi ter completado o processo de transição até a posse do sucessor, eleito pelo voto direto, sem deixar que falhasse ou fosse interrompido o processo de evolução democrática. José Sarney tomou posse em 15 de março de 1985, segundo ele, quase que por imposição das forças democráticas, já que o presidente eleito havia sido internado na noite anterior. Ele fala de seu último encontro com Tancredo e diz que, seguindo o exemplo do político mineiro, governou exercendo a paciência e a conciliação.
Depois de 25 anos, que análise o senhor faz do momento histórico da eleição de Tancredo Neves?
Podemos ter hoje uma visão muito mais definida do papel decisivo que Tancredo Neves desempenhou em momentos cruciais de nossa vida republicana. Nada fiz sem pensar antes no que ele faria, porque, como já disse antes, substituí-lo era uma tarefa maior do que eu mesmo. A fadiga do regime militar se exprimira na afirmação do presidente Ernesto Geisel, em 1974, de que haveria uma "abertura lenta, gradual e segura". A força do movimento de redemocratização se exprimiu nas diretas-já, que impulsionaram Ulysses Guimarães para a candidatura presidencial. Com a eleição indireta, chegara a vez de Tancredo Neves. Era o brasileiro mais bem preparado pela história para liderar a transição. Tinha a legitimidade e o sentido de conciliação necessários para empolgar todos os campos de opinião, desde o grande público aos membros do colégio eleitoral. Minha abertura da dissidência do PDS foi o sinal para a formação da Aliança Democrática, que consolidou a vontade majoritária do país e a consagradora vitória de 15 de janeiro de 1985.
Como foi a formação da chapa, a sua indicação para vice-presidente?
Tancredo Neves insistiu em que eu fosse seu companheiro de chapa. Eu tinha a convicção de que meu nome não era o mais adequado, pois enfrentaria resistências naturais pela minha origem partidária. Mas o então governador Tancredo Neves me convocou a Minas Gerais e, lá, foi inflexível em minha indicação. Eu fui obrigado a aceitá-la, colocando desde logo meu nome à disposição para ser substituído se isso fosse útil às articulações políticas. Era um tempo em que as posições políticas eram beatificadas ou satanizadas em função da bipolaridade ideológica.
Como foi a formação do governo, do Ministério, já que a divisão ideológica do período era tão forte?
Eu me preparei para ser um vice-presidente com um papel meramente protocolar. Não participei, em nenhum momento, da formação dos quadros ou do programa de governo.
Qual o momento mais difícil da transição? Em algum momento o senhor viu risco de retrocesso?
A transição foi uma obra construída a cada dia e sempre foi muito difícil. Tive que lutar, até os últimos dias de governo, para evitar as forças que tendem a expelir o ocupante da Presidência. Como Juscelino Kubitschek, considero que o maior mérito do meu governo foi ter completado o processo de transição até a posse do meu sucessor, sem deixar falhar a evolução democrática, sem que a transição sofresse abalos.
Houve risco de retrocesso quando o presidente Tancredo teve que internar-se?
Tancredo foi um mártir, porque deu mais do que a vida, deu a própria morte para defender a transição para a democracia, como disse Afonso Arinos. Ele sabia que estava doente. Mas Tancredo acreditava que, se aceitasse hospitalizar-se dias antes, haveria um problema institucional, a transição não ocorreria. Houve, sim, riscos antes da posse. Tancredo sabia o que custara chegar àquele instante e não admitia ser operado antes da posse, temia uma crise político-militar de desfecho imprevisível, estava informado de que o presidente Figueiredo não daria posse a mim, o vice-presidente eleito. Só aceitou ser internado às pressas quando ouviu de Francisco Dornelles a garantia de que Figueiredo transmitiria o cargo. Assumi contra minha vontade, por imperativo jurídico e pela vontade dele.
Como foi seu último encontro com o presidente Tancredo antes da internação?
Estive brevemente com Tancredo Neves na véspera da posse, na tarde do dia 14, durante a missa de Ação de Graças na Igreja de Dom Bosco. Pela manhã, estivera com ele na Granja do Riacho Fundo, em companhia do então vice-presidente Aureliano Chaves, Jorge Bornhausen e Marco Maciel. Ele nos disse que estava resfriado e nos recebeu com um cachecol em volta do pescoço. Sentei-me ao seu lado. Tinha as mãos frias.
Como foi comunicado que o presidente Tancredo Neves não poderia tomar posse e que a transmissão do cargo seria com o senhor como presidente?
Por volta das 9h da noite do dia 14, Aluizio Alves [já nomeado pelo presidente eleito para o Ministério da Administração] me telefonou dizendo que Tancredo havia sido internado no Hospital de Base. Depois de confirmar a notícia com o general Leônidas Pires Gonçalves [então nomeado para o Ministério do Exército], para lá me dirigi. O deputado Ulysses Guimarães estava numa sala, solitário. Disse-me que eu deveria assumir no lugar de Tancredo, o que eu não quis aceitar. Chegaram outros políticos e o tema da posse tornou-se o centro da conversa. Eu me senti desconfortável e voltei para casa. Pela madrugada, o general Leônidas me telefonou e disse que estava decidido: como vice-presidente eleito, eu tomaria posse no lugar do presidente. Insisti em recusar, mas ele foi firme e cortou a conversa com um "Boa noite, presidente".
Que papel teve o general Leônidas Pires Gonçalves naquela noite, na decisão de que o vice eleito tomaria posse sem riscos para a transição?
Ele foi, com Ulysses Guimarães, ao ministro Leitão de Abreu [chefe do Gabinete Civil do governo Figueiredo], para conversar sobre a situação criada com a doença de Tancredo e sobre o governo que terminava. O general tinha os artigos constitucionais na ponta da língua e o ministro Leitão aceitou os argumentos. Ao mesmo tempo, Leônidas colocou em prontidão todo o dispositivo militar comprometido com a redemocratização, para evitar qualquer possível tentativa de interferência dos que não se conformassem com a solução constitucional.
Onde o senhor guarda a carta que lhe enviou o presidente Tancredo Neves antes da morte e o que dizia o último documento escrito dele?
Guardo a carta em meus arquivos, como um tesouro. Seu conteúdo é público, pois o revelei em seguida, como era a intenção do presidente Tancredo Neves. Há poucos dias, a citei durante as comemorações do centenário de nascimento dele.
Diz a Carta:
"Caro Sarney,
A Nação está registrando o exemplo de irrepreensível correção moral que o prezado amigo lhe transmite no exercício da Presidência da República. Na política, o exemplo é mais importante do que o discurso. O discurso é efêmero pela sua própria natureza. O seu efeito termina com a leitura de sua divulgação por mais eloqüente e oportuno que seja ele. O exemplo, ao contrário, contribui para a construção ética da consciência do nosso povo que, na solidariedade que tem demonstrado, tem me dado forças para superar estes momentos.O seu exemplo, presidente Sarney, ficará memorável em nossa Histór ia.
Um cordial abraço para Marly.
Tancredo Neves".Cezar Motta e Teresa Cardoso / Agência Senado
16/04/2010
Agência Senado
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