Especial D.O.: Deficientes auditivos e visuais cantam e encantam em Bauru
A música, como terapia na reabilitação dos pacientes, deu origem a três corais no Hospital de Reabilitação da USP
Cantar é uma das maneiras mais divertidas, enriquecedoras e adequadas para dar continuidade às atividades terapêuticas desenvolvidas entre surdos e deficientes auditivos, ensina Maria José Buffa, coordenadora do Centro Educacional do Deficiente Auditivo (Cedau) e do Núcleo Integrado de Reabilitação e Habilitação (NIRH).
Ambos fazem parte do Hospital de Reabilitação de Anomalias Crânio-faciais, o Centrinho, da USP de Bauru, e têm como tarefa principal reabilitar e habilitar deficientes auditivos e surdos. E foi, assim, cantando de improviso, na festa de comemoração dos dez anos do Cedau, em 2001, que o grupo de meninas e meninos, de 2 a 14 anos, despertou como Coral. Não precisou muito, conta Maria José. Algumas músicas ensaiadas foram suficientes para conquistar e agradar o público que pediu bis. E, principalmente, apaixonou e motivou o superintendente do Centrinho, José Alberto de Souza Freitas, carinhosamente chamado de tio Gastão, referência ao personagem de Walt Disney, a levar adiante o projeto. Tio Gastão está no comando do Centrinho há exatos 39 anos, desde sua inauguração. “Ele joga isso aqui para cima, ele é o coração do Centrinho”, comenta a coordenadora. Marca presença nas festas internas, nos eventos, quer que pessoal faça teatro, crie grupos de dança, grave cds. De surpresa, anunciou, num dos eventos, a presença do Coral do Cedau.
O lampejo da primeira idéia se expandiu, tomou forma, diz a pedagoga Kátia Fugiwara, na estrada como regente desde 2001. Na verdade, segundo ela, trata-se de uma atividade terapêutica que promove a auto-estima, além de ser um ótimo recurso para enriquecer a linguagem da fala e da escrita, aumentar a sociabilidade do grupo e quebrar a timidez.
O Coral do Cedau é formado por 33 crianças que passaram por tratamento de estímulo à fala. São deficientes auditivos que se apresentam como um coral infantil tradicional, mas que exalta a força de vontade das crianças em aprender uma linguagem privada a elas pela deficiência. Kátia está há 13 anos no Cedau como pedagoga especializada. Trabalha com crianças no início da reabilitação, de 2, 3 e 4 anos, fases importantes, em que a linguagem oral é enriquecida com brincadeiras, dramatizações, coral e passeios. “São níveis diferentes de desenvolvimento de audição e linguagem. Alguns cantam muito bem, independente da idade, outros cantam com palavras isoladas, outros têm a intenção de cantar. E outros simplesmente encantam. A criança diagnosticada precocemente responde melhor à reabilitação e ao treinamento da voz.” Por outro lado, explica, o sucesso na reabilitação depende do uso do aparelho de amplificação sonora individual ou do implante coclear (dispositivo eletrônico inserido cirurgicamente). Depende, não só do uso efetivo dos aparelhos, mas do grau da perda auditiva e das características individuais de cada criança, do apoio e envolvimento da família. “No caso da reabilitação, não basta colocar o aparelho, a criança precisa aprender o significado do que está ouvindo, como, por exemplo, aprender a ouvir sons, de alguém batendo à porta, chamá-la pelo nome. A música é um complemento do nosso trabalho.”
A música sempre fez parte da terapia dos grupos do Cedau e do Nirh, sob o comando de pedagogas, psicólogas e fonaudiólogas. “Iniciamos nossas atividades com música, no café da manhã, almoço e noutras ocasiões.” Sexta-feira, por exemplo, é dia de ensaio geral, intensificado quando o Coral tem apresentações fora do Centrinho, cerca de um espetáculo por semana. O Coral está presente em aberturas de seminários, nas escolas onde estudam os integrantes, no Teatro Municipal de Bauru, no Salão Nobre da Faculdade de Odontologia de Bauru, nas igrejas, com repertório mais voltado para cantigas de roda ou músicas folclóricas, como Peixe Vivo, muitas vezes com coreografia. De um ano para cá ganhou força com a presença do tecladista Thiago Xavier Rodrigues, 24 anos, formado em regente de coral pela Universidade do Sagrado Coração de Jesus, de Bauru, e especializado em musicoterapia pela Unaerp, de Ribeirão Preto. Thiago faz diversos trabalhos voluntários com crianças e rege outros corais, mas o do Cedau é a sua vida, segundo diz. “Eu me impressiono com o esforço delas em superar o obstáculo da deficiência auditiva.” Mais recentemente, no final de maio, participaram da abertura do Seminário Educação e Surdez, realizado em Bauru. “A comunidade prestigia muito”, comenta a regente. Integram o Coral jovens de Santa Catarina, Pará, Alagoas, Pará, Goiás, cujas famílias se mudaram para Bauru para que seus filhos pudessem fazer o tratamento no Centrinho.
A cada espetáculo é uma emoção diferente, comenta Kátia. “Como trabalho com os pequeninos na fase inicial da reabilitação, em que a presença do som praticamente inexiste na vida deles, é gratificante vê-los crescer, aprender as palavras e, finalmente, cantar. As crianças, as famílias, os dirigentes do Centrinho todos se realizam. É um orgulho só.”
Para se ter idéia do sucesso do projeto, vale lembrar que famílias com casos de surdez no seu histórico ficam surpresas ao conhecer o projeto de perto. Muitas vezes são recebidas pelas crianças do Cedau, com bate-papo e música. “Isso aumenta a esperança da família”, diz a regente. “É comum ouvi-los dizer: ‘Nossa, você canta?’ ‘Você fala?’ ‘Usa aparelho?’ Sem se importarem com a sabatina, eles respondem naturalmente sobre o processo de reabilitação, da importância da música em suas vidas e do prazer em mostrar suas habilidades ao público”.
O Centrinho é um celeiro de talentos, costuma repetir o tio Gastão. Quando o assunto é música, várias ações se misturam. Além do Coral do Cedau, cita o do Nirh, formado por adolescentes e adultos surdos. Lá são trabalhadas a habilitação e reabilitação dos deficientes por meio da Libras – Linguagem Brasileira de Sinais. Dentro dessa linha, o grupo acompanha canções “cantando” na linguagem de sinais, o que constitui experiência muito interessante, já que eles conseguem expressar as canções, mesmo não ouvindo completamente. O Centrinho também tem o seu Coral, com funcionários do próprio Hospital (pessoal de nível médio, assistente social, enfermeiros, cozinha, da lavanderia) que se apresenta ali mesmo, nas festas juninas, Páscoa, Dia das Mães. Há, ainda, o Coral do Centro de Distúrbios de Audição, Linguagem e Visão (Cedalvi), criado no ano passado, composto por 16 crianças cegas, entre 6 e 12 anos.
Segundo o superintendente, existem casos isolados de crianças e adultos que, depois de submetidos às cirurgias delicadas ou mesmo tendo problemas de nascença, cantam e tocam diversos instrumentos. “Uma garota de 11 anos, de Cianorte, Paraná, com fissura de palato, após a operação, passou a cantar que é uma beleza. Até algum tempo, um grupo de dança, formado por deficientes auditivos, visual e com deformidade de face, arrancou aplausos durante quase cinco anos, com muita graça e competência nas festas promovidas no Centrinho. A dança e o canto são fundamentais no processo de integração deles. Da nossa parte, precisamos acreditar na causa e oferecer a infra-estrutura. Um aplauso não custa nada e significa muito”.
Mãos que falam
A coordenadora Maria José conta que o Coral do Nirh, à semelhança do Cedau, teve seu início em 2001, como atividade de educação artística. “Achávamos que o surdo também podia se comunicar por meio da música, igual a qualquer outra pessoa”. A aposta valeu. O Coral, originário de um grupo de street dance, conta, hoje, 35 integrantes, de 7 a 25 anos, sob a regência de duas pedagogas especializadas, Valderes Elena Rodrigues da Silva e Jane Laís Nakamura. Trata-se de trabalho desenvolvido com a fonoaudiologia, a pedagogia, a psicologia e com o instrutor de libras, Renato Paulino Lira, também surdo. Aliás, Renato é exemplo de como os surdos podem evoluir profissionalmente. Trocou seu trabalho com computadores pelo de instrutor de libras no Nirh. Aos 32 anos, é casado, e tem dois filhos não surdos, apesar de a esposa ser surda. Em casa, costuma dizer, a educação dos filhos é bilíngüe, já que dominam o português e a Libras. No Núcleo, atua como tradutor das músicas que o grupo canta. Quando os surdos chegam a cantar, já houve todo um processo de construção, conhecimento da música, leitura e escrita. Essa reconstrução lingüística é feita na sala de aula pelas pedagogas-regentes. “É um processo lento”, diz Valderes. “Trabalhamos a letra, o sentido, a autoria e a interpretação. Eles aprendem, no máximo, duas músicas por ano.” O estudo da letra é traduzido em Libras e o Renato se encarrega de repassá-lo ao Coral. Paralelamente, há exercícios de expressão corporal e facial, além de outros ministrados pela psicóloga.
Um dos integrantes, Luiz Augusto Pires Júnior, de 17 anos, assim expressa o prazer de cantar em grupo. “É muito legal sentir que todas as pessoas estão olhando para você. Dá emoção e felicidade. Às vezes, me vejo como um cantor famoso, igual àqueles da televisão. No Coral, pareço um deles. Percebo que eles gostam dos surdos. O Nirh é famoso...”
Participar do Coral do Nirh também um significado especial para Verônica Cara dos Santos, 14 anos. Ela gosta da movimentação, de conhecer lugares diferentes, de ser convidada a cantar. “O público gosta de ver a música em Libras. Muitos se interessam em conhecer os sinais e os surdos que assistem ficam com vontade de entrar para o Nirh.”
As alegrias são muitas, na opinião das regentes. Desde a maneira como eles se vestem, com roupas pretas e luvas brancas, até a divulgação da linguagem de sinais. Segundo, porque tem um sabor de vitória. “Os nossos surdos vêm de uma história de dificuldades, de fracasso, de não acreditar no potencial deles próprios. Rompemos barreiras, desfazemos equívocos. Muita gente associa a deficiência auditiva à mental. Muitas crianças chegam pra gente só conhecendo os gestos aprendidos em casa, que ele mesmo cria para aprender a se comunicar com os pais e irmãos. Então, comunicar-se em Libras e, acima de tudo, cantar, é um avanço”.
O mais formidável, de acordo com Maria José, é que eles sabem imprimir sentimento à música. “Não é mera gesticulação.A prioridade e levá-los a ter consciência do que estão cantando.” Outra preferência é por músicas com mensagem positiva, como É preciso saber viver, A oração de São Francisco e Jesus Cristo eu estou aqui. Cada dia é explorado um pedacinho da música de modo a facilitar a assimilação.
A explicação de Thiago Farias, 20 anos, tem muito a ver com o aprendizado do dia-a-dia. “Adoro apresentar o Coral, porque vejo o quanto gostam do que fazemos. No Coral, a gente não copia a Val e Jane. Elas ensinam a letra para a gente cantar com sentimento. Gosto mais do final quando somos aplaudidos e recebemos parabéns, principalmente ao interpretar Ao Mestre com Carinho e Oração de São Francisco.”
Nota: Os depoimentos de Thiago, Luiz e Verônica foram traduzidos pelas pedagogas e também regentes Valderes e Jane, especial
07/07/2006
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