Juristas propõem ao Senado 'aposentadoria' do Código Penal
Das normas legais que regem a vida em sociedade, poucas se equiparam ao Código Penal em importância e alcance. Ele, por um lado, enumera uma série de comportamentos que as pessoas não podem adotar e, por outro, autoriza o Estado a puni-las caso desrespeitem as proibições.
Os crimes previstos no Código Penal vão da difamação ao homicídio, da violação de correspondência ao roubo, da bigamia ao sequestro. Quem mata pode ser condenado a 30 anos de prisão. Quem viola carta alheia, a 6 meses de prisão ou pagamento de multa.
Hoje, no entanto, o Código Penal não funciona bem.
O texto original foi aprovado em 1940 e entrou em vigor dois anos mais tarde. Era o primeiro governo Vargas. O tempo deixou muitos trechos do código ultrapassados e abriu-lhe várias lacunas. Simplesmente não corresponde ao Brasil atual.
Para tornar a legislação eficiente, o Senado incumbiu 15 renomados juristas de arquitetar uma modernização do septuagenário Código Penal. Após sete meses de debates, a comissão acaba de concluir a proposta de reforma e vai entregá-la hoje ao presidente do Senado, José Sarney, numa cerimônia no Salão Nobre.
Se as propostas forem acatadas pelo Congresso Nacional, diversas condutas deixarão ser classificadas de crimes. No Brasil do século 21, entendem os juristas, não faz sentido mandar para a prisão quem vende “objeto obsceno” ou mantém casa de prostituição.
Ao mesmo tempo, condutas hoje ignoradas pelo código passarão a ser criminosas.
A comissão acredita que já é hora de o país punir quem discrimina gays por causa da orientação sexual ou comete bullying (ou, nas palavras dos juristas, intimidação vexatória) contra qualquer pessoa.
A evolução da sociedade abriu caminho para o surgimento de comportamentos que nem sequer se vislumbravam na Era Vargas. Os juristas defendem que usar celular em presídio, oferecer ligação clandestina de TV a cabo, invadir computador alheio e fazer parte de milícia (grupo, normalmente de policiais, que se organiza para dominar favelas e obter vantagens) precisam estar previstos na lei criminal.
Retalhos
O Código Penal que os tribunais brasileiros aplicam hoje não é exatamente aquele de 1940. Mudanças pontuais foram feitas ao longo destas sete décadas. O adultério deixou de ser crime em 2005. No mesmo ano, o tráfico internacional de pessoas foi incluído no código.
Nem todas as mudanças foram felizes. O enxerto de artigos em diferentes épocas transformou o código numa espécie de colcha de retalhos, criando situações esdrúxulas. Pelo código atual, quem falsifica remédio, cosmético ou produto de limpeza pode passar mais tempo encarcerado do que quem comete assassinato. Para homicídio, a pena mínima é de 6 anos (máxima de 30). Para falsificação, a pena mínima é de 10 anos (máxima de 15).
A falsificação de remédio sempre esteve no Código Penal, mas com pena de até 3 anos de prisão. Em 1998, a comoção pública gerada pelo escândalo das mulheres que engravidaram tomando pílulas anticoncepcionais — que não faziam efeito porque eram feitas de farinha — levou a um endurecimento exagerado da punição.
Um dos objetivos da comissão criada pelo Senado foi garantir a proporcionalidade das penas — mais brandas ou mais severas conforme a gravidade dos crimes. Pela proposta dos juristas, a punição para falsificação de remédio ficará entre 4 e 12 anos de prisão (e não mais entre 10 e 15 anos).
Nenhum tema foi evitado pela comissão, por mais espinhoso que fosse. Os juristas trataram do porte de droga para consumo próprio, da ortotanásia (interrupção de tratamento que só prolonga a vida e o sofrimento de doentes sem cura e em estado terminal) e do aborto de feto que não tenha cérebro ou sofra de doença que o levará à morte. Eles propõem que as três condutas deixem de ser crimes.
Em relação às drogas, o tráfico continuará sendo punido com prisão. No caso da ortotanásia, a interrupção do tratamento precisará do consentimento do próprio doente ou, não sendo isso possível, de seus familiares. Em relação ao aborto, o anteprojeto prevê que a gestação também poderá ser interrompida a pedido da mulher quando ela não tiver condições psicológicas de ter o filho. Hoje em dia, a lei só autoriza o aborto quando a gravidez decorre de estupro ou pode levar a mulher à morte.
Nas audiências públicas e nos seminários realizados pela comissão em diferentes capitais, o aborto foi um tema sempre presente. Ruidosamente, o público se manifestou tanto pela restrição quanto pela ampliação dos casos permitidos.
Prisões lotadas
A sociedade também expressou seus desejos enviando mensagens eletrônicas e telefonando para o Senado. Em sete meses, chegaram ao serviço Alô Senado 6.140 manifestações sobre o Código Penal — média de 44 por dia útil. Foram manifestações de todo tipo, a maioria pelo endurecimento das penas. Algumas chegavam a sugerir a implantação da prisão perpétua e da pena de morte no Brasil — o que não foi acatado.
Polêmicas à parte, a comissão recebeu aplausos generalizados do meio jurídico por sugerir que o réu primário que furtou objeto de baixo valor seja condenado apenas ao pagamento de multa, e não mais à prisão, e por propor que, ainda em caso de furto, o crime seja anulado se o ladrão devolver o objeto e o dono aceitá-lo.
— Como estudiosos do Direito, nós acreditamos na pena de prisão. No entanto, não concordamos com o amontoamento de pessoas. Os presídios brasileiros estão lotados. É uma realidade que não podemos ignorar — diz Luiz Carlos Gonçalves, procurador da República e relator da comissão.
A ideia de confiar a missão do Código Penal a um grupo de especialistas foi do senador Pedro Taques (PDT-MT). Sarney aceitou a proposta e, no final do ano passado, assinou o ato de criação da comissão de juristas. Nos últimos sete meses, os especialistas fizeram 24 reuniões abertas no Senado.
Outro objetivo do grupo foi fazer o código abarcar todo o mundo do Direito Penal brasileiro. Ao longo dos anos, dezenas de crimes foram descritos em normas separadas, como a Lei Maria da Penha, o Estatuto do Idoso, a Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente e até o Estatuto do Torcedor. O Brasil tem um direito penal pulverizado. Os juristas propõem revogar artigos — os que descrevem crimes e os que preveem penas — de 120 diplomas legais e levá-los, com as eventuais atualizações necessárias, para dentro do Código Penal.
Isso facilitará tremendamente o trabalho de policiais, advogados, promotores, procuradores, defensores públicos, juízes e estudantes de Direito. Também permitirá à sociedade conhecer, de maneira clara e sistematizada, as condutas que lhe são proibidas. A comissão procurou tornar compreensível a empolada linguagem do mundo jurídico. “Conjunção carnal” virou “estupro vaginal”. “Homicídio impelido por motivo de relevante valor social ou moral” passou a ser “eutanásia”.
Legitimidade
Para que o Código Penal velho caia e o novo entre em vigor, o anteprojeto dos juristas precisa ser transformado em projeto de lei pelos senadores, analisado e aprovado pelo Senado e pela Câmara dos Deputados e, no final, sancionado pela presidente da República.
— O anteprojeto foi elaborado segundo os melhores princípios da dogmática penal e submetido a uma ampla discussão com a sociedade.
O debate agora deve continuar no Congresso, para que o futuro Código Penal ganhe a tão almejada legitimidade democrática — afirma o advogado Nabor Bulhões, um dos integrantes da comissão.
O grupo de juristas foi presidido por Gilson Dipp, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ele diz que a comissão pensou um código “com roupagem moderna e penas adequadas”. No entanto, explica que a nova legislação penal, por si só, não garantirá segurança e justiça à sociedade.
— É preciso que haja políticas públicas adequadas, que se resolva a situação precária dos presídios, que a polícia esteja bem aparelhada para fazer as investigações, que o Ministério Público seja atuante, que o Judiciário atue com seriedade. O Código Penal reformado é apenas um dos instrumentos necessários para combater a violência e a impunidade.
27/06/2012
Agência Senado
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