'Minha vida antes e depois do transplante'



Em 1998, aos 43 anos, senti um mal-estar com evidências de problema hepático. Fiz exames e constatei uma hepatite crônica, causada por vírus A e B, nunca tratada por absoluta falta de sintomas antes disso. Até então, exames de sangue nunca mostraram nada. Foi preciso um exame viral próprio para hepatites. Nessa época, por incrível que pareça, o conhecimento médico sobre as várias hepatites era incipiente. Basta dizer que a hepatite C só foi realmente diagnosticada naquele ano, conforme relato que ouvi de médicos com quem me consultei.

Trabalhava no Senado e continuei minha vida normalmente, uma vez que a carga viral era mínima. Como medida de cuidado, passei a fazer acompanhamento por ressonância magnética para monitorar o crescimento de possíveis nódulos, já que poderiam ser malignos. Nada acontecia. Nada mais senti. Medicado, só voltei a sentir mal-estar em 2003. Nessa época, entrei em dieta com restrição de gorduras, sal, açúcar e bebidas alcoólicas.

Claro que isso limitou minha atividade social. Passei a viver mais para o trabalho e para a família, aceitando as limitações para a vida social sem nenhuma depressão. Normal para mim, que tenho fé em Deus e em mim mesmo.

Em 2004, no entanto, o processo da doença avançou. Numa quarta-feira, dois dias depois do Carnaval, bastou que ingerisse pequena quantidade de álcool e descuidasse da alimentação para enfrentar uma hemorragia gravíssima. Como me encontrava em uma cidade de praia no interior do Piauí, tive de ser removido bastante enfraquecido para um hospital da capital, Teresina. Lá, salvaram minha vida por meio de operações endoscópicas denominadas "ligaduras elásticas" - um tipo de fechamento definitivo de artérias que romperam rumo ao esôfago, por meio de finas correias de elástico.

Depois de algum tempo de repouso, tive que me licenciar do trabalho e seguir para tratamento em São Paulo. Soube que poderia me tratar sem a necessidade de um transplante, por meio de medicamentos quimioterápicos. Durante esse tratamento, ao longo de três anos, fui submetido a mais seis cirurgias endoscópicas do tipo "ligadura elástica", para evitar novos sangramentos.

A essa altura, levava uma vida bastante limitada. A saúde comprometida estava estampada na fisionomia. Os quadros de mal-estar eram cada vez mais frequentes. Então, questionei minha médica sobre o transplante, mesmo antes de tentar finalizar o tratamento com medicamentos.

Fiz todos os exames possíveis e necessários entre 2005 e 2007 e fui inscrito na fila do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Secretaria de Saúde de São Paulo. Nessa época, meu nível de plaquetas sanguíneas estava entre 30 mil e 35 mil, considerado baixíssimo - o normal é a partir de 150 mil. Isso denunciava alguma atividade letal que não aparecia nitidamente nas imagens dos exames e dificultava o abreviamento da minha cirurgia.

O pior ainda estava por vir em janeiro de 2008. Então, tive uma crise que me obrigou a passar a fazer punções devido ao aumento do líquido misto de água e sangue (ascite) no estômago, em razão da ingestão de sal, mesmo que em quantidade mínima. A punção era feita, mas o nível do líquido voltava a subir. Era torturante.

Dois meses depois um novo exame de ressonância e uma biópsia denunciaram um nódulo cancerígeno de 1,8 cm. Passei então a me tratar com dieta totalmente sem sal, gordura e carboidratos, entre outros nutrientes - só comia peixe e salada, nenhuma carne vermelha. Sofri, mas ainda bem que gosto de salada. Fiquei ainda mais disciplinado, redobrando a malhação, o que era importante para aguardar com a melhor saúde possível a fila do transplante. Era, então, portador de um carcinoma perigoso.

Depois de exames que constaram um crescimento razoável do nódulo (2,6 cm), em 4 de setembro de 2009, recebi um telefonema do médico. Estava no apart-hotel em que morava, em São Paulo, aguardando há um ano e meio a fila do transplante. Ele me avisou que eu seria operado naquela noite mesmo, pois havia surgido um fígado compatível.

A probabilidade de sucesso era em torno de 95%. Não tive medo em nenhum momento, porque queria melhorar minha qualidade de vida e viver mais. Tenho filhos e isso pesa. O que acontecesse seria em função dessa determinação.

A cirurgia começou à meia-noite, acabou por volta das 10h. Acordei numa UTI, onde passei mais cinco dias e fui depois para um quarto do Hospital Oswaldo Cruz. Foi uma recuperação dolorosa, pelo tamanho da cirurgia e do corte. Sofri ainda com uma insuficiência pulmonar por conta de um derrame de sangue no pulmão e respirei durante seis dias por meio de aparelhos.

Apesar de tudo isso, três meses depois consegui voltar ao trabalho, o que aconteceu em dezembro de 2009. Hoje me sinto bem, trabalhando e vivendo normalmente. Contudo, não me descuido: posso comer de tudo, mas me controlo.Prevenir danos é bom para mim e para todos que me cercam.

Tomo medicamento de controle da rejeição ao órgão, mas em dose mínima, que em nada altera meu bem-estar. Estou bem adaptado, muito bem adaptado a tudo.

Depois de tudo, o que posso dizer é que a doação de órgãos deveria ser mais e melhor divulgada. Ainda somos omissos e até negligentes com isso, como se fosse um tabu. As famílias conscientes são responsáveis pelas vidas que são salvas com os transplantes. Não se pode obrigar, mas educar, desde que o cidadão é uma criança, sobre essas possibilidades da medicina na vida moderna.

Fazer exames preventivos é importantíssimo para uma vida saudável. Eu não usava bebidas alcoólicas em padrões que me diferenciassem de um consumidor social e nunca havia sentido qualquer sintoma de hepatite antes daquela minha grande crise. Estou clinicamente curado depois de passar por uma solução extrema. Como a maioria, negligenciei os exames. Só descobri tardiamente que era portador de males do fígado que se manifestam também em outros órgãos, como rins, baço, coração. Eu realmente nunca esperava que isso acontecesse comigo.

Domingos Mourão Neto

Em depoimento a Iara Borges / Agência Senado

27/09/2010

Agência Senado


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