MST sai da fazenda de FHC. Líderes são presos









MST sai da fazenda de FHC. Líderes são presos
Menos de 24 horas depois, invasão terminou. Os chefes saíram algemados

BURITIS - Durou menos de 24 horas a invasão de cerca de 200 integrantres do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) à fazenda Córrego da Ponte, da família do presidente Fernando Henrique Cardoso. Depois de ocuparem até a casa da propriedade, espalhando-se pelos cômodos, deitando-se nos sofás da sala, usando a tevê e o telefone, pela manhã, os sem-terra saíram. A ocupação terminou às 7h55, quando quatro ônibus com a maioria dos manifestantes deixaram a fazenda. Do lado de dentro, a Polícia Federal prendeu e algemou 16 líderes da ação.

A tática da polícia foi a de evitar o confronto, com promessas de uma reunião dos sem-terra com o ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, que os receberia em Buritis. Era assegurado a eles que ninguém seria preso. Somente passariam por uma revista. Primeiro, foram retiradas as mulheres e as crianças, sempre em grupo de cinco pessoas.

Depois, os mais velhos. Até que só restaram os líderes, que foram antes da prisão chamados a presenciar uma revista que seria feita na sede da fazenda.

Alguns até ajudaram na inspeção.

O grupo dos dirigentes do MST ficou sozinho, junto com os policiais federais. Então, imediatamente, receberam ordem de prisão e a determinação para que deitassem no chão. Em seguida, foram algemados com as mãos para trás.

Bebedeira - Durante toda a madrugada os sem-terra cantaram na varanda da fazenda e consumiram tudo o que havia no estoque de bebidas alcoólicas: uísque, cachaça, vinho e até vinagre. Intercalaram a bebedeira com as idas e vindas à porteira que separa a sede do resto da propriedade para as negociações com integrantes do governo.

Foi uma noite de muitas negociações e tensão. Desde o anoitecer, aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) passaram a sobrevoar a fazenda ininterruptamente. Os vôos eram rasantes. Também havia dois helicópteros da Polícia Federal. Por volta da meia-noite chegaram os 300 homens do Exército.

Mas só receberam ordem de entrar na fazenda às 5 horas da manhã, quando já havia sido fechado o acordo para que os sem-terra desocupassem a propriedade.

Os 16 sem-terra presos foram colocados num ônibus especial da Polícia Federal e levados para Brasília, cada um acompanhado de um agente. Ao sair da fazenda e ver os jornalistas, um deles pôs a cabeça para fora e quis dizer alguma coisa. Mas não conseguiu.

A operação montada para desocupar a fazenda teve a participação, além dos 300 homens do Exército, de cerca de 70 da Polícia Federal, dos aviões e dos helicópteros, de 20 caminhões, quatro ambulâncias do Exército e do Corpo de Bombeiros do Distrito Federal e carros menores, inclusive da Polícia Rodoviária Federal .

Acordo - Pelo acordo negociado pelo ouvidor-agrário nacional, Gercino José da Silva Filho (que se considerou "traído" e se demitiu), os sem-terra sairiam da fazenda com a garantia de que não seriam presos e iriam para Buritis conversar com o ministro Raul Jungmann. Nesse acordo "costurado" por Gercino também foi assegurado ao MST que hoje seria editada uma portaria autorizando a compra da Fazenda Barriguda, em Buritis, numa área de 4,8 mil hectares onde existe um assentamento.

Os sem-terra que haviam sido colocados nos ônibus durante a madrugada não souberam das prisões dos colegas. Dirigiram-se para Buritis pensando que se encontrariam com o ministro. Mas, a um quilômetro da cidade, foram parados numa barreira montada pela Polícia Militar de Minas Gerais, nas proximidades do Rio Urucuia. A entrada deles em Buritis só foi liberada depois da chegada da Polícia Rodoviária Federal, que comunicou a eles que seriam conduzidos ao local de destino, sem avisá-los de que seriam levados para os assentamentos e não para a reunião com Jungmann. O ministro, nessa altura, já estava em Brasília.

No assentamento da Fazenda Barriguda os sem-terra fizeram uma assembléia e decidiram que voltarão a Buritis quando conseguirem se reorganizar.

Desmentido - Na entrevista coletiva no Palácio do Planalto, os ministros da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, e do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, negaram que o governo tenha dado aval para uma negociação que dispensasse a prisão dos líderes.

"Não houve traição, jamais foi negociada a não prisão de quem quer que seja", contestou Ferreira.

O ministro Jungmann contou que permaneceu em Buritis durante cerca de 11 horas e que, em nenhum momento, foi negociado o não cumprimento da lei. "É possível que tenha havido um mal-entendido", desculpou Jungmann.


Para o presidente, episódio foi um "abuso inaceitável"
BRASÍLIA - A invasão da fazenda Córrego da Ponte, em Buritis, irritou profundamente o presidente Fernando Henrique Cardoso, que estava em Brasília, se recuperando de uma intoxicação alimentar durante viagem ao Chile. Fernando Henrique foi surpreendido com a notícia e considerou um "abuso inaceitável" o fato de os sem-terra terem chegado à sede da fazenda e ocupado a casa que freqüenta com regularidade, junto com a primeira-dama, D.

Ruth, seus filhos e netos.

O que mais deixou o presidente "perplexo" foram as imagens exibidas pela televisão, dos integrantes do MST espalhados pela sala da casa, falando ao telefone, e também no quarto do casal, onde as portas dos armários estavam abertas, em uma absurda invasão de privacidade.

O presidente manifestou sua irritação nas conversas que manteve anteontem, nas reuniões com seus principais assessores, no Palácio da Alvorada. Ontem ele reconhecia estar "aliviado" com o fato de a fazenda ter sido desocupada sem qualquer incidente.

Uma das grandes preocupações do presidente era que neste processo de desocupação houvesse incidentes graves, que pudessem prejudicar o seu governo, produzindo fatos políticos com reflexos nas eleições.


Governo comemora sucesso da retirada
Jungmann criticou leniência do governo mineiro e achou que eleição motivou a invasão

BRASÍLIA - O governo comemorou ontem o sucesso da operação conjunta da Polícia Federal e do Exército para retirar os cerca de 150 trabalhadores sem-terra que invadiram, na madruga de sábado, a Fazenda Córrego da Ponte, de propriedade da família de Fernando Henrique Cardoso. O Movimento dos Sem Terra (MST) havia informado que eram 500 invasores. Para o ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, um dos motivos que levou o MST a ocupar a fazenda são as eleições deste ano.

"Não tenho a menor sombra de dúvida de que uma parte da razão que explica essa invasão tem a ver especificamente com este ano", disse Jungmann.

"Poderíamos estar diante de um desastre de proporções extraordinárias em termos de democracia, em termos institucionais e em termos políticos, sobretudo em um ano eleitoral." A fazenda da família do presidente foi desocupada pacificamente pelos manifestantes ontem pela manhã. Dezesseis líderes do MST foram presos em flagrante e serão processados pela Justiça por crimes que vão desde invasão de estabelecimento agrícola até furto.

Tanto Jungmann como o ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, consideraram um êxito a saída pacífica dos manifestantes ontem pela manhã.

"A operação foi coroada de êxito, sobretudo porque estamos aqui sem nenhum arranhão, sem nenhuma morte, sem nenhum ferido", disse Jungmann. "Diante da magnitude da violência dos sem-terra, foi um processo exitoso", afirmou Nunes Ferreira.

Jungmann aproveitou para criticar a leniência do governo de Minas Gerais com o MST. Sem citar o nome do governador de Minas, Itamar Franco, o ministro disse que a cidade de Buritis vive um "clima de terror". "G rande parte dessa ousadia do movimento é pelo fato de o governo de Minas não promover a segurança necessária aos moradores e ao prefeito da cidade, que vivem à mercê do que é hoje um bando", afirmou.

No início da noite de sábado, Jungmann foi a Buritis para acompanhar as negociações da retirada dos sem terra, que foram feitas durante a madrugada de domingo. Sábado à tarde, o advogado da família do presidente, Fábio Luchesi, obteve na Justiça um mandado de manutenção de posse. "A polícia estava preparada para eventualmente executar a ordem judicial mediante o uso da força", disse o ministro da Justiça.

Ele contou que os invasores recusaram-se a receber o mandado judicial. "Os sem terra acolheram agressivamente os policiais e o oficial de Justiça com coquetéis molotov", afirmou Nunes Ferreira. Mas os manifestantes deixaram a fazenda pacificamente ontem pela manhã em seis ônibus. Jungmann e Aloysio também garantiram que, em nenhum momento, foi negociado com os sem-terra que não haveria a prisão dos líderes da invasão.

Segundo o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Alberto Cardoso, o governo estuda a hipótese de manter uma guarda permanente na fazenda Córrego da Ponte. Na desocupação da propriedade foram usados cerca de 300 homens - 80 da Polícia Federal e 220 militares. Esse efetivo será reduzido, a partir de hoje, para cerca de 100.

A Polícia Federal filmou e fotografou a propriedade e fez um levantamento dos estragos. "Ainda não sabemos o que foi furtado", disse o ministro da Justiça. "Mas sabemos que havia objetos pessoais do presidente espalhados pelo chão, facas enterradas perto das árvores e um barril de gasolina, que não sabemos se era para fazer coquetel molotov", afirmou. "Também houve consumo de alimentos e bebidas."


Negociadores não tiveram saída: "Fomos traídos"
Ouvidores agrários que fecharam acordo pediram exoneração depois da prisão dos líderes

BRASÍLIA - "Fomos traídos". Perplexos, o ouvidor nacional agrário, Gersino José da Silva, e a ouvidora-adjunta, Maria de Oliveira, acompanharam a ordem de prisão dada por agentes da Polícia Federal a 16 líderes dos sem-terra que ocuparam a fazenda da família do presidente Fernando Henrique Cardoso. O ouvidor Gersino tinha empenhado a palavra aos sem-terra de que não haveria prisões. Surpreendidos com a decisão do governo, Gersino e Maria pediram exoneração dos cargos.

Em coletiva no Planalto, os ministros da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, e o do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, negaram que o governo tenha dado aval para uma negociação que dispensasse a prisão dos líderes (leia nesta página).

A ouvidora-adjunta garante que desde as 16 horas do sábado até as 3 horas da madrugada de ontem, quando selaram o acordo com os sem-terra para a desocupação, houve consultas hierárquicas a todos os envolvidos no processo, ao ministro Jungmann, ao secretário-executivo do ministério, José Abrão, e também à Polícia Federal.

O diretor-geral da PF, Agílio Monteiro Filho, também sabia do acordo com os sem-terra, garante Maria de Oliveira. Mas fontes da PF asseguram que em nenhum momento a desocupação pacífica foi condicionada à não prisão dos sem-terra. "Esse era o caminho normal que teríamos de cumprir", afirmou a fonte, alegando que houve danos à propriedade: depredação da casa do capataz, de uma colhedeira e dois tratores, além de uma janela quebrada na sede da fazenda. "Desde o princípio, a posição da PF era a de fazer a prisão das lideranças e realizar as vistorias, como aconteceu", revelou essa fonte.

Acordo - Nas seis reuniões de negociação, os sem-terra chegaram a questionar o ouvidor sobre o que aconteceria se a promessa não fosse cumprida. Ele deixou claro que pediria demissão imediatamente. Ele e a ouvidora-adjunta estavam no cargo desde 1999, quando foi criada a ouvidoria agrária. "Nunca passamos por um constrangimento igual", indignou-se Maria. A ouvidoria trata de conflitos no campo envolvendo posseiros, índios e garimpeiros, além dos sem-terra.

Os sem-terra começaram a ser retirados em pequenos grupos. Primeiro crianças, depois as mulheres. Os líderes identificados pela PF foram deixados para o final, sob o argumento de que sua presença era necessária na vistoria da propriedade. Segundo Maria de Oliveira, os agentes não tinham mandado de prisão quando informaram que levariam os sem-terra, algemados, para a Superintendência da PF em Brasília.

Quando a PF anunciou a prisão, Gersino e Maria não reagiram. "Nós nos sentimos acuados e perplexos, assim como os trabalhadores", desabafou Maria de Oliveira. Segundo ela, não houve oportunidade para qualquer reação diante do aparato do Exército e da PF. "Os sem-terra estavam emocionalmente despreparados a uma ordem de prisão, em função da promessa da ouvidoria", lamentou.


Para a OAB, ação da polícia não foi ilegal
Mas os advogados reconhecem que pode faltar confiança nas negociações futuras

SÃO PAULO - A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) considerou legal a desocupação da fazenda Córrego da Ponte, em Buritis (MG), de propriedade dos filhos do presidente Fernando Henrique Cardoso. "Havia uma liminar de reintegração de posse. Além disso, é um problema de segurança nacional", argumentou Carlos Miguel Aidar, presidente da OAB São Paulo.

De acordo com Aidar, o presidente goza de privilégios de segurança, que são extensivos à sua família. O presidente nacional da Ordem, Rubens Aprobatto Machado, concordou que não houve ilegalidade, mas demonstrou preocupação quanto ao uso da força policial. "Espero que esse comportamento se dê não só em relação à fazenda do presidente, mas em todos os casos de ocupação", afirmou.

Aidar disse não ter havido nenhum exagero na ação da PF. "Invadir terras improdutivas é uma coisa. Outra coisa é invadir a fazenda dos filhos do presidente, que é produtiva, para marcar uma posição política. É uma posição que afronta o Estado democrático de direito", argumentou Aidar.

Sobre as exonerações pedidas pelo ouvidor agrário nacional, Gersino José da Silva, e pela ouvidora-adjunta, Maria de Oliveira, que disseram ter dado garantias aos sem-terra de que não seriam presos, Aprobatto Machado afirmou que pode trazer conseqüênci as negativas no futuro. "Se houve negociação e foi modificado o resultado, lá na frente pode haver conseqüências, conflitos maiores. Eventuais negociações no futuro serão prejudicadas porque as partes não terão confiança", analisou.


Ministro da Justiça deixa PT revoltado
José Genoíno diz que ministro Aloysio Nunes Ferreira é um "perigo para o País"

BRASÍLIA - O deputado José Genoíno (PT-SP) uniu-se ao coro do PFL e da família Sarney contra a atuação do ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira. Genoíno disse que o presidente Fernando Henrique Cardoso deveria demitir Aloysio o mais rapidamente possível, porque "já está provado" que o ministro não pode continuar no cargo. "Ainda bem que o presidente desautorizou seu ministro", afirmou o deputado. No sábado, Aloysio disse que o PT estava por trás da invasão da fazenda da família do presidente da República.

"É um perigo para o País que uma pessoa como o ministro Aloysio, que não tem demonstrado o equilíbrio e a serenidade que o cargo exige, continue à frente de um órgão como a Polícia Federal", disse Genoíno. Aloysio preferiu não alimentar a polêmica e considerou plenamente satisfatória a nota que o PT divulgou no sábado. O ministro lembrou que o presidente do PT, José Dirceu (SP), condenou a invasão.

O ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga, que viajou ontem para Lavras, no interior de Minas Gerais, insistiu em vincular o PT ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Ele desafiou o PT a manifestar publicamente seu rep údio em relação ao MST. "Se não houver essa condenação, estará claro que o PT apóia atos como a invasão da fazenda da família do presidente", disse Pimenta.

Para o ministro, as pessoas que invadiram a fazenda quiseram contestar a autoridade do chefe do Poder Executivo e desgastar o governo. "Os organizadores dessa invasão brutal tinham algum crédito e perderam qualquer compreensão para a sua causa", disse Pimenta.

O líder do PT na Câmara, deputado João Paulo Cunha (SP), considerou estranha a facilidade com que os sem-terra tiveram para invadir a fazenda Córrego da Ponte. "Todo mundo sabia que os sem-terra estavam lá, mas não havia ninguém da Polícia Federal, do Exército ou da segurança do Palácio do Planalto", lembrou ele. "É estranho demais o que aconteceu, porque aquele pessoal do MST chegou a posar para fotografias. Nunca vi isso."

Lula - O presidente de honra do PT e candidato a presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, disse ontem que a ação do MST na fazenda da família do presidente Fernando Henrique Cardoso "não ajuda em nada na luta pela reforma agrária". "Eu sou contra a invasão da casa do presidente, assim como sou contra a invasão da casa de qualquer cidadão brasileiro", declarou Lula.

Na mesma linha, o senador Eduardo Suplicy (SP), líder do PT no Senado, disse que houve abuso por parte dos manifestantes. "A ocupação da casa foi um ato de desrespeito que não deveria ocorrer com nenhuma pessoa", declarou Suplicy. Ele ressaltou, porém, que o PT não tem nenhuma responsabilidade na ação.


Artigos

Linha dura no FMI
Alcides Amaral

Depois de ter declarado há alguns meses que não utilizaria os impostos pagos pelos contribuintes norte-americanos para ajudar países que, por má administração, apresentam problema na balança de pagamentos, o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Paul O'Neill, de cima de seu pedestal volta à carga em Monterrey dizendo que o Fundo Monetário Internacional (FMI) já deu dinheiro demais à Argentina sem resolver o problema. Segundo ele, os dólares foram desperdiçados e a situação do país continua na mesma. Embora o sr.

O'Neill não tenha participação direta na direção do FMI, sua palavra tem peso significativo, pois é sabido que os Estados Unidos possuem a maior fatia do capital da organização, com cerca de 17%.

Essa foi mais uma evidência de que o comportamento do FMI para com os países necessitados mudou e a Argentina está pagando pelos crimes que cometeu e, também, por aqueles que independem de sua própria vontade.

Inicialmente é bom destacar que a Argentina já não vinha cumprindo as metas com o FMI mesmo quando ainda prevalecia a lei da conversibilidade.

Mensalmente as metas fiscais não eram cumpridas, "waiver" (perdão) era concedido e o ex-ministro Cavallo tocava sua vida normalmente. Isso irritava a cúpula do Fundo, pois um fracasso da política econômica de país assistido significa perda de credibilidade na sua administração.

Se no passado recente com situação econômica e política melhores a Argentina era um cliente problemático, imaginem qual a boa vontade do FMI agora. O programa apresentado prevê inflação de 15% em 2002, queda do Produto Interno Bruto (PIB) de 5% e um déficit fiscal de 3 bilhões de pesos. Nenhum analista acredita que será possível cumpri-lo e, portanto, mais um fracasso, caso novo acordo seja assinado nessas bases. Não bastasse, a Argentina teve o azar de ser o primeiro com sérias dificuldades a enfrentar a nova cúpula do FMI. Além das importantes mudanças no governo norte-americano - saída de Clinton e entrada de Bush na presidência e O'Neill como secretário do Tesouro, em vez de Robert Rubin ou Larry Summers -, a nova diretoria do Fundo demonstra ter uma posição mais pragmática, para não dizer mais dura. O grande conhecedor e amigo dos países latino-americanos, Stanley Fischer, deixou seu posto e agora a Argentina tem que se entender com o indiano Anoop Singh e enfrentar a frieza da nova vice-diretora-gerente Anne Krueger, que, entre outros, quer criar uma espécie de "lei de concordata" para os países devedores. Segundo ela, aqueles em dificuldades de balança de pagamentos devem se entender com seus credores e não depender do dinheiro do Fundo.

Para piorar ainda mais a situação da Argentina ela está praticamente sozinha nessa verdadeira queda-de-braço com o FMI. Como os problemas argentinos ficaram limitados às suas fronteiras e o tão temido efeito contágio - especialmente em relação ao Brasil - não aconteceu, não há a mínima vontade política em socorrê-la. Terá que ser tudo "by the book", isto é, a Argentina terá que cumprir todas as exigências do FMI, cortar mais fundo suas despesas, restringir ou eliminar os bônus emitidos pelas províncias, voltar a negociar com os credores privados, etc., etc., etc. Como o pacote de mais de US$ 40 bilhões concedidos ao país em 2000 não foi suficiente para estancar a hemorragia cambial, na ótica do FMI não há necessidade agora de correr "riscos indevidos". Mesmo porque, como já foi dito, os problemas começam e terminam na Argentina.

Não podemos esquecer que o Brasil foi salvo da inadimplência - em fins de 98 e começo de 99 - com um pacote de mais de US$ 40 bilhões do FMI e governos dos países desenvolvidos, pois a crise da Rússia afetou duramente os mercados. O pânico instalou-se inclusive no Primeiro Mundo quando um grande fundo alavancado, o Long Term Capital Management, de mais de US$ 10 bilhões só não ruiu levando os demais fundos com ele pois o governo norte-americano agiu rapidamente, obrigando os principais parceiros a injetar mais recursos.

Uma crise maior no Brasil naquelas circunstâncias poderia significar uma débâcle no sistema financeiro internacional com significativa perda de liquidez, pois os investidores já começavam a buscar o porto seguro, isto é, títulos do governo norte-americano. O então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Robert Rubin, foi pessoalmente a Washington negociar com os senadores o aumento de capital no FMI, o que permitiu que, com a contribuição de todos os associados, o Fundo tivesse os recursos suficientes para nos socorrer.

A pergunta que fica é bastante simples. Será que em situações semelhantes, quando os interesses dos países do Primeiro Mundo forem afetados, o FMI manterá essa mesma linha dura? A nova receita vale apenas para a Argentina e países nas mesmas condições ou o FMI será "mais flexível" quando as condições exigirem?

Baseados em nossa vivência e experiência junto ao "poder", tudo nos leva a crer que a vontade política voltará a prevalecer e, de uma maneira ou outra, os dólares estarão disponíveis.


Colunistas

RACHEL DE QUEIROZ

O imaginário mágico
Os educadores se preocupam muito com a literatura, os filmes, os programas de TV, consumidos pela criançada: a violência, as cenas de sexo, a crueldade que nossos filhos e netos devem absorver por via dessa exposição permanente. Outro dia li um artigo numa dessas revistas dirigidas a pais e professores que comentam aquela história infantil em que a heroína, uma princesa, é enterrada pela madrasta; os cabelos da menina crescem, atravessam a terra, e o jardineiro começa a cortá-los, pensando ser erva má; e ela então canta: "Capineiro de meu pai, não me corte os meus cabelos/ Minha mãe me penteou, minha madrasta me enterrou..."

Enterrada viva, era terrível, era. Mas recordo que eu, menina, também ouvi essa história e aprendi a cantar a cantiguinha (triste, muito mais triste do que a própria história), e não "realizava" a gravidade do crime; era só uma das malvadezas comuns de madrasta, tanto que a princesa continuava viva e cantava; e, desenterrada pelo jardineiro, voltava à sua grandeza.

Talvez por isso, os excessos da TV e da literatura infantil não fazem tanto mal às crianças: elas têm a defendê-las o seu imaginário mágico, que não as deixa ir ao fundo das tragédias; as madrastas e as fadas malvadas vêem sempre os seus crimes castigados e os mortos recuperados. A avozinha de Chapeuzinho Vermelho, que o Lobo Mau devora, terá sido mesmo engolida e digerida? Ninguém se preocupa com ela, decerto o Lobo a devolve, já que não se fala nos prantos da neta.

E hoje, esses seriados japoneses da TV? As crianças os acompanham avidamente e eles são terríveis. Não só pelos monstros apavorantes, como pelas crudelíssimas proezas dos mocinhos, que usam mil maneiras de matar, por raios fulminantes, por esmagamento, afogamento, quedas das alturas ou simples espancamento. E as crianças ficam vendo sem piscar o olho, algumas até torcem pelos vilões todo-poderosos. No fundo elas acreditam que, na realidade, ninguém morre; tudo e todos são recuperáveis; nunca as vi chorar um herói, uma heroína mortos.

E, depois, há ainda o hábito. Os cenários aterrorizantes nos jornais e na TV, embota as emoções até de nós adultos, que sabemos de experiência própria o quanto a vida e o mundo são realmente cruéis. Outro dia entrei na casa de amigos para levar umas frutas a uma amiga doente: estavam todos à mesa, jantando, a televisão ligada. Me ofereceram um café, sentei com eles; na tela acabavam de passar cenas da retirada de vítimas, mortas nos tiroteios no Afeganistão. Depois do desfile das padiolas com a sua carga sinistra, começou outro noticiário - esse era dos bombardeios na Palestina.

Uma bomba caía bem perto da câmera, saiu voando pelo ar metade do corpo de um homem, entre jatos de terra e fumaça. Me encolhi, assustada; depois olhei ao redor, alguns nem olhavam, só ouviam os estrondos; um menino deu um gritinho meio comemorativo, como se tratasse de um gol do seu time; a dona da casa disse com enfado: "Agora só se vê guerra na TV." Todos tranqüilos, comendo a sobremesa, alheios à carnificina que aquelas imagens registravam. E, no entanto, eram todos gente boa, bons corações que até recolhem um gato magro, aparecido na área de serviço, se preocupam com os meninos de rua, discutem soluções generosas.

É, a sensibilidade da gente se embota mesmo; a mídia se compraz em trazer para dentro das nossas casas todas as tragédias do mundo e a dose é forte demais. Como as crianças, então, a nossa defesa é até maior; elas ainda não aprenderam a encarar o irremediável da dor, do destino, do sangue, da fragilidade da pobre carne humana.

Para elas tudo tem remédio, tudo é um jogo, em que o mocinho deve ganhar sempre e o vilão perder sempre. E nós também acabamos por partilhar um pouco dessa conformidade otimista. Vemos o que vemos e vamos para a praia. Só nos abalamos um pouco em casos como o do ataque às torres gêmeas de New York, de um horror tão evidente. Mesmo para a mente embotada aquela imagem foi forte demais.


Editorial

O TERRORISMO PREVISÍVEL DO MST

Era absolutamente previsível, para não dizer inevitável, que a escalada do desrespeito à lei, da violência, da ousadia predatória e do desfrute de impunidade que têm marcado a trajetória dos militantes do Movimento dos Sem-Terra (MST) culminasse numa ação como a invasão e a ocupação da Fazenda Córrego da Ponte, de propriedade da família do presidente da República. Se antes não se viram com freqüência, pela televisão, cenas tão ou mais chocantes, com invasores ocupando aposentos e se refestelando em ambientes da privacidade alheia, é porque as vítimas não eram garantia de recorde de ibope na TV. Porque tem havido ocupações de fazendas produtivas, por essa entidade, que duram longos meses, assim como a prática de depredações de sedes, matanças de animais e vandalismos de toda a sorte, que deixam seus infelizes proprietários - naturalmente sem poderem contar com as polícias militar e federal, e muito menos com o Exército - apenas na condição de lamentar a própria sorte, solitários e indefesos.

Mas, dessa vez, o que ocorreu foi um outro tipo de violência, que não visava apenas à conquista ilegal de bens materiais. Ao conseguir, finalmente - depois das muitas tentativas e ameaças feitas, nos últimos cinco anos -, "conquistar" o espaço físico da propriedade presidencial, o MST atingiu valores simbólicos muito mais importantes. Tratou-se, de fato, de um ato de terrorismo - como disse o ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann - sem qualquer relação com eventuais reivindicações sociais, no tocante à aceleração de assentamentos ou liberação de verbas para plantio - sobre o que os líderes do movimento estavam em negociação com o Incra, nos últimos dias, já tendo sido atendidos em muitos dos itens de sua pauta. E, como é típico dos atos terroristas, que não almejam concessões concretas e materiais, mas sim a destruição de valores simbólicos, morais e institucionais, a agressão à fazenda de Buritis tinha o escopo preciso de desmoralizar a autoridade do presidente da República. Ao chegar ao próprio quarto do presidente e estender a bandeira do MST na sala de sua residência, os invasores desacatavam a instituição da Presidência - e, por tabela, os valores institucionais mais elevados do Estado Democrático de Direito.

A reação do governo teve que envolver a atuação de três Ministérios: o da Justiça, que obteve do juiz de Buritis um mandado de manutenção de posse, no bojo de interdito proibitório em favor da Fazenda Córrego da Ponte, e enviou ao local integrantes da Polícia Federal para fazê-lo cumprir - os quais, junto com o oficial de justiça, foram rechaçados pelos invasores na porteira da fazenda, sob a ameaça de coquetéis molotov; o do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, que providenciou tropas do Exército para cercar a fazenda invadida e realizar a retomada, se necessário; e o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Este último desenvolvia, em Buritis, negociações com as lideranças do movimento, e tudo indica - apesar da veemência verbal condenatória do ministro Jungmann - que demonstraria a mesma tolerante flexibilidade, manifestada em ocasiões anteriores. Talvez tenha até sido surpreendido com o desfecho: a prisão e condução, algemados, dos 16 principais líderes da invasão, detidos em flagrante em razão de crimes como invasão de propriedade, violação de domicílio, furto e cárcere privado (contra funcionários da fazenda), bem como a revista pessoal feita nos invasores, antes que eles fossem removidos em seis ônibus.

É o que sugere o pedido de demissão do ouvidor-agrário nacional, desembargador Gersino José da Silva Filho, e da assessora especial do ministro Jungmann, Maria de Oliveira, sob a alegação de que se sentiram "traídos" pelo governo, pelo fato de não ter sido cumprida a promessa, feita aos invasores, de poupá-los da prisão - promessa essa prontamente desmentida pelos ministros, na entrevista coletiva que deram ontem à tarde.

Desentendimentos à parte, o fato é que o histórico das invasões e ocupações do MST tem sido o registro da leniência no enfrentamento dos que desrespeitam, sistematicamente e num crescendo de violência, a lei, a propriedade, o direito das pessoas, com objetivo evidente de solapar os alicerces institucionais do regime democrático.

Felizmente o incidente chegou a bom termo, sem derramamento de sangue, em decorrência da resistência, ou o incêndio da propriedade, ameaçado pelos invasores. Mas é claro que a única negociação possível teria sido aquela que normalmente a polícia faz com os bandidos seqüestradores, visando a preservar, acima de tudo, a vida dos reféns. Da parte dos bandidos, no caso, o valor de troca seria apenas a incolumidade física e a garantia de vida, a partir de sua prisão e custódia - e jamais quaisquer itens relacionados a eventuais reivindicações "sociais".

Esp eremos que, desta vez, como prometem os ministros, pela lei e pela Justiça possa ser punido, exemplarmente, o crime organizado praticado pelo MST.


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03/25/2002


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