Salvo pelo vizinho






Salvo pelo vizinho
A votação da proposta orçamentária de 2002 caminhava para o impasse, inclusive com denúncias de irregularidades. Tudo mudou depois que os parlamentares souberam da crise na Argentina. Em nome da governabilidade, acordo pode sair hoje

O caos na Argentina poderá tirar do limbo a votação pelo Congresso do Orçamento da União de 2002. Ainda no início da noite de ontem, ela parecia fadada ao fracasso. Mas as imagens assustadoras apresentadas pelos telejornais, vindas do país vizinho, parecem ter ressuscitado os talentos conciliatórios dos senadores e deputados brasileiros.
O cenário por volta das oito horas da noite era de impasse absoluto. Primeiro, pela falta de acordo entre o governo e a oposição sobre o valor do salário mínimo e sobre a forma de renegociação das dívidas dos pequenos e médios agricultores. Segundo, pelo surgimento, ao longo da tarde, de uma série de denúncias sobre irregularidades na elaboração do relatório final da Comissão de Orçamento.

Uma hora mais tarde, depois de mais uma reunião entre os líderes partidários na sala do senador Ramez Tebet (PMDB-MS), presidente do Senado e do Congresso, os ânimos já estavam voltados para a Argentina. Até se falava na procura de um acordo sobre o valor do salário mínimo. A oposição, que insistia em R$ 220,00, já havia baixado para R$ 210,00. Os governistas já aceitavam falar em algo mais que os R$ 200,00 acordado com o governo.
Segundo o deputado Sampaio Dória (PSDB-SP), relator-geral do Orçamento, os congressistas não podem mais deixar de votar o projeto, para não dar um sinal ao mundo de que também no Brasil não há ‘‘condições de governabilidade’’.

Apenas Arnaldo Madeira (SP), líder do governo na Câmara, continuava contra novos aumentos no salário mínimo. ‘‘A oposição quer fazer um cabo de guerra para aumentar um pouquinho e depois dizer que teve uma vitória política’’, acusava ele após a reunião com Tebet.

Irregularidades
A discussão do Orçamento por pouco não foi implodida por causa das suspeitas sobre irregularidades reveladas à tarde nos plenários e nos corredores da Câmara e do Senado (leia matéria abaixo). Alguns deputados, como Miro Teixeira (PDT-RJ), líder do PDT, chegaram até em falar em abrir uma CPI, frente ao ‘‘cenário de anomalias’’ apresentadas por alguns deputados.
Mas, depois de reunir-se com Ramez Tebet (PMDB-MS), presidente do Senado, ao lado de outras lideranças da oposição, ele esclarecia que não havia ‘‘denúncias formais’’, mas apenas reclamações sobre a ‘‘maneira como a discussão foi conduzida na Comissão do Orçamento’’.

Walter Pinheiro (BA), presidente do PT na Câmara, pediu a Ramez Tebet uma auditoria para ‘‘decifrar o enigma’’ em torno dos ‘‘métodos não transparentes’’ utilizados pela Comissão Mista do Orçamento. E chegou a decretar: ‘‘Mesmo que haja boa vontade da oposição, não há mais como votar o Orçamento este ano’’.
Mas, depois das péssimas notícias vindas da Argentina, a oposição já mudava seu discurso. ‘‘Quem tiver denúncias a fazer, que as leve para o plenário ou para a corregedoria. Aqui não é lugar para fofoca’’, afirmou Eduardo Campos (PE), líder do PSB na Câmara, depois da reunião com Tebet.


Hora de se virar
Presidentes dos partidos da base governista decidem que cada um ficará livre para, neste momento, viabilizar candidaturas próprias à Presidência da República

O desempenho da governadora do Maranhão, Roseana Sarney, do PFL, nas pesquisas, e a decisão do governador do Ceará, Tasso Jereissati, de deixar o ministro da Saúde, José Serra, sozinho na disputa no PSDB, levaram os presidentes dos partidos da base aliada a uma decisão. Diante da inevitável força eleitoral de Roseana e do fato de que Serra fica forçado a se expor com a decisão de Tasso, cada um dos três partidos da base do presidente Fernando Henrique Cardoso fica autorizado e livre para viabilizar a sua própria candidatura. Em um determinado momento — que pode mesmo ser apenas no segundo turno —, PMDB, PSDB e PFL se encontrarão novamente para refazer a aliança.

Os presidentes do PMDB, deputado Michel Temer (SP), do PSDB, José Aníbal, e do PFL, senador Jorge Bornhausen (SC), fizeram esse acerto em um almoço no restaurante Lake’s Baby Beef, em Brasília. ‘‘Temos claro que o nosso adversário comum é o PT’’, diz Aníbal. ‘‘Mas sabemos também das dificuldades internas em cada partido para a manutenção da aliança agora’’, completa Bornhausen.
O presidente do PFL vive a situação mais confortável entre os três. Sua candidata, Roseana, é a que aparece melhor nas pesquisas. Ontem, o Instituto Datafolha confirmou o que já dissera há alguns dias o Instituto Sensus. No segundo turno, Roseana, se as eleições fossem hoje, poderia vencer Luiz Inácio Lula da Silva, do PT. No caso do Datafolha, a situação ainda é de empate técnico. Ela aparece com 46% e Lula com 44%.

O PMDB tem como candidatos Itamar Franco, que tem apenas 7% das intenções de voto, ou o senador Pedro Simon (RS), que nem aparece nas pesquisas. O PSDB agora tem apenas Serra, que tem os mesmos 7% de Itamar. ‘‘Os pré-candidatos dos outros partidos têm de trabalhar’’, constata Bornhausen, bem-humorado.
Essa é a chave da decisão dos três presidentes. Hoje, PMDB e PSDB não têm condições políticas para reconhecer que o PFL tem a melhor opção e aderir simplesmente à candidatura de Roseana. Por isso, ficam autorizados a buscar viabilizar seus próprios nomes. Se constatarem que isso não será possível, podem se reagrupar em torno da candidatura pefelista. ‘‘Roseana não nos estimula nem nos preocupa. Tem de preocupar é a oposição’’, resume Aníbal.

No PSDB e no PMDB, os pré-candidatos já trabalham para se viabilizar. Ontem , em almoço com a bancada tucana em São Paulo, Serra fez um diagnóstico para seu fraco desempenho nas pesquisas. Para ele, sua pré-candidatura não se consolidou porque ainda se definiu em São Paulo. Serra quer que os tucanos paulistas o lancem candidato. Não é fácil. A posição da família do ex-governador de São Paulo Mario Covas atrapalha isso. Ontem, os serristas paulistas tentaram convencer o governador Geraldo Alckmin a se definir publicamente por Serra. Não conseguiram.
No PMDB, abriu-se uma crise em Minas Gerais. O vice-governador de Minas, Newton Cardoso, disse que não abre mão de disputar o governo do estado. Com essa decisão, ele não deixa para Itamar outra alternativa senão tentar a Presidência da República. Como Itamar não tem garantias de que conseguirá ser candidato à Presidência, irritou-se. Numa nota, ele insinuou que poderá retalia Newton lhe tomando cargos em uma reforma administrativa.


Irmão de Iris pode ser preso
A descoberta de nova fraude, desta vez com dinheiro do BNDES, levou o Ministério Público a pedir a prisão dos três acusados pelo desvio de R$ 7,45 milhões da Caixa Economica de Goiás

O Ministério Público de Goiás pediu ontem a prisão preventiva de Isaías Carlos da Silva, de Edivaldo da Silva Andrade e de Otoniel Machado Carneiro, irmão e suplente do senador Iris Rezende (PMDB-GO). Os três são acusados de desviar um total de R$ 7,45 milhões da Caixa Econômica do Estado de Goiás (Caixego), que teria sido usado para financiar a campanha de Iris ao governo do estado, em 1998. Mesmo negando a acusação, os três devolveram parte do dinheiro - R$ 5 milhões - aos cofres públicos do estado.
A prisão dos acusados foi pedida porque a promotoria descobriu que R$ 4,5 milhões do dinheiro devolvido é proveniente de um empréstimo de R$ 22,7 milhões tomado pela empresa Alstom Brasil Ltda. no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social(BNDES), para o financiamento de exportações.

Os promotores ainda desconhecem a origem dos outros R$ 500 mil devolvidos.
Ao ser informado do pedido de prisão de seu irmão e suplente, Iris classificou o ato como uma ‘‘selvageria’’ do Ministério Público. Para o senador, a promotoria age politicamente para atrapalhar a ‘‘festa do povo de Goiás’’ em comemoração a seu aniversário, no sábado. O senador, que pretende disputar novo mandato em 2002, negou que o dinheiro desviado tenha financiado sua campanha em 1998, e disse desconhecer a empresa Alstom Brasil Ltda.

O saque na Caixego ocorreu à época da liquidação da instituição, cinco dias antes de Iris ser derrotado pelo governador Marconi Perillo (PSDB), no segundo turno das eleições. As investigações revelaram que R$ 2,45 milhões do dinheiro desviado foram parar na conta de quatro advogados. A quantia representava metade da indenização trabalhista devida a 124 ex-funcionários da Caixego, que por acordo aceitaram receber apenas R$ 2,54 milhões do total devido.

Testemunhas ouvidas pela promotoria goiana disseram que metade do valor sacado foi parar nas mãos de Otoniel. Outros R$ 2,45 milhões foram distribuídos entre os advogados Élcio Berquó (R$ 1.054.000), Valdemar Zaidem Sobrinho (R$ 459.984), Gil Alberto Silva (R$ 459.992) e o subprocurador-geral do Estado, Isaías Silva (R$ 429.984). Berquó era o representante dos ex-servidores da Caixego.


PEC é aprovada e será promulgada
O Congresso promulga hoje a Proposta de Emenda Constitucional que limita a imunidade parlamentar aos crimes de opinião. A PEC foi aprovada segunda-feira em segundo turno pelo Senado. A partir da promulgação, deputados e senadores passam a ter imunidade civil e penal apenas para os crimes de voto, opinião e palavra. Atualmente, os parlamentares têm imunidade também para os crimes comuns, mesmo cometidos antes do mandato.


José Sarney recebe alta
O senador José Sarney (PMDB-AP) atribuiu sua rápida recuperação à ascensão de Roseana nas últimas pesquisas pré-eleitorais. Ele recebeu alta no início da noite de ontem, depois de ter passado 32 horas internado no hospital UDI de São Luiz, em razão de uma crise de hipertensão. Sarney teve um edema pulmonar agudo e foi internado às pressas na segunda-feira, com a pressão arterial registrando 19 por 12. O cardiologista Carlos Gama recomendou duas semanas de repouso a Sarney.


Artigos

É, FH, o senhor está só
Luís Costa Pinto

A pesquisa do instituto DataFolha que flagrou a governadora do Maranhão, Roseana Sarney (PFL), vencendo um eventual segundo turno presidencial com 46% das intenções de voto contra 44% de Lula, do PT, é uma péssima notícia para Fernando Henrique Cardoso e sua turma. O presidente e seu PSDB não vencem com Roseana. Alguns tucanos, como os governadores Tasso Jereissati, do Ceará, e Geraldo Alckmin, de São Paulo, têm o que comemorar na fulgurante e vertiginosa ascensão da pefelista. O resto do partido não. O primeiro pode ser útil à herdeira do clã maranhense no Senado. O segundo sonha em sucedê-la.

O PSDB vai ter candidato próprio em 2002. O PFL também. Hoje, o PMDB, que não estará sozinho em nenhum palanque e virou noiva cobiçada nesse cenário de barraco suburbano, namora o tucano José Serra, mas flerta com Roseana. Os peemedebistas casarão com quem lhe der o maior dote. Tendo trilhado sozinha o caminho por meio do qual conquistou parcela relevante do eleitorado nacional, a maranhense Roseana Sarney não deve nada ao atual presidente. Apenas a admiração intelectual que nunca lhe negou e o agradecimento por FHC tê-la usado como interlocutora política privilegiada em momentos cruciais de seus mandatos. O principal deles foi quando Roseana convenceu o pai, o senador e ex-presidente José Sarney, a não trabalhar contra a emenda constitucional da reeleição.

Fernando Henrique, dono de um bom humor inteligente e de um peculiar espírito que adora espalhar a discórdia entre os amigos, construiu o cenário de cizânia no PSDB. Ele forneceu a corda com a qual Paulo Renato Souza, o mais bem-sucedido ministro da Educação dos últimos 50 anos, cometeu o suicídio político. Além disso, Paulo Renato rompeu uma complexa amizade com Serra, que se iniciou no exílio de ambos, no Chile, na década de 60. O presidente ainda incendiou o frágil coração de Tasso Jereissati, administrando precisas doses de cicuta na relação entre o governador cearense e o ministro da Saúde — que um dia se disseram amigos e admiravam-se mutuamente. Mário Covas morreu intrigado com FHC. Por isso, toda a família do ex-governador e seus principais colaboradores guardam imensa implicância com o presidente. Resta a Fernando Henrique torcer por Serra, o único capaz de resgatá-lo da solidão política.


Editorial

Miséria e desperdício

A erradicação da miséria no Brasil depende menos de recursos suficientes para torná-la efetiva do que de gestão político-administrativa eficaz. O diagnóstico consta do estudo Combate Sustentável à Pobreza elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). O conjunto das instituições sociais no âmbito da União, dos estados e dos municípios gasta 21% do Produto Interno Bruto (PIB) nos programas de índole social. São R$ 130 bilhões ao ano, descontados os encargos da Previdência.
O problema é que o dinheiro é mal-aplicado. Os cinqüenta milhões de pessoas atiradas ao regime de indigência material poderiam ser resgatadas com investimentos da ordem de R$ 90 bilhões. A FGV estima que a soma poderia ser conseguida mediante contribuição de R$ 15 reais mensais dos 120 milhões da população restante.

As receitas comprometidas nas ações de amparo às vítimas do infortúnio seguem caminhos ínvios. Ou chegam aos necessitados em parcelas reduzidas, ou não conseguem alcançá-los. A intermediação da burocracia na distribuição das verbas com certeza erode os valores. E é antiga a intromissão dos interesses políticos no sentido de desviá-los, quase sempre com recorrência a atos de corrupção.
Não é apenas o uso impróprio e, muitas vezes, irregular das disponibilidades a causa única das distorções no socorro aos miseráveis. Há planos de caráter social que os ignoram. O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e o seguro-desemprego são apontados pela FGV como iniciativas do gênero. ‘‘São benefícios restritos ao trabalhador que tem carteira assinada, quando os grandes bolsões de miséria estão no setor informal’’. É o que adverte o economista Marcelo Neri, chefe do Centro de Pesquisas Sociais da Fundação Getúlio Vargas.

O problema é que a existência de cinqüenta milhões situados na linha de miséria não traduz por inteiro o tamanho da tragédia. São brasileiros que sobrevivem com renda em torno de US$ 1,20 ao dia. Cerca de 45% deles têm menos de 15 anos. Trata-se de estatística imoral em um país colocado entre as dez primeiras economias do mundo.
Mas, apesar de tudo, a situação diagnosticada pela FGV quanto ao universo de excluídos é menos dramática do que a registrada em 1990. Então, as populações miserabilizadas somavam 63,18 milhões. Em 1995, no início do governo Fernando Henrique Cardoso, o número caiu para 50,23 milhões.
O quadro atual, contudo, exige a criação de mecanismos capazes de eliminar os desperdícios no aporte de dinheiro aos projetos de inclusão social. Mas não será possível fazê-los funcionar sem extinguir órgãos paralelos, rever a estratégia dos programas e erguer amplo sistema de articulação entre a União, os estados e os municípios.


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12/20/2001


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