Um frágil ministério
Um frágil ministério
Numa cerimônia envergonhada, Fernando Henrique Cardoso dá posse a novo ministro da Justiça mas não consegue acabar com a crise aberta depois do arquivamento do pedido de intervenção federal no Espírito Santo
O ministro da Justiça, Paulo de Tarso Ribeiro, tem uma dura tarefa para os próximos seis meses: reverter a imagem fragilizada do governo federal no combate à violência com a tumultuada saída de Miguel Reale Júnior do cargo e o arquivamento do pedido de intervenção no Espírito Santo.
O primeiro problema de Ribeiro apareceu ontem com novas críticas de representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) contra o arquivamento do pedido de intervenção e a ameaça de integrantes do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, o CDDPH, em abandonar reuniões durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso.
O Conselho, ligado ao Ministério da Justiça, foi o órgão que aprovou o pedido de intervenção no Espírito Santo na semana passada. O pedido, entretanto, foi negado pelo procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, depois de uma conversa com Fernando Henrique. O curioso é que Brindeiro aprovou o pedido na reunião do Conselho, mas acabou mudando de idéia em menos de quatro dias.
O arquivamento do pedido de intervenção no estado tirou Reale Júnior do cargo e foi o tema da primeira entrevista de Ribeiro. O novo ministro não descartou a intervenção. ‘‘Não se pode dizer que a intervenção não possa vir a ser uma alternativa. Mas há a necessidade de se analisar concretamente todas as formas de agir’’, disse. ‘‘Há centenas de medidas que podem ser adotadas para combater a criminalidade preservando as instituições.’’
Ribeiro, para evitar o clima pesado ao assumir o cargo, disse que discutiria as medidas de combate à violência no Espírito Santo com integrantes do governo estadual. Mas prometeu criar novas delegacias especializadas da Polícia Federal no estado, além de aumentar o efetivo da corporação e a ação da inteligência policial. ‘‘O compromisso que tenho é de não ficar refém do crime organizado.’’
Portas fechadas
O constrangimento, porém, não ficou de fora da cerimônia de posse de Ribeiro, que ocorreu na sala de audiências do Palácio do Planalto no final da tarde de ontem. A portas fechadas, Fernando Henrique empossou Ribeiro para uma platéia minguada e formada pelos ministros Alberto Cardoso (Segurança Institucional), Euclides Scalco (Secretaria Geral), Juarez Quadros (Comunicações) e o governador do Pará, Almir Gabriel (PSDB).
No discurso de transmissão de cargo no Ministério da Justiça, Reale Júnior, ao contrário de declarações anteriores, evitou criticar o presidente, mas insistiu na questão da ética. Em 14 minutos de discurso, atribuiu sete vezes sua saída do ministério ao que chamou de imperativos éticos. ‘‘Eu não posso ser um advogado do governo. Se estabeleceu uma divergência. Defendi uma posição e não podia mudar a minha opinião depois’’, disse Reale, que presidiu a reunião do Conselho semana passada e era favorável ao pedido de intervenção.
O pedido de intervenção no estado se baseava na perda de credibilidade das instituições capixabas, especialmente as polícias Militar e Civil. Em carta divulgada ontem e endereçada a Reale, Fernando Henrique rebateu acusações do ex-ministro no início da semana. O presidente negou que tenha influenciado a decisão de Brindeiro de arquivar o pedido de intervenção, que seria enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF).
‘‘O dr. Brindeiro afirmou-me que não havia base jurídica para que ele encaminhasse o pedido de intervenção ao STF’’, diz a carta, garantindo que teria sido o procurador-geral quem pediu, em caráter de urgência, o encontro com Fernando Henrique na segunda-feira, dia 8. ‘‘Vossa Excelência (Reale) jamais me pediu audiência para discutir a questão do Espírito Santo.’’ Na carta, Fernando Henrique afirma que o assunto foi tratado ‘‘apenas de passagem’’ com Reale.
Protestos
O secretário nacional dos Direitos Humanos, Paulo Sérgio Pinheiro, responsabilizou Brindeiro pelo arquivamento do pedido de intervenção federal e eximiu Fernando Henrique de participação no episódio. ‘‘A personagem-chave não é o presidente e sim o procurador-geral’’, disse Pinheiro. ‘‘Não acho que o presidente recuou.’’ Antes de dizer a Fernando Henrique que o pedido de intervenção ‘‘não tinha base jurídica’’, Brindeiro aprovou o relatório do Conselho no último dia 3. Na mesma reunião, o procurador-geral deixou claro que enviaria o pedido de intervenção ao STF. Ontem, por meio da assessoria de imprensa, Brindeiro disse que não falaria mais sobre o caso.
O arquivamento do pedido de intervenção federal no Espírito Santo provocou fortes manifestações no estado. Ontem, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) realizou manifestação no centro da cidade. Cerca de 1.800 professores, trabalhadores, estudantes e outros representantes de entidades de classe se reuniram no centro da cidade para protestar contra o arquivamento. Hoje, às 15h, uma nova manifestação está programada para o centro da cidade em protesto contra a decisão de Brindeiro. A manifestação está sendo organizada pelo Fórum Reage Espírito Santo.
Petrobras vai crescer
O presidente da Petrobras, Francisco Gros, disse que deve ser concluída nos próximos dias a negociação com a norte-americana Devon Energy para a compra da petroleira argentina Santa Fé. O valor do negócio deve ficar entre US$ 150 milhões e US$ 200 milhões. Segundo Gros, a nova aquisição dobrará a produção de óleo e gás da Petrobras na Argentina, reforçando a estratégia de internacionalização da estatal.
Governo americano dá apoio ao Brasil
Os Estados Unidos saíram em defesa do Brasil, ontem, depois das reuniões mantidas pelo presidente do Banco Central, Armínio Fraga, com dirigentes do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Tesouro americano e do Federal Reserve (o banco central dos EUA). Por ironia, a declaração de apoio foi anunciada pelo secretário do Tesouro, Paul O’Neill, que há um mês enfureceu as autoridades brasileiras ao declarar que não consideraria boa idéia usar dinheiro dos contribuintes americanos para liberar novos empréstimos para o Brasil. Ontem, o tom foi outro. ‘‘Os Estados Unidos apóiam plenamente os esforços e as intenções do governo brasileiro’’, afirmou O’Neill, depois de ouvir Fraga e declarar-se convencido de que o Brasil está pondo em prática políticas corretas.
Bolsa paulista é afetada
São Paulo — O efeito dominó provocado pelas fraudes contábeis nos principais mercados de ações do mundo, sobretudo a queda de 3,11% na Bolsa de Valores de Nova York, afetou o Brasil. A Bolsa de São Paulo (Bovespa) fechou em baixa de 1,22%, com o fraco movimento de R$ 448,4 milhões. Os títulos da dívida externa brasileira também foram atingidos. O C-bond, o mais negociado desses papéis, fechou a US$ 0,612, com queda de 0,61%.
A Bovespa abriu em alta mas ao longo do dia foi perdendo fôlego com o surgimento das notícias vindas das bolsas européias e especialmente dos Estados Unidos. O clima de insegurança dos investidores no exterior estimulou bancos e fundos de pensão a vender ações de empresas estabelecidas no país. Tal aversão a risco é um dos fatores responsáveis pela queda de 5,2% da bolsa paulista desde o início de julho. Em um mês, a perda é maior, de 16,2%.
As informações negativas que vieram de fora não deixaram que o real se fortalecesse frente ao dólar. A cotação da moeda norte-americana ficou em R$ 2,851, com baixa de apenas 0,1%. O dólar só não subiu por causa da última pesquisa eleitoral do Ibope, divulgada terça-feira. Nela, Luis Inácio Lula da Silva (PT) cai de 38% para 34%. Ciro Gomes (PPS) sobe de 11% para 18% e passa à frente de José Serra (PSDB), que caiu de 19% para 17%. ‘‘Lula caiu quatro pontos percentuais e diminuiu as chances de vencer no primeiro turno’’, avaliou um diretor de banco europeu.
Se Lula perdeu um pouco de força, o mercado já começa a ponderar que Ciro Gomes não é um candidato tão ruim assim. Muitos investidores estão vendo com aprovação a aproximação do ex-ministro da Fazenda com a cúpula do PFL, sem contar a afinidade histórica com líderes tucanos, como Tasso Jereissati.
Grande empresa é investigada
O gigante das telecomunicações americano Qwest Communications International informou que é alvo de uma investigação penal por parte das autoridades federais americanas. A companhia acrescentou não conhecer o objetivo das investigações. Em um comunicado curto informou que ‘‘vai cooperar com o promotor.’’ A cotação da companhia foi suspensa na bolsa de Nova York depois da notícia. A SEC está investigando a contabilização das vendas de infra-estrutura de transmissão por fibra óptica e de equipamentos para clientes de serviços da Quest.
Essa não foi a única má notícia envolvendo um empresa americana. Em Nova York, a Merck, do ramo farmacêutico, adiou a oferta pública de ações de sua unidade de distribuição, a Medco. A empresa alegou que as ações seriam vendidas por um preço baixo. Isso aconteceria, porque a Merck está envolvida em um escândalo por ter registrado US$ 12 bilhões inexistentes como receitas da Medco.
Outra grande companhia americana envolvida em escândalo, a WorldCom, abriu negociações com bancos para conseguir um empréstimo de US$ 3 bilhões, segundo informações dos jornais Financial Times e Wall Street Journal. A maior parte do empréstimo, US$ 2,65 bilhões, seria usada para quitar dívidas. A operação não é simples, porque a WorldCom fraudou seus balanços de 2001 e do primeiro trimestre deste ano em US$ 3,8 bilhões, o que reduziu a credibilidade da empresa no mercado.
Menores infratores punidos
A 2ª Vara da Infância e da Juventude do Rio aceitou ontem pedido do Ministério Público do Estado e decidiu prolongar por mais três anos o internamento de oito adolescentes que espancaram e mataram, no dia 4 de março, Robson Carlos Oliveira Rosa, 17, interno do Educandário Santo Expedito, no complexo penitenciário de Bangu. Os agressores já cumprem internação no Santo Expedito por roubo e tráfico de drogas. A vítima foi agredida por socos e pontapés até morrer. Na ocasião, os agressores disseram ter matado o adolescente porque ele não cumpriu um dos chamados ‘‘Dez Mandamentos’’, regras impostas na instituição pela facção Comando Vermelho. A vítima teria coçado os órgãos genitais em dia de visita. Na avaliação do promotor Astério Pereira dos Santos, ‘‘o homicídio torna evidente a existência de um poder paralelo, que alguns representantes do Executivo teimosamente ignoram’’.
Artigos
A globalização depois do 11 de setembro
David Held
É fácil exagerar sobre o momento: generalizar em excesso a partir da experiência de um acontecimento e de uma data. Portanto, poderíamos interpretar o 11 de setembro como um ponto de inflexão, senão o mais importante, na era contemporânea; o momento em que o projeto de globalização se encontrou com o projeto do terrorismo em massa, tingido pelo islã radical mundial. Seria possível pensar em um terrorismo em massa como desafio contra a globalização e a expansão de valores como o sistema de direito, a democracia e a liberdade. É desafio contra tudo isso, claro. Mas existem, além disso, outros desafios que poderiam ser consideradas mais amplos e profundos. Apresentarei alguns deles.
A globalização não é novidade. Houve muitas fases de globalização nos dois últimos milênios, entre as quais o estabelecimento das religiões mundiais, a era dos descobrimentos e a expansão dos impérios.
Mas existe algo novo na globalização atual, quer dizer, na confluência da mudança em múltiplas atividades humanas: econômicas, políticas, jurídicas, de comunicação e meio ambiente. Podemos prosseguir medindo a extensão, a intensidade, a velocidade e o impacto das redes e das relações humanas em cada um dos âmbitos básicos da atividade, e isso é o que tentei fazer com Anthony McGrew em Global Transformations (Transformações Globais) e em outras obras.
A globalização contemporânea compartilha elementos em comum com fases anteriores, mas possui características organizacionais especiais que a diferenciam, já que cria um mundo no qual o extenso alcance das relações e das redes humanas está igualado pela elevada intensidade relativa, alta velocidade e grande propensão a exercer impacto em diversas facetas da vida social.
O resultado é o surgimento de uma economia planetária, mercados financeiros que atuam 24 horas por dia, empresas multinacionais que fazem alguns países parecerem pequenos, novas formas de direito internacional, o desenvolvimento de estruturas regionais e planetárias de governo e do surgimento de problemas sistêmicos planetários: aquecimento global, Aids, terrorismo em massa, volatilidade dos mercados, lavagem de dinheiro, o narcotráfico internacional, a regulamentação da engenharia genética etc. Essas evoluções apontam uma série de dificuldades que saltam à vista.
Em primeiro lugar, os processos de globalização e regionalização contemporâneos criam redes de poder sobrepostas que superam os limites territoriais. Assim, acrescentam pressão — e tensão — a uma ordem mundial desenhada de acordo com o princípio westfaliano de domínio soberano exclusivo sobre um território limitado.
Em segundo lugar, já não é possível supor que o âmbito do poder político efetivo sejam simplesmente os governos nacionais: o poder efetivo é dividido e negociado pelas diversas forças e organismos, públicos e privados, nos níveis nacional, regional e internacional. Além disso, a idéia de povo autônomo — ou de comunidade de destino político — já não pode ser encontrada dentro dos limites exclusivos do Estado nacional. Parte das forças e dos processos mais básicos que determinam a natureza das oportunidades vitais estão agora fora do alcance dos estados nacionais.
No passado, os estados nacionais resolviam principalmente suas
diferenças sobre questões fronteiriças apresentando ‘‘razões de Estado’’ respaldadas por iniciativas diplomáticas e, em último lugar, com meios coercitivos. Mas essa lógica do poder é particularmente inadequada para resolver as múltiplas e complexas situações, desde a regulamentação econômica até o esgotamento dos recursos e da degradação do meio ambiente, passando pelo terrorismo em massa, que geram — a velocidades aparentemente cada vez maiores— uma mistura das sortes nacionais. Estamos, como eloqüentemente expressou Kant, ‘‘inevitavelmente juntos’’. Em um mundo onde os Estados poderosos tomam decisões que afetam não só a seus povos, mas também a outros, e onde as forças transnacionais atravessam os limites das comunidades nacionais de diversas maneiras, as questões sobre quem deveria submeter responsabilidades perante quem, ou sobre que base, não se resolve facilmente.
Em terceiro lugar, as instituições políticas, nacionais e internacionais, estão debilitadas por três vazios normativos e políticos cruciais:
— Uma defasagem jurisdicional: a discrepância entre um mundo regionalizado e globalizado e as unidades nacionais separadas que estabelecem a política, o que dá espaço ao problema das exteriorizações e de quem é responsável por elas.
— Uma defasagem de participação: o fato de não haver um sistema internacional para dar uma voz a dequada a muitos dos principais atores globais, tanto estatais quanto não estatais.
— E uma defasagem de incentivos: as dificuldades que estabelecem o fato de que, na ausência de uma entidade supranacional que regule a provisão e o uso dos bens públicos globais, muitos Estados tentarão ir a reboque ou não encontrarão soluções coletivas duradouras aos problemas transnacionais mais urgentes.
Em quarto lugar, essas disfunções políticas vão unidas a uma defasagem adicional que poderíamos chamar de defasagem moral; ou seja, uma defasagem definida por:
a) Um mundo no qual 1,2 bilhão de pessoas vivem com menos de US$ 1 diário, 46% da população mundial vive com menos de US$ 2 por dia e 20% da população mundial desfruta de 80% de suas rendas.
b) E por compromissos e valores de, no melhor dos casos, indiferença passiva frente a isso, como mostra um gasto anual das Nações Unidas de US$ 1,25 bilhão (sem contar as missões de paz), um gasto anual em confeitarias no valor de US$ 27 bilhões nos Estados Unidos, um gasto anual em álcool nos Estados Unidos de US$ 70 bilhões e um gasto anual com carros nos Estados Unidos que está nas nuvens (mais de US$ 550 bilhões).
Naturalmente, isso não é uma declaração antiestadunidense. Poderiam ter sido ressaltadas cifras semelhantes na União Européia.
Propõem-se, então, perguntas aparentemente evidentes. Alguém escolheria livremente essa situação? Alguém escolheria livremente um padrão de distribuição dos bens e serviços escassos que faz com que centenas de milhões de pessoas sofram discriminações e desvantagens graves independentemente de sua vontade e consentimento (e que faz com que 50 mil pessoas morram diariamente de desnutrição e pobreza relacionadas com essas causas), se esse indivíduo não soubesse de antemão que tinha um lugar privilegiado na atual hierarquia social? Alguém apoiaria livremente uma situação na qual o gasto anual de proporcionar educação básica a todas as crianças é de US$ 6 bilhões; o de água e esgoto, de US$ 9 bilhões; e o de saúde básica para todos, de US$ 13 bilhões, enquanto anualmente são gastos nos Estados Unidos US$ 4 bilhões em cosméticos, quase US$ 20 bilhões em jóias e US$ 17 bilhões (nos Estados Unidos e Europa) em comida para animais de estimação? Perante uma corte imparcial de raciocínio moral (que analise o razoável rechaço das reivindicações), é difícil compreender como se poderia defender resposta afirmativa a essas perguntas. Dificilmente pode surpreender que as desigualdades planetárias fomentem o conflito e o protesto, especialmente dada a visibilidade dos estilos de vida mundiais na era dos meios de comunicação de massa.
Em quinto lugar, produziu-se mudança dos relativamente discretos sistemas de comunicação e econômicos nacionais em sua mais complexa e diversa mistura nos planos regionais e planetário, e do governo com a administração em diversos níveis. Porém, há poucas razões para pensar que ocorreu uma ‘‘globalização’’ paralela das identidades políticas. Uma exceção a isso pode ser encontrada entre as elites da ordem mundial — as redes de especialistas, pessoal administrativo superior e executivos das empresas multinacionais — e aqueles que seguem suas atividades e protestam contra elas, a vaga constelação composta de movimentos sociais (incluindo o movimento antiglobalização), sindicalistas e (alguns) políticos e intelectuais. Mas esses grupos não são típicos. Vivemos, portanto, com um paradoxo complicado: que a administração está se convertendo cada vez mais em atividade de vários níveis, intrincadamente institucionalizada e espacialmente dispersa, enquanto a representação, a lealdade e a identidade se mantêm obstinadamente arraigadas às tradicionais comunidades étnicas, regionais e nacionais.
Portanto, a mudança de governo para administração com múltiplos níveis, das economias nacionais à globalização econômica, é instável em potencial, capaz de se inverter em alguns aspectos e certamente capaz de gerar terrível reação, reação baseada na nostalgia, nas concepções românticas de comunidade política, na hostilidade contra os que vêem de fora (refugiados) e na busca pelo Estado nacional puro (por exemplo, na política de Haider na Áustria, Le Pen na França etc). Mas é provável que essa reação seja também em si mesma fortemente instável, e quem sabe fenômeno relativamente de curto ou médio prazo (se tivermos sorte!). Para compreender a que se deve isso, é necessário suprimir o nacionalismo.
Como nacionalismo cultural é, e com toda probabilidade continuará sendo, fundamental para a identidade das pessoas; porém, como nacionalismo político — a afirmação da exclusiva prioridade política da identidade nacional e do interesse nacional — não pode proporcionar muitos bens públicos desejados sem buscar sua acomodação com outros, por meio da colaboração regional e global. A esse respeito, somente o ponto de vista internacional ou, melhor ainda, cosmopolita, pode, em último lugar, se acomodar às complicações políticas apontadas por uma era mais planetária, marcada pela sobreposição de comunidades de destino e uma política de níveis e camadas múltiplas. Ao contrário do nacionalismo político, o cosmopolitismo registra e reflete a multiplicidade de assuntos, questões e processos que afetam e unem as pessoas, independentemente de onde tenham nascido ou de onde morem.
Precisamos de uma mudança de um multilateralismo conduzido por um clube dirigido por executivos — tipicamente secreto e excludente — a uma forma de governo mais transparente, responsável e justo: um multilateralismo socialmente respaldado e cosmopolita. Os requisitos básicos para isso são:
a) O reconhecimento da crescente interconexão das comunidades
políticas em diversos âmbitos (incluindo o social, o econômico e do meio ambiente).
b) A compreensão de que as sortes coletivas se sobrepõem e requerem normas e soluções coletivas no âmbito local, nacional, regional e planetário.
c) O reconhecimento da necessidade de que se tomem mais decisões e mais decisões eficazes e responsáveis a nível transnacional.
d) A ampliação e transformação de nosso sistema de governo atual, de escalas e camadas múltiplas, passando do local ao regional e ao planetário, de forma que adote, em seu modus operandi, os princípios da transparência, responsabilidade e democracia.
A multilateralização cosmopolita não pode se basear no modelo norte-americano de geopolítica e compromisso internacional, especialmente tal como defende a direita republicana desde o 11 de setembro, que constitui nova forma de unilateralismo global. O experimento social europeu — baseado no modelo de valores democráticos sociais e o nobre experimento de governo em colaboração: a União Européia — assinala um caminho mais à frente. Mas, dentro da UE, corremos o risco gravíssimo de gerar profunda divisão entre a política de elite e a de massas, e de provocar um afastamento da vontade popular. É possível evitá-lo?
Como o nacionalismo, o cosmopolitismo é projeto cultural e político, mas com uma diferença: se adapta melhor a nossa era regional e planetária. Porém, ainda não foram ganhos os debates para implantá-lo na esfera pública. E, se o perdermos, estaremos em perigo.
É importante voltar ao 11 de setembro e explicar o que significa nesse contexto. Não podemos aceitar a carga de endireitar a justiça em um âmbito da vida — a segurança física e a cooperação política entre órgãos de defesa — sem tentar ao mesmo tempo solucioná-la nos outros aspectos. Se, no longo prazo, se separam as dimensões políticas e de segurança, social e econômica da justiça — como tende a fazer a ordem mundial atual —, as perspectivas de estabelecer uma sociedade pacífica e civil serão realmente sombrias. O respaldo popular contra o terrorismo, assim como cont ra a violência política e as políticas excludentes de todo tipo, depende de convencer as pessoas de que há uma forma legal, receptiva e específica de abordar suas queixas. Sem esse sentido da confiança nas instituições públicas, a derrota do terrorismo e da intolerância se convertem em tarefa muito difícil, se é que se pode chegar a conseguir. A globalização sem o cosmopolitismo poderia fracassar.
Editorial
AS RAZÕES DO PRESIDENTE
Os brasileiros descobriram há pelo menos três anos que o Espírito Santo tornou-se um reduto de violência, corrupção e impunidade. As constantes denúncias de envolvimento de autoridades locais com práticas criminosas levaram o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) a pedir uma intervenção federal no estado. Em comum acordo com o presidente Fernando Henrique Cardoso, o procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, decidiu arquivar o pedido.
O presidente posicionou-se contra a medida por julgá-la inadequada para resolver os problemas do Espírito Santo neste momento. A principal preocupação diz respeito à proibição legal de mudanças na Constituição durante a vigência de intervenção federal num estado. Trata-se de uma determinação do parágrafo primeiro do artigo 60 da Carta Magna.
Em tempos de turbulência na economia, Fernando Henrique não pode prescindir da faculdade de propor emendas constitucionais. Engessado na capacidade de corrigir distorções na legislação brasileira, o presidente perderia um importante instrumento de ação de governo em momentos de crise. A rejeição do pedido feito pelo CDDPH evita que uma questão local do Espírito Santo se transforme num problema nacional.
O governo federal também avaliou que a intervenção seria imprópria a menos de seis meses do fim do mandato do governador José Ignácio Ferreira (PTN). Não teria sentido uma mudança tão radical às vésperas de os eleitores escolherem quem eles querem ver na condução do estado a partir de janeiro. Se existe insatisfação popular com os atuais dirigentes, os próprios eleitores terão oportunidade de manifestá-la.
Intervenção é uma medida extrema, para ser aplicada quando todas as outras possibilidades estiverem esgotadas. O Rio de Janeiro vive uma onda parecida de criminalidade, enfrentada por uma força-tarefa que envolve os governos federal e estadual. Essa alternativa ainda não foi aplicada ao Espírito Santo.
A Ordem dos Advogados do Brasil pediu a intervenção no dia 21 de maio, depois que o advogado Marcelo Denadai foi assassinado por denunciar os desmandos do crime organizado no estado. Presidido pelo ministro da Justiça, Miguel Reale, o CDDPH acatou a proposta.
A decisão do presidente de rejeitar a medida provocou a saída de Reale do ministério. Jurista respeitado, ele sentiu-se desrespeitado por ter defendido publicamente a intervenção. Até mesmo o candidato do governo à Presidência, José Serra, ficou contra o arquivamento da proposta. As insatisfações geradas pelo gesto de Fernando Henrique ficarão superadas se forem tomadas medidas concretas para reduzir a violência no Espírito Santo e tranqüilizar a população.
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07/11/2002
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