Cristovam Buarque: evasão de cérebros é a escravidão do século 21



A chamada evasão de cérebros, que está intimamente relacionada com a escassez de recursos para Ciência e Tecnologia e que ainda não tem no Brasil a gravidade que já alcançou em países como Argentina, Coréia e Índia, tende a se agravar, avalia o senador Cristovam Buarque (PDT-DF), em entrevista à Agência Senado.

No Brasil, diz o senador, o problema é verificado não só com cientistas e outros profissionais. Uma forma muito visível de evasão é a de jogadores de futebol. Para ele, a evasão de cérebros é uma espécie de escravidão do século 21: "Antigamente, tirava-se o escravo da África para trabalhar aqui. Agora, tira-se o cientista da África, escravizando-se o povo na África, sem médicos, sem possibilidades de desenvolvimento científico e tecnológico".

Professor universitário, ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), ex-ministro da Educação do atual governo e pré-candidato à Presidência da República pelo PDT, Cristovam Buarque defende a criação de um fundo destinado a contratar cientistas, formando-se uma rede de proteção paraevitar a evasão de cérebros. Ele calcula que cerca de R$ 700 milhões seriam suficientes para contratar os cientistas, que receberiam salários entre R$ 5 mil e R$ 10 mil. Laboratórios bem equipados também são imprescindíveis para os cientistas desenvolverem seus projetos e se realizarem profissionalmente, acrescenta o senador.

Apesar de o Fundo de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) ter tido seus investimentos elevados de R$ 628 milhões em 2003 para R$ 788 milhões em 2005 - dinheiro esse que é aplicado sobretudo na formação de recursos humanos -, e a participação brasileira na produção científica internacional ter aumentado de 0,8% para 1,6% nos últimos 20 anos, há uma preocupação crescente entre os profissionais do setor quanto aos baixos índices de investimentos que o país vem fazendo em Ciência e Tecnologia.

O Brasil aplica, por ano, em torno de 1% do Produto Interno Bruto (cerca de R$ 1,3 bilhão) para financiar projetos de Ciência e Tecnologia. Esse percentual, se comparado à média de 2,5% dos países ricos, que já estão em patamar muito superior ao brasileiro, demonstram a necessidade de um redimensionamento dos investimentos, sob risco do país se perenizar no atraso.

Mas a dificuldade brasileira, ressalta Cristovam, é sobretudo de natureza cultural: "Eu não digo que sejam apenas os políticos. A mente do Brasil é do curto prazo. Investir em Ciência é uma perspectiva de 20, 30 anos. O Brasil é um país 'curtoprazista'. O que está faltando é de uma cultura que diga que isso é importante para o país".

Agência Senado - Vindo de uma origem acadêmica e tendo sido reitor de uma das principais universidades públicas do país (a UnB), além deministro da Educação do atual governo, como é que o senhor analisa a questão da evasão de cérebros?

Cristovam - Essa situação de evasão de cérebros é uma espécie de escravidão do século 21. Beneficia muito a pessoa que faz a opção de sair e prejudica muito seu país de origem. Hoje muitos médicos da América Central, da América do Sul e da Ásia recebem bolsas de estudo com dinheiro de seus países, se formam, e, depois de formados, vão embora para a Europa e os Estados Unidos. Milhares e milhares de médicos que trabalham hoje nos Estados Unidos se formaram nos países pobres, com o dinheiro do povo dos países pobres, e depois foram embora. No fundo, você termina fazendo um fluxo de mão de obra de qualidade da mesma maneira que nos séculos passados se fazia mobilidade de escravos para o trabalho braçal. Só que os escravos vinham presos. Esses cientistas vêm se beneficiando com altos salários, com institutos, com equipamentos para se realizar profissionalmente. O escravo é o país, o escravo é o povo, o escravo é quem fica. Antigamente, tirava-se o escravo da África para ele vir trabalhar aqui. Agora, tira-se o cientista da África e escraviza-se o povo na África, sem médicos, sem a possibilidade de desenvolvimento científico e tecnológico. É uma realidade tão perversa, apesar de ser diferente, quanto era a da escravidão. Isto está acontecendo todos os dias.

Agência Senado - De que maneira isso atinge a sociedade brasileira?

Cristovam - No Brasil, isso acontece não só com cientistas e outros profissionais. Uma forma muito visível de evasão é a de jogadores de futebol. Os jogadores hoje já não jogam no Brasil; vão embora.O que acontece com os jogadores aparece nos jornais. Agora, o que está acontecendo com médicos, cientistas, engenheiros não aparece nos jornais. Essa é a tragédia.

Agência Senado - Em comparação com outros países em desenvolvimento, qual é a situação do Brasil em relação a esse fenômeno da evasão de cérebros?

Cristovam-A situação do Brasil não é tão grave como a de países como Coréia, Índia e a própria Argentina. Mas é grave e tende a piorar. E só não é mais grave pelo lado negativo. É que a gente investiu pouco na formação de cientistas. O número de cientistas coreanos que saem é maior do que o de cientistas brasileiros porque lá eles formam mais cientistas do que nós. A Índia é, talvez, o país que perde o maior número de cientistas. Porque eles têm um programa muito grande de formação de cientistas. O fato de a gente ter menos, não quer dizer que a gente esteja sofrendo menos. Sem falar, também, que aqui a gente termina se protegendo pelo fato de o uso da língua inglesa não ser tão comum como em outros países. Então, os nossos cientistas têm uma dificuldade maior para se inserir lá fora do que os indianos, por exemplo, que aprendem inglês desde o nascimento. Mas essa é uma tragédia que vai condenar os nossos países a um atraso permanente. Nós pedimos emprestado aos bancos internacionais, financiamos bolsas de estudos para os nossos jovens aprenderem e na hora que eles se formam eles vão embora.

Agência Senado - E o que o Congresso pode fazer para impedir o agravamento deste quadro?

Cristovam - Antes de falarmos do Congresso, vamos falar qual seria a saída. Eu proponho esta saída há muitos anos. Já escrevi livro em que trato disso. A minha saída é simples. É copiar para a Ciência o que a gente fez nos anos 30 do século passado com o café. Quando houve uma grande crise internacional do café, o Getúlio decidiu uma coisa que parecia absurda. Ele comprava café e queimava. Parecia absurdo! Mas foi graças a isso que quando acabou a crise os pés de café estavam lá, os coletadores estavam lá e a gente voltou a se recuperar. Valeu à pena. O que eu tenho proposto há muitos anos é que o governo crie um fundo para contratar cientistas. Nenhum cientista poderá ficar desempregado. É a maneira de você manter o cérebro funcionando, do jeito que a gente mantinha o pé de café em pé. Essa proposta foi apresentada ao governo Lula e em um livro que escrevi em 1994, chamado A Revolução nas Prioridades.

Agência Senado - Mas como seria constituído esse fundo?

Cristovam - Não custaria muito, até por causa da nossa pobreza: a gente tem tão poucos cientistas. Vamos supor que a gente queira contratar mil cientistas a um salário de cinco mil reais... A gente não vai concorrer com os Estados Unidos. Mas tem que ver também que as pessoas não vão para os Estados Unidos só porque gostam. Vão porque aqui não tem atração.

Agência Senado - Este ano, o Brasil caiu seis posições e ficou em 52º lugar no ranking do Fórum Econômico Mundial que mede a capacidade dos países de usar a tecnologia da informação para incentivar a competitividade. Estamos andando para trás?

Cristovam - Provavelmente. Os cientistas dessa área foram embora. Porque no caso dos cientistas não é só o salário, é também o laboratório. O cara não vai ser cientista só pelo salário. O cara vai também por uma realização vocacional. Um salário de cinco mil reaisseguraria muitos cientistas. Essa é a minha proposta. Não foi apresentada em projeto porque isso implica em gastos, e isso é prerrogativa do Poder Executivo, mas vou apresentar em meu programa de governo como candidato à Presidência da República.

Agência Senado - Já que hoje há uma consciência sobre a importância dos investimentos em Ciência e Tecnologia e, apesar disso, eles não estão sendo feitos, pelos menos dentro do ritmo necessário, o que o Congresso pode fazer?

Cristovam - O que está faltando é o mais importante: uma cultura que diga que isso é importante para o país. Porque o Brasil está preso ao imediato. A mente brasileira - eu não digo que sejam apenas os políticos - é do curto prazo. Investir em Ciência e Tecnologia é uma perspectiva de 20, 30 anos. No Brasil a gente não consegue convencer ninguém a investir numa coisa que vai demorar a dar resultado. É a deformação que a gente vem sofrendo ao longo de muitas décadas de imediatismo. A gente prefere financiar capital financeiro a capital produtivo. A gente prefere pagar juros altos a investir e ter o setor produtivo funcionando bem. É uma deformação mental. O Brasil é um país 'curtoprazista'. Quando eu falo que tem que investir em educação e digo que vai levar 15 anos, as pessoas perguntam: "Mas 15 anos!?" Como se as crianças pudessem crescer mais depressa, feito bolo com fermento! Mas a verdade é que a gente tenta copiar tudo. Em vez de termos cientistas brasileiros, compramos ciência lá fora, porque se for nossa, a gente já não dá tanto valor. A gente dá valor aos craques.

Agência Senado - Até que ponto a má qualidade da escola pública em nosso país pode ser considerada como uma das causas responsáveis por esta situação?

Cristovam - A gente não fez uma mudança na educação básica. O Brasil é um país que não deu importância à educação básica. Mesmo quem gasta com a educação do filho, é querendo que ele ganhe um salário bom, não é querendo que ele seja educado. O segundo ponto é a política. Nós fazemos com que se resolvam os problemas da minoria privilegiada e as massas são deixadas de lado. A gente abandonou a educação das nossas massas. Você vê o resultado disso. De cada dez craques de futebol do mundo, quatro são brasileiros. Mas em cada dez cientistas com Prêmio Nobel no mundo, zero brasileiro. Sabe por quê? A bola o menino tem desde os quatro anos de idade. Bola e o campo de pelada. Agora, escola e livros ele só tem a partir dos sete anos, e de má qualidade. Campo de futebol é o mesmo. Escola é completamente diferente uma da outra.

Agência Senado - Entre as propostas lançadas dentro da comunidade acadêmica para superar dificuldades que terminam produzindo a evasão de cérebros e outros problemas na área de Ciência e Tecnologia, há uma que defende a autonomia financeira e patrimonial, tirando as universidades do Regime Jurídico Único que impede o pagamento de salários competitivos para os melhores cientistas.

Cristovam - Eu sou favorável à autonomia universitária, de modo que as universidades possam ter políticas salariais diferentes uma da outra. Mas as universidades vão continuar sem recursos. Além disso, o governo tem de acabar com o contigenciamento dos recursos dos fundos setoriais de pesquisas. Quando o país contigencia dinheiro para ciência, ele está contigenciando o seu futuro. O Brasil está fazendo isso. O ganho verdadeiro seria na hora de elaborar o orçamento o Congresso colocar mais recursos para ciência e tecnologia e, segundo, proibir o contigenciamento nessas áreas. Não vejo muito mais o que fazer aqui dentro. Tem que ser feito lá no Poder Executivo. O Congresso é marginal no que diz respeito à elaboração do orçamento.

Agência Senado - O que o Brasil precisa fazer agora para evitar que o problema da evasão de cérebros se agrave nos próximos anos?

Cristovam - Primeiro, antes de tudo, mais investimento na educação básica, senão não vai ter uma boa ciência, porque vai ter poucos cientistas. Só um terço dos nossos jovens termina o ensino médio. Imagine se só um terço dos meninos pudessem jogar bola, quantos craques a gente iria perder? Segundo, mais dinheiro para formar cientistas, tanto na universidade quanto na pós-graduação. E, terceiro, mais dinheiro para contratar esses profissionais. Se não forem cumpridas essas três etapas não vai adiantar.

09/06/2006

Agência Senado


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