FH dá início à transição
FH dá início à transição
Presidente se reúne com principais candidatos numa iniciativa inédita e obtém compromisso com medidas de austeridade fiscal e de estabilidade também de Serra
Numa iniciativa inédita, o presidente Fernando Henrique recebeu ontem os quatro principais candidatos à sua sucessão e obteve dos dois candidatos da oposição que lideram as pesquisas, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Ciro Gomes (PPS), compromisso com medidas de austeridade fiscal e estabilidade da economia que serviram de base ao acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Dando início na prática à transição, Fernando Henrique se reuniu, separadamente, com Lula, Ciro, José Serra (PSDB) e Anthony Garotinho (PSB). O candidato do governo reiterou sua posição favorável ao acordo e defendeu medidas de alcance imediato.
Garotinho pouco falou sobre suas críticas a Fernando Henrique, mas depois que saiu divulgou nota com duros ataques ao acordo com o FMI.
Ninguém prometeu apoio automático ao acordo com o Fundo, mas Ciro comprometeu-se pela primeira vez com pressupostos básicos do acordo, como o superávit primário de 3,75% do PIB em 2003, com a austeridade fiscal e a manutenção da estabilidade. Ele ressalvou que quer ler o texto do acordo antes de assumir um compromisso definitivo, mas considerou o acordo inevitável.
“Nesta circunstância, compreendo como inevitável a evolução destes entendimentos”, disse Ciro em nota.
Lula anunciou que vai começar a mudar a política econômica logo depois da posse, caso seja eleito. Afirmou que o acordo com o FMI não trouxe os resultados esperados e alertou para o risco de os recursos liberados pelo Fundo não serem suficientes para evitar que as reservas cambiais sejam consumidas. Porém, disse que honrará os compromissos assumidos pelo país. Ele também sugeriu medidas imediatas, como uma ampla articulação no mercado internacional para que o país recupere as linhas de financiamento às exportações:
— Se vencermos as eleições, mudaremos a política econômica desde o primeiro momento. Mas, diante das turbulências, não dá para esperar o presidente tomar posse.
Segundo Fernando Henrique, Lula disse:
— Os compromissos que o presidente do Brasil assumir eu cumpro.
FH se disse satisfeito
Satisfeito com os resultados de sua iniciativa, Fernando Henrique reafirmou que os candidatos se
comprometeram com a meta de superávit primário, considerada a essência do acordo com o FMI.
— Foi uma prova de maturidade. Maturidade política, de compreensão, de clareza, de transparência. Aqui não há cartas escondidas na manga. Aqui, há a vontade de ajudar o Brasil. Hoje é um dia para mim de muita satisfação. Conversamos com espírito público, pensando no país — afirmou o presidente, acrescentando que estava "pavimentando uma transição segura".
O encontro com Ciro — com quem o presidente estava estremecido — foi o que mais gerou apreensão no Planalto, mas ao seu final tanto os assessores do presidente quanto os do candidato estavam aliviados. Além de assegurar que pretende respeitar os contratos, Ciro não responsabilizou apenas o governo pela crise.
— Existe a incompreensão de setores do mercado internacional em relação ao país — disse.
Serra repetiu sua defesa em favor do acordo com o FMI e aproveitou para fazer propostas, como alternativas para evitar aumentos do preço do trigo e ampliação do crédito às exportações. Em todas as conversas, Fernando Henrique explicou os termos do acordo com o FMI e mostrou as contas do governo.
Só Lula teve direito a um segundo turno de conversa, a sós, com FH
Apesar da apreensão sobre o reencontro de FH e Ciro, a conversa foi cordial, segundo o candidato
BRASÍLIA. O candidato da Frente Trabalhista à Presidência, Ciro Gomes, ganhou o voto do garçom cearense que serviu o cafezinho. Mas foi o petista Luiz Inácio Lula da Silva quem recebeu a maior deferência: após o encontro, conversou sozinho com o presidente Fernando Henrique por mais de dez minutos, a convite do presidente. O teor da conversa foi mantido a sete chaves, mas os assessores de Lula não descartaram uma possível discussão sobre os rumos da disputa eleitoral e o segundo turno.
À noite, já em São Paulo, Lula contou que também pediu ajuda ao presidente para resolver a situação da dívida de Minas, estado governado por Itamar Franco, aliado do petista na disputa presidencial.
Ciro temia armadilha mas saiu satisfeito
Na saída, todos os candidatos disseram que a cordialidade foi a tônica dos encontros. Ciro chegou apreensivo, temendo uma armadilha, como disse aos assessores, mas saiu dizendo-se surpreso com a franqueza do presidente. Ciro considerou “cordial, respeitosa e formal” o que chamou de reunião de trabalho.
A assessoria do candidato se apressou a desmentir um suposto mal-estar entre Ciro e Fernando Henrique. Os fotógrafos pediram, mas os dois se recusaram a apertar as mãos diante das câmeras. O cumprimento, segundo a assessoria do candidato, ocorreu logo na entrada. Havia uma apreensão em relação ao reencontro de Ciro com Fernando Henrique, já que os dois estavam rompidos há anos.
— As palavras foram de respeito. Não teve o menor amuo das duas partes — disse Fernando Henrique.
A semelhança da gravata de Ciro com a do ministro da Fazenda, Pedro Malan, chamou a atenção do assessor de imprensa do candidato, Egídio Serpa, que saiu comentando a coincidência.
Mas o encontro mais descontraído foi com Lula. Ao contrário de Ciro, o petista se mostrou à vontade durante sua passagem por Brasília. Durante a reunião com Fernando Henrique, ele tomou dois cafés e brincou com os fotógrafos. Parecia que estava em casa.
— Vocês não vão me deixar fumar uma cigarrilha?
Lula disse que foi uma reunião “respeitosa e amistosa entre o presidente da República e um candidato da oposição”. E procurou demonstrar tranqüilidade e otimismo em relação ao quadro delicado da economia:
— Este país, do tamanho que é, tem jeito!
Sem se irritar com o assédio da imprensa, Lula disse que achou o presidente cordial.
— Temos muito respeito um pelo outro — afirmou.
As declarações de Lula foram complementadas pelo deputado Aloizio Mercadante (SP), um de seus assessores econômicos.
— Não sei por que, mas a gente estava mais feliz do que eles...
Lula saiu da reunião e demorou aproximadamente 25 minutos preparando o pronunciamento que faria à imprensa, ainda no Planalto, dando a impressão de que seu encontro com o presidente fora mais longo.
“O presidente é um excelente diplomata”
Apesar de José Serra, do PSDB, ser o candidato do presidente, o encontro dos dois foi excessivamente técnico, segundo informaram seus acompanhantes. Algumas horas mais tarde, entretanto, Serra retornou ao palácio para se inteirar melhor do resultado dos encontros.
O candidato do PSB, Anthony Garotinho, também considerou o encontro cordial, mas preferiu a ironia.
— O presidente é um excelente diplomata! — provocou.
Garotinho foi o único que não falou no Palácio do Planalto. Optou por um hotel para conversar com os jornalistas. Ele disse que o encontro nada acrescentou e distribuiu um manifesto criticando o novo empréstimo acertado pelo governo com o FMI.
Fernando Henrique elogiou os encontros com os candidatos e disse que o clima foi de compreensão.
— Uma conversa com espírito público, pensando no país. Prova de maturidade política e clareza — disse o presidente ao fim dos encontros.
Ciro se compromete com meta de superávit
Candidato da Frente Trabalhista diz que governo é responsável em parte pela c rise econômica, mas também culpa setores do mercado internacional
BRASÍLIA. A cautela foi a marca da passagem do candidato da Frente Trabalhista (PPS/PTB/PDT) à Presidência, Ciro Gomes, ontem por Brasília. Ciro preferiu não avalizar, enfaticamente, a íntegra do acordo firmado com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Ao deixar a audiência com o presidente Fernando Henrique Cardoso, alegou que precisa conhecer os termos do contrato antes de dar sua opinião definitiva, o que pretende fazer por escrito. Mas se comprometeu publicamente a apoiar a meta de superávit primário para o ano que vem, de 3,75% do Produto Interno Bruto (PIB), cumprir fielmente os contratos e manter a estabilidade da moeda.
— Afirmei ao presidente aquilo que já tem sido minha prática de vida de ex-ministro, ex-governador e ex-prefeito de uma capital: o compromisso, que um possível governo meu praticará, de austeridade fiscal, no limite que a Lei de Diretrizes Orçamentárias já determinou para o ano que vem, de 3,75% do PIB, estrito cumprimento e respeito aos contratos e compromisso definitivo com a estabilidade da moeda — disse, sem se comprometer com a manutenção da meta de superávit para 2004 e 2005.
Ciro disse o que o presidente queria ouvir, ao afirmar que ele não era o único responsável pela crise.
— Na minha compreensão, parte desta crise é responsabilidade do modelo econômico contra o qual me bato há sete anos, parte resultado de incompreensões de setores do mercado internacional sobre as especificidades e potencialidades da economia brasileira. Nessas circunstâncias, compreendo como inevitável a evolução desses entendimentos (com FMI). Não sem lamentar.
Em curto pronunciamento, no Palácio do Planalto, Ciro disse, no entanto, ter pedido que Fernando Henrique autorizasse o ministro da Fazenda, Pedro Malan, e o presidente do Banco Central, Armínio Fraga, a apresentar os documentos oficiais do acordo. Só então, divulgará uma nota conclusiva sobre o assunto. Os documentos ainda não estão prontos.
O encontro foi acompanhado por Roberto Mangabeira Unger e pelo economista Mauro Benevides Filho. Com o presidente, estavam o ministro da Fazenda, Pedro Malan e o presidente do Banco Central, Armínio Fraga.
O candidato mediu as palavras no Planalto e na visita que fez ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco Aurélio de Mello. Durante 25 minutos, tentou desfazer a impressão de que não valoriza as instituições. Definiu-se como um democrata que, se eleito, governará nos termos da Constituição.
Ciro diz que declarações pertencem a um contexto
Para reforçar esse perfil, Ciro chegou a explicar ao ministro seu comportamento num jantar com empresários, em São Paulo, semana passada, quando disse a frase “o mercado que se lixe”. Ele argumentou que suas palavras deveriam ser apreciadas no contexto do evento.
— Vim deixar claro, desde logo, meu respeito pela Justiça. A Justiça é a pedra de toque da democracia e das liberdades e os brasileiros têm grande sede de Justiça — disse Ciro, que deixou o STF prometendo aumentar o número de juízes e culpando a legislação pela morosidade das decisões do Judiciário.
Entre as audiências com os chefes dos poderes Executivo e Judiciário, Ciro esteve na Embaixada da Alemanha, onde almoçou, e na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Lula apóia mas leva sugestões de mudança
Oposicionista, que já garantira apoio ao acordo do país com o Fundo Monetário Internacional, leva lista de sugestões para evitar um aumento do quadro recessivo
BRASÍLIA. Para não entrar no Planalto de mãos vazias, levando apenas seu apoio ao acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) — já garantido em nota do partido divulgada semana passada — o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, levou ontem ao presidente Fernando Henrique uma lista de sugestões para o governo enfrentar a crise. Lula propõe desde a renovação da frota nacional como forma de reativar a indústria automobilística e o setor de produção de açúcar e álcool até o acompanhamento de preços de produtos de consumo de massa:
— O governo deve assegurar que não haja abuso nos preços de produtos de consumo de massa. Além do gás, o pão e alimentos essenciais devem ser protegidos. Seria oportuna também a expansão do seguro-desemprego frente à possibilidade de aprofundamento do quadro recessivo.
Duas medidas já estavam tomadas
Fernando Henrique adiantou que algumas das sugestões já estavam sendo encaminhadas pelo governo, como, por exemplo, o pedido de reabertura das linhas de crédito para os exportadores. O presidente anunciou que o Banco Central vai leiloar hoje US$ 2 bilhões de crédito só para exportação. Ele revelou ainda que o ministro da Fazenda, Pedro Malan, e o presidente do Banco Central, Armínio Fraga, estão com viagem marcada para os Estados Unidos e a Europa com o objetivo de iniciar a ofensiva, sugerida pelo PT, para garantir a reabertura de linhas de financiamento internacionais paras as empresas endividadas em dólar e para o comércio exterior.
Num documento de quatro páginas entregue a Fernando Henrique e depois lido pelo candidato, Lula ressaltou que o acordo com o FMI não é suficiente para conter o clima de instabilidade e que o país não pode esperar a posse do novo presidente para agir:
— Precisamos vencer a crise atacando as causas, entre elas a falta de crescimento sustentado e os juros altos. Quero reiterar que, se vencermos as eleições, começaremos a mudar a política econômica desde o primeiro dia. Tal compromisso é sagrado.
Debate de pontos desconhecidos
Acompanharam o encontro o presidente do PT, deputado José Dirceu (SP), o coordenador do programa de governo, Antonio Palocci, e o deputado Aloizio Mercadante (SP). A reunião serviu para detalhar alguns pontos até então desconhecidos do acordo, como o sistema de bandas para as metas de inflação. Segundo Mercadante, é uma inovação que o PT já defendia:
— Ficou estabelecido que toda vez que houver uma mudança de uma banda larga para uma estreita, isso deverá ser comunicado ao Fundo.
De acordo com Mercadante, Fernando Henrique se comprometeu a estudar o pedido do PT para que a Petrobras reoriente seus investimentos externos para dentro do país. Mas o presidente lembrou que, dos três contratos para instalação de plataformas no exterior, um já estava assinado e não poderia ser revisto.
Serra sugere quatro medidas de emergência
Candidato do PSDB propõe até uso das reservas cambiais, mas presidente do Banco Central, Armínio Fraga, diz que não há necessidade, porque prevê novos investimentos
BRASÍLIA. Último a participar da rodada de encontros com o presidente Fernando Henrique Cardoso, o candidato do PSDB à Presidência, José Serra, reafirmou seu apoio incondicional ao acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). No fim do encontro, ressaltou o fato de ter sugerido ao governo quatro medidas de impacto imediato na economia: intervenção no abastecimento de trigo para manter sob controle o preço do pãozinho; aprovação do projeto que prevê o fim da cumulatividade do PIS; extensão do Refis (programa de financiamento das dívidas das empresas com a União); e intensificação de ações para aumentar as linhas de financiamento para a exportação. Nesse item, acha que até as reservas cambiais podem ser usadas.
— Levantei o problema dos preços. Todos registraram minha preocupação com o gás de cozinha, que o governo equacionou. Hoje falei do problema do trigo, cujos preços estão subindo face à desvalorização da moeda. Pedi ao presidente e ao ministro (da Fazenda, Pedro) Malan que estudassem uma forma para que o aumento do preço do trigo não se reflita no preço do pão. E o ministro disse que faria isso nas próximas horas e nos próximos dias — afirmou o can didato.
Malan ouviu as propostas mas não garantiu que seriam atendidas. Mais tarde, em entrevista, o presidente disse que as sugestões apresentadas pelos candidatos ainda seriam analisadas. Especificamente sobre o controle do preço do trigo, o presidente disse:
— Temos que examinar se há algum mecanismo que pode ser implementado nesse sentido.
O encontro foi acompanhado pelos presidentes do PSDB, José Aníbal, e do PMDB, Michel Temer, e pelo coordenador da campanha, Pimenta da Veiga. Durante a reunião, Fernando Henrique argumentou que a votação do projeto do PIS dependia da mobilização do Congresso. Aníbal e Temer, na mesma hora, disseram que dificilmente haverá quórum para votar a proposta durante o esforço concentrado da próxima semana. Só depois disso é que o governo passará a considerar a possibilidade de editar uma medida provisória.
Garotinho sobre o encontro: ‘Só fiquei ouvindo’
BRASÍLIA. O candidato do PSB à Presidência, Anthony Garotinho, desembarcou ontem em Brasília vendendo disposição para criticar o governo. Mas calou-se diante do presidente Fernando Henrique. No encontro, coube ao vice-presidente do partido, Roberto Amaral, atacar a política econômica.
Garotinho preferiu entregar uma carta ao presidente em que resume as críticas ao governo e dá sugestões para sair da crise, como a necessidade de uma reforma tributária.
Só depois de deixar o Palácio do Planalto é que Garotinho partiu para a briga. Primeiro em um manifesto e, mais tarde, rodeado de empresários evangélicos, em uma entrevista coletiva. Disse que o encontro não adiantou nada.
— Só fiquei ouvindo, porque eu tenho educação — disse Garotinho.
Terceiro candidato a ser recebido pelo presidente, ele contou que o encontro foi agradável.
Segundo o candidato, o momento mais tenso da conversa ocorreu quando o presidente do Banco Central, Armínio Fraga, teria atribuído a especuladores eleitorais a crise econômica que o país atravessa. E propôs um pacto entre governo e oposições para frear esse processo. O candidato a vice na chapa do PSB, deputado José Antônio Almeida (MA), condenou a proposta.
— Foi uma atitude antidemocrática e autoritária da parte deles. Que democracia é essa em que não pode haver mudança? — indagou Almeida.
Segundo Garotinho, o próprio Fernando Henrique teria demonstrado preocupação com especuladores eleitorais. Ainda assim, o candidato manteve-se calado e só rebateu a tese horas depois, quando disse não acreditar que a crise esteja relacionada à disputa eleitoral.
De acordo com Garotinho, ele só fez duas intervenções no encontro. A primeira foi uma pergunta sobre as exigências do Fundo Monetário Internacional (FMI) para fechar o acordo. Fernando Henrique teria respondido que a única exigência foi o superávit de 3,75% do Produto Interno Bruto (PIB). Garotinho disse que, se for eleito, não terá problemas em cumprir esse item. A outra pergunta foi dirigida a Armínio Fraga, sobre o uso de reservas financeiras. Fraga respondeu que isso dependerá do mercado.
— Não podemos ficar refém do mercado — protestou Garotinho, depois do encontro.
Apesar das críticas, Garotinho considerou que o acordo com o FMI era a única alternativa que o governo tinha, mas ressaltou que a situação poderia ter sido evitada se a política econômica do governo tivesse tomado outro rumo. Ele condenou as bases do acordo e, no manifesto, enfatizou que não tem qualquer compromisso com essa política econômica: "Nenhum acordo firmado pela atual administração, em decorrência de sua desastrosa política econômica, pode comprometer o futuro governo, se o povo brasileiro escolher um candidato de oposição", disse Garotinho no manifesto.
Artigos
No fio da navalha
Jorge Darze
O momento atual mobiliza todos nós a debater o futuro do país, e as próximas eleições de outubro nos impõem a responsabilidade de eleger os futuros governantes. Hoje, mais do que nunca é preciso identificar entre os candidatos o que representa a melhor alternativa para a tão esperada mudança.
Recentemente, a imprensa divulgou matéria apresentando os relatórios de Desenvolvimento Humano de 2002 do programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Mais uma vez passamos por um grande constrangimento ao saber que o Brasil ocupa a 4 classificação entre os países mais desiguais do mundo, só perdendo para as três mais pobres nações africanas.
Na verdade, já sentimos esse resultado na pele há muitos anos, inclusive com as estatísticas denunciando as conseqüências dessa perversa realidade, principalmente no campo social.
Mundialmente, somos também o 2 colocado em número de desempregados, ficando atrás apenas da Índia.
Isso demonstra que embora o Brasil esteja muito bem colocado no ranking das economias mundiais, sua riqueza lamentavelmente não se traduz no esperado bem estar da população. Isto se explica na medida em que as nossas autoridades têm seguido fielmente as diretrizes das instituições financeiras internacionais, fazendo com que as políticas governamentais se distanciem cada vez mais dos interesses do povo.
É por essas e outras razões que o sistema público de saúde se tornou o “fim de linha” para a maioria da população, que adoece cada vez mais e não tem acesso à cidadania. Não é à toa que somos hoje o 22 país no ranking dos piores em casos de tuberculose, e esse grupo concentra 80% dos 8,7 milhões de casos da doença no planeta. Até somos criticados em relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o avanço da doença no Brasil e as estratégias de combate a ela.
O que mais nos preocupa é saber que essa rede de saúde não está preparada para sua enorme responsabilidade social, na medida em que esse sistema tem funcionado como uma espécie de esgoto da sociedade, para onde deságua uma grande parte das nossas mazelas. O pior é que esse quadro de degradação é crescente, e nele não identificamos a presença do poder público, que contribuiria para a superação das dificuldades existentes. Ao contrário, a omissão é flagrante e criminosa, ocasionando sofrimento e mortes que poderiam ser evitadas.
O município do Rio de Janeiro, onde se encontra hoje a maior rede pública de saúde do Brasil, e que poderia ser a vitrine do sistema, representa na verdade um péssimo exemplo ao oferecer assistência das mais precárias, apesar de possuir uma equipe de médicos competentes, embora mal remunerados. Esses profissionais, que exercem com dignidade e respeito a sua profissão tentando dar o melhor de si à população, vivem uma crise ética sem precedentes. Preparados para salvar vidas, muitas vezes assistem impotentes ao sofrimento e à morte dos seus pacientes.
O excesso de demanda, gerando filas intermináveis, principalmente nas emergências, tem revelado um sistema carente de prevenção das doenças, onde o hospital tem sido a única opção de atendimento que geralmente envolve casos graves. Não podemos esquecer que a violência, que expressa o desajuste da nossa sociedade, também representa uma importante causa desse crescimento.
São muitas as denúncias feitas, e não é preciso ser um especialista no assunto para reconhecer que a crise na assistência é extremamente preocupante. Prova disso é que um médico do Hospital Municipal Souza Aguiar é obrigado a receber quase 200 pacientes num turno de 12 horas de trabalho no pronto atendimento, o que corresponde a quase 17 pessoas por hora. Isso representa quatro vezes o que a OMS estabelece.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado aos plantões de todos os hospitais públicos, que são agravados pela chegada dos casos mais graves, inclusive com risco de vida. Equipamentos sucateados, falta de medicamentos, déficit de pessoal e insumos básicos insuficiente s e de baixa qualidade são outros ingredientes da mesma crise.
A municipalização dos hospitais federais, que poderia representar a solução para grande parte dos problemas existentes, não passou de uma grande frustração. Na verdade, este foi um ótimo negócio para a prefeitura, já que a injeção das verbas decorrentes dos repasses efetuados pelo Ministério da Saúde engordou substancialmente o caixa do governo. A situação quase falimentar dessas unidades, apesar da chegada dos recursos financeiros, não é explicada e exige uma urgente auditoria.
A crise manifestada em hospitais como o da Piedade, da Lagoa, de Ipanema, do Andaraí e de Jacarepaguá, entre outros, ocupa hoje as páginas dos nossos jornais e faz sofrer os seus pacientes, fato inadmissível até alguns anos atrás.
O Código de Ética Médica, que normatiza o exercício profissional estabelecendo direitos e deveres, parece ser mais uma das leis que não saíram do papel, a não ser na hora de julgar e condenar o médico diante de um suposto mal resultado. Sabemos que entre nós existem os maus profissionais, mas com certeza, a maioria é séria e competente. É preciso tratar essa grave doença e exigir o cumprimento desse Código em toda a sua abrangência, pois o documento não só expressa os direitos e deveres do médico, como também é um importante instrumento de defesa da boa assistência à população.
A nossa responsabilidade e o compromisso com os usuários do sistema público de saúde têm se manifestado através da nossa perseverança para continuar assistindo à população. Não sabemos por quanto tempo mais suportaremos tal desafio.
Colunistas
PANORAMA POLÍTICO - Tereza Cruvinel
O rito e a mensagem
Para usar a expressão de Ciro Gomes, todos os candidatos, inclusive ele, saíram do Planalto “bem entreguezinhos”. Ponto, portanto, para o atual presidente, que conseguiu fazer limonada com o limão amargo de sua herança econômica. Lula e Serra trataram de levar propostas para a emergência do país, além do apoio já externado ao acordo com o FMI. Ciro também fez os compromissos essenciais, mesmo deixando aberta a porta da retórica radical ao pedir para ler os termos do acordo antes de dar a palavra final.
Mas deu-se por satisfeito o presidente com sua promessa de realizar o superávit primário de 3,75% do PIB no ano que vem, preservar a austeridade fiscal e honrar os contratos do país, temas sobre os quais o candidato e sua assessoria vinham falando de forma errática ou ambivalente. Com o ritual em si, Fernando Henrique quis dizer aos investidores e à comunidade internacional que o Brasil viverá uma transição, que a política econômica sofrerá mudanças inexoráveis, mas que todos os candidatos oferecem garantias que não justificam desconfianças e turbulências. Disse-o. Agora, é com o mercado.
O encontro com Ciro, tido como o mais difícil, saiu melhor do que o esperado. O próprio candidato surpreendeu interlocutores, mais tarde, louvando a cordialidade do anfitrião. Mais circunspecto do que os demais, rendeu-se como os outros aos compromissos inevitáveis, ainda que isso venha a lhe custar parte da retórica.
Lula manteve o discurso e a estratégia da moderação com que busca mostrar-se mais confiável e previsível, já usada quando Roseana, Serra ou Garotinho viveram suas horas de crescimento nas pesquisas. Dando como já resolvida, de sua parte, a questão do acordo com o FMI, que apoiou em nota oficial no dia seguinte ao anúncio, tratou de diferenciar-se levando propostas de emergência que foram previamente discutidas no domingo, segundo o deputado Aloizio Mercadante, com empresários, investidores, economistas não-petistas e outras centrais sindicais além da CUT. Algumas delas, como a liberação de créditos para o setor exportador, o governo até já adota. Em sua entrevista, o presidente chegou a dizer que eram estranhas ao objeto do encontro, mas acabou comentando-as. Lula e Serra, que também sugeriu quatro medidas imediatas, conseguiram, pois, ampliar a agenda do encontro, num esforço para se mostrarem ativos e com propostas.
Talvez tenha tido também Lula o objetivo de avançar na idéia de uma transição que se antecipe à data da posse, repetindo que a crise não pode esperar e que está disposto a colaborar com o governo. José Dirceu, presidente do PT, elogiou a iniciativa de Fernando Henrique de criar 51 cargos de confiança a serem ocupados por representantes do presidente eleito. Iniciativa que pode propiciar uma coabitação entre o atual e o futuro governo nos dois meses finais deste ano, qualquer que seja o ganhador.
O mercado pode até não se dar por satisfeito com as garantias, mas foi informado de que haverá aqui uma transição responsável e solidária.
Garotinho foi cordato na conversa e rebelde na entrevista, falando acima do tom dos demais contra o governo e a política econômica. Não surpreendeu. Nem era ele o alvo.Ciro Gomes e sua equipe fizeram um pacto. Daqui para a frente, precisam afinar o discurso. As contradições já produziram seus custos políticos, ainda que não eleitorais.
FH e Lula a sós
O tempo regulamentar de uma hora havia se esgotado mas o próximo candidato a ser recebido, Garotinho, estava atrasado. Problemas com o vôo que o trazia do Rio. Foi quando o presidente Fernando Henrique tomou a iniciativa de convidar Lula para passarem, apenas os dois, a uma sala contígua ao gabinete presidencial. Lá ficaram dez minutos, interrompidos pela informação de que Garotinho estava chegando ao Planalto. Quando Lula e sua comitiva chegaram ao Salão Leste para falar com a imprensa, passavam 15 minutos das 13h. Mas Lula ontem deixou até mesmo seus auxiliares mais próximos curiosos sobre essa parte da conversa.
No fim, mais ainda com todos no gabinete, Lula louvou a iniciativa do encontro e fez uma metáfora que agradou ao anfitrião:
— Presidente, tenho comparado sua ação à do Didi, que, depois de levar um gol, pôs a bola no gramado e desafiou o time a reagir. E ganhamos o jogo. Nós não vamos quebrar, como tenho dito.
Fernando Henrique devolveu elogiando a fala final de Lula no debate televisivo do dia 4, também na linha de valorizar as potencialidades do país, o que não se tem feito.
— Por exemplo, a safra de cem milhões de toneladas, que tratamos como uma banalidade — disse.
Rosa chá
Com 44% de preferência na disputa pelo governo do Rio, segundo pesquisa Datafolha, Rosinha Garotinho estréia amanhã no programa eleitoral com três decisões: não aceitar provocações de adversários, concentrar-se na divulgação de seu programa de governo e estadualizar a campanha. Dela, diz um correligionário, ninguém ouvirá ataques ao governo federal nem ao presidente Fernando Henrique.
Editorial
APENAS O INÍCIO
O encontro do presidente Fernando Henrique Cardoso com os principais candidatos à sua sucessão já garante a inscrição da campanha eleitoral de 2002 na História. Até agora, tanto o presidente quanto os candidatos de oposição — deduzindo-se inevitáveis discursos feitos para a platéia — têm demonstrado uma maturidade à altura de um país que, recém-saído de longo regime ditatorial, demitiu um presidente dentro dos ritos da lei.
Agora, o desafio é outro — até mesmo maior que aquele. Longe de serem consensuais, as bases do acordo firmado com o FMI precisam ser apoiadas com clareza pelos candidatos, para que se evite a desestabilização financeira do país na transição de governo.
Os encontros de ontem serviram para que os dois principais candidatos de oposição, Luiz Inácio Lula da Silva e Ciro Gomes, reafirmassem a inevitabilidade desse acordo. Vale dizer, curvaram-se de fato à necessidade de o país perseguir a meta de um superávit primário de 3,75% do Produto Interno Bruto até 2005 (o C ongresso já havia incluído esse objetivo no orçamento do ano que vem). Sem esse superávit — a diferença entre receitas e despesas públicas, excluindo os juros da dívida interna — o endividamento oficial tende a ficar fora de controle.
Os mais importantes candidatos oposicionistas dão sinais de entenderem a ineficácia de bravatas diante de quadros econômicos como o atual. A Argentina serve de exemplo. Pois lá o sucessor de Fernando De la Rúa, o peronista (à moda antiga) Adolfo Rodríguez Saá, assumiu e decretou a moratória interna e externa como grande remédio salvador. Não completou uma semana no cargo.
Aos encontros de ontem deve seguir-se uma operação política no Congresso, onde projetos precisam ser aprovados para garantir a estabilidade fiscal ao próximo presidente . Se nada for feito, o sucessor de FH terá uma receita tributária menor em R$ 14 bilhões, sem falar no problema da carga de impostos sobre as exportações. O diálogo inaugurado ontem precisa ter sido apenas o início.
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08/20/2002
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