Flávio Arns: "Se as leis forem cumpridas, o Brasil será um país melhor"
No Brasil, há cerca de 25 milhões de portadores de deficiência.Para participar do mercado de trabalho, freqüentar escolas, ter acesso a serviços de saúde e transporte coletivo adequado, essas pessoas dispõem de um conjunto de leis ."Essas leis são boas e justas. O que falta é que sejam cumpridas. Se as leis forem cumpridas, o Brasil será um país muito melhor", diz o senador Flávio Arns (PT-PR), relator do Estatuto da Pessoa com Deficiência, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS).
A proposta será apresentada, neste mês, à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) na forma de substitutivo do relator. Em entrevista exclusiva à Agência Senado, Flávio Arns revela que o substitutivo ao projeto do Estatuto propõe mecanismos para fazer cumprir a lei, a exemplo do Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente.
Com a aprovação da proposta, normas que atualmente estão em vigor na forma de decreto serão transformadas em lei. Flávio Arns fala ainda sobre o exemplo que o Senado e a Câmara dos Deputados oferecem para todo o Brasil no cumprimento das leis de acessibilidade.
O senador tem uma longa história de participação no movimento pelos direitos da pessoa com deficiência, iniciada nas Associações de Pais e Amigos de Excepcionais (APAEs) no final da década de 70. Um dos seus dois filhos, que nasceu em 1975, é portador de deficiência mental e física.
Nascido em 09 de novembro de 1950 em Curitiba (PR), Flávio José Arns saiu do Mestrado em Letras na Universidade Federal do Paraná, em 1977, para o PhD em Linguagem e Comportamento pela Universidade Northwestern, no estado de Illinois, ao Norte de Chicago (Estados Unidos).
- Depois desses estudos todos, comecei a me dedicar muito à educação especial, à questão da educação da pessoa com deficiência, muito em função do fato de que um dos meus filhos é uma pessoa com deficiência mental associada com deficiência física. Na família, todos nos dedicamos muito a essas questões dos direitos da pessoa com deficiência - declarou Flávio Arns.
Em 1983, graças a esse trabalho, Flávio Arns foi convidado pelo então governador José Richa para dirigir o Departamento de Educação Especial da Secretaria de Educação do Paraná.Terminado o governo Richa, Flávio Arns foi mantido na função pelo governador Alvaro Dias. Em 1990, Arns deixou o cargo para disputar o primeiro mandato de deputado federal pelo PSDB.
Em 2002, ao final do terceiro mandato de deputado dedicado principalmente à causa das pessoas portadoras de deficiência, Flávio Arns foi convidado pelo PT para disputar o mandato de senador pelo Paraná. Foi eleito com 1.995.602 votos. De 2003 a 2004, Arns presidiu o Conselho Deliberativo do Comitê Paraolímpico Brasileiro.
Entre outras funções em entidades de defesa dos direitos das pessoas com deficiência, Flávio Arns foi presidente da Federação Nacional das APAES e vice-presidente da Inclusion Internacional (Liga Internacional das Pessoas Portadoras de Deficiência Mental (1997-1999).
P - O senhor defendeu em seminário na Comunidade Virtual do Poder Legislativo (Interlergis) que as Assembléias Legislativas e as Câmaras de Vereadores sigam o exemplo do Senado e da Câmara dos Deputados na questão da acessibilidade para as pessoas portadoras de deficiência. Por que?
R - Sempre afirmo que para nós, no Congresso, nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores, o mais natural seria que cumpríssemos as leis que elaboramos. No Congresso Nacional, em termos de acessibilidade das pessoas com deficiência, elaboramos leis muito boas, as leis 10.048 e 10.098, de 2000, regulamentadas pelo decreto 5296, de 2004.
P -O senhor poderia explicar como o Senado dá exemplo no cumprimento dessas leis?
R - A primeira dessas leis dá prioridade de atendimento às pessoas com deficiências; a segunda estabelece normas gerais e critérios básicos para promoção da acessibilidade. A Comissão de Assuntos Sociais do Senado constituiu uma Subcomissão Permanente para Assuntos da Pessoa com Deficiência. Essa subcomissão passou a reunir pessoas de todas as áreas de deficiência - visual, auditiva, física, etc. Desse trabalho saiu um diagnóstico das necessidades das pessoas com deficiência que circulam e trabalham aqui. Daí surgiu a Comissão de Acessibilidade formada por representantes de todos os setores do Senado. Essa comissão elaborou o Programa de Acessibilidade com um cronograma de mudanças para tornar o Senado totalmente acessível, de acordo com a lei.
P - O que o Senado implantou de fato nesse campo?
R - Foram construídas rampas de acesso, adquiridos pequenos carros para o deslocamento nos corredores do Senado das pessoas com dificuldades motoras. Para essas pessoas, também há previsão de instalação de elevadores que facilitarão o acesso às galerias do Plenário. Foram feitas mudanças nos programas de televisão e nas páginas do Senado na Internet. Essas são algumas das medidas.
P - Isso é resultado do trabalho da Comissão de Acessibilidade. O que mais é necessário?
P - Existe ainda o treinamento e formação dos funcionários para atender as pessoas com deficiência que visitam ou trabalham no Senado Federal. O Senado tem pessoas com treinamento especial para atender uma pessoa surda, utilizando a língua de sinais, ou para conduzir uma pessoa cega nos ambientes do Senado Federal. Há também serviços para as pessoas com dificuldades motoras.
P - Como é resolvida a questão das oportunidades no mercado de trabalho?
R - Além das quotas nos concursos públicos, existe também o mercado de trabalho nas empresas terceirizadas. O Decreto 3298 de 1999 determina que as empresas com mais de 200 funcionários reservem um percentual de vagas para as pessoas com deficiência. Nessa área o Senado também dá exemplo.
P - O senhor tem notícia de alguma Assembléia Legislativa e Câmara de Vereadores que seguiu esse exemplo?
R - A gente tem notícia de esforços individuais, porque sempre há um deputado ou deputada, vereador ou vereadora portador de deficiência. Penso que nosso exemplo levará a um movimento para que todas as casas legislativas se dediquem a isso.Nós não podemos permitir que a lei não seja cumprida.
P - Qual o papel das prefeituras nesse movimento?
R - Todos precisam se mobilizar para que as leis sejam cumpridas. Nenhum prédio deve ser construído fora dos parâmetros dessa lei. Se qualquer prefeitura vai aprovar um projeto de construção de um prédio, esse projeto somente deve ser aprovado se estiver dentro das normas adequadas definidas pela lei de acessibilidade. Se as empresas vão renovar a frota de ônibus para transporte coletivo, que se encomende o ônibus adaptado. Se a prefeitura vai fazer uma calçada, um passeio público, que faça dentro das normas, com material antiderrapante, com as placas com altura certa para evitar choques das pessoas com deficiência visual.È mais fácil fazer o correto do que consertar uma coisa já feita errada.
P - Qual o resultado dos debates sobre o Estatuto da Pessoa com Deficiência no seminário nacional do Programa Interlegis realizado em março?
R - Fruto desses debates temos um substitutivo com idéias novas para o projeto do Estatuto. Vamos apresentá-lo à Comissão de Direitos Humanos ainda neste mês de maio. Esperamos chegar a uma convergência em relação ao novo texto do Estatuto. Se houver um entendimento de que o projeto está bom, isso apressa o processo, não só no Senado, mas posteriormente na Câmara dos Deputados.
P - Se as leis em vigor são boas, por que o Estatuto?
R - Essa pergunta foi a razão de um grande debate no seminário e na comissão. As leis já aprovadas para a tender às necessidades das pessoas com deficiência no Brasil, apesar de algumas lacunas, são no geral muito boas, justas e corretas. O que falta é que sejam cumpridas. Se a lei for cumprida, o Brasil será um país muito melhor porque está quase tudo previsto para atender às necessidades das pessoas com deficiência.
P - Então, qual o papel do Estatuto neste contexto? Não será repetitivo?
R - As duas principais leis que tratam dessa questão são regulamentadas pelo Decreto nº 5296, de 2004. Muitas das normas nesse campo em vigor, no Brasil, foram editadas como decretos e um decreto não obriga o cidadão a agir. Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa a não ser em função de lei, não por decreto. Então é importante consolidar e incorporar ao Estatuto, que é uma lei, essas normas boas e justas que estão em vigor por decreto.
P - Isso justifica a proposta do Estatuto?
R - Há um outro aspecto importante: o Estatuto cria mecanismos mais ágeis para fazer com que as essas normassejam cumpridas.
P - O senhor poderia dar exemplo de áreas onde a lei não está sendo cumprida?
R - A lei de acessibilidade, por exemplo, determina que toda frota de ônibus tem que ser renovada no prazo de dez anos e que, nessa renovação, dez por cento da frota deve estar adaptada para permitir o acesso de pessoas com deficiência. Essa norma não vem sendo cumprida. Isso pode ser observado até na capital, em Brasília, onde não há transporte coletivo adequado.
P - Que mecanismo do Estatuto forçará o cumprimento da lei?
R - Para todos os fatos que envolvem os direitos da pessoa com deficiência haverá previsão de punições pelo não cumprimento da lei. Se o direito ao transporte, à educação, à assistência médica não for garantido, haverá uma pena. O não cumprimento da lei implica uma pena ou de reclusão ou de multa administrativa.
P - Essas multas terão algum peso para uma empresa de ônibus, por exemplo?
R - Quando uma empresa é obrigada a pagar uma multa por não cumprir uma lei que garante direitos à pessoa com deficiência, é um grande prejuízo na imagem da responsabilidade social dessa empresa. Nessa estrutura para forçar o cumprimento da lei, serão criados, no Estatuto, os Conselhos da Pessoa com Deficiência com função semelhante ao Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente.
P - Qual o papel desses conselhos?
R - O Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente pode exigir de imediato iniciativas administrativas do estado e da prefeitura pelo não- cumprimento de um determinado aspecto da lei, como a necessidade de ônibus para transportar as crianças portadoras de deficiência, por exemplo.
P - Como surgiu a idéia desses conselhos?
R - O representante do Ministério Publico sugeriu que fossem criados mecanismos mais ágeis para assegurar medidas administrativas de efeito imediato. E isso foi conquistado no caso das crianças e adolescentes com a criação dos Conselhos Tutelares nos municípios. O Conselho Tutelar pode chegar numa casa de jogos, por exemplo, e exigir que as crianças, os menores de dezoito anos, não entrem naquele local. Ou decidir que uma criança abandonada seja atendida, proteger uma criança que esteja sofrendo maus tratos por parte até dos pais ou de qualquer pessoa.
P - Serão conselhos tutelares das pessoas com deficiência?
R - Não, no caso das pessoas com deficiência, esses conselhos criados na esfera municipal não serão tutelares porque não há necessariamente tutela das pessoas com deficiência, pois muitas pessoas com deficiência têm condições de ter todo o arbítrio para tomar suas decisões.
P - Como esses conselhos farão cumprir a lei?
R - A lei concede à pessoa com deficiência o direito ao serviço de saúde e ao medicamento, por exemplo. Há pessoas com deficiência que, às vezes, podem precisar, por exemplo, de um medicamento e não o encontram por falta de condições financeiras. É uma coisa corriqueira que alguém tem que resolver de imediato, sem entrar com um processo na Justiça. O conselho terá poderes para resolver coisas como essa.
P - Além de consolidar as normas já existentes e criar esses conselhos, o substitutivo que o senhor prepara apresenta mais alguma novidade na área da acessibilidade?
R - Eu diria que o Estatuto apresenta uma visão geral dos direitos da pessoa com deficiência. Mas há lacunas em áreas específicas. Há, por exemplo, o caso de pessoas com deficiência que têm direito a pensão do pai e ou da mãe depois da morte de um desses. Mas pela lei atual, se essa pessoa, o filho, arranjar um emprego, mesmo que dure apenas dois ou três meses, ela perde o direito a pensão.E isso dificulta a inserção da pessoa com deficiência no trabalho, porque, com a instabilidade do emprego, a pessoa, para não perder a pensão, prefere não arriscar o mercado de trabalho.
P - Qual a solução do Estatuto?
R - O que precisa ser feito é garantir o direito a pensão caso a pessoa com deficiência esteja desempregada. Precisamos criar uma norma para estimular a inserção dessas pessoas no mercado de trabalho, mesmo que temporária, e evitar que a pessoa fique sem a pensão e sem o emprego ao mesmo tempo. Existem alternativas propostas no projeto do Estatuto com base em experiência de países europeus em que a pessoa, perdendo o emprego, volta à condição anterior de beneficiário da pensão.
P - O doente mental está protegido no Estatuto da Pessoa com Deficiência?
R - São duas áreas distintas: a pessoa com deficiência que pode ser uma deficiência física, mental ou sensorial, e a pessoa que tem transtornos mentais, psíquicos, que não são considerados como deficiências mentais. Cada caso é julgado especificamente do ponto de vista da lei que caracteriza a deficiência.
P - O que é a deficiência mental no Estatuto?
R - Há três critérios para a pessoa ser considerada com deficiência mental. Primeiro, rebaixamento intelectual significativo. Segundo, a deficiência mental tem que ocorrer no período de desenvolvimento da pessoa desde o nascimento até o final da adolescência, aos 20 ou 21 anos. Terceiro, que esses transtornos causem problemas no comportamento adaptativo, na socialização. A pessoa não consegue atender às demandas do seu meio.12/05/2006
Agência Senado
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