José Afonso da Silva: "O mais dramático na Constituinte foi a rebelião dos conservadores"



Celebrado como um dos mais respeitados assessores jurídicos da Assembléia Nacional Constituinte e, hoje, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP), o constitucionalista José Afonso da Silva identifica na rebelião de parlamentares conservadores que deu origem ao Centrão a experiência mais dramática vivida naquele momento histórico da vida nacional. Na celebração dos 20 anos da Carta Magna, ele registra, em entrevista à Agência Senado, esses e outros fatos do período de elaboração da Constituição.

Agência Senado- Qual foi o momento crucial dos trabalhos da Constituinte, o momento em que o senhor achou que tudo malograria?

José Afonso - O momento em que só ficou funcionando a Comissão de Sistematização, com seus cerca de 70 membros, enquanto o restante dos integrantes da {Assembléia Nacional] Constituinte nada tinham que fazer, e, por isso, começaram a ficar muito inquietos, gerando grupos especiais para preparar projetos de Constituição por sua conta. Eu via nessa situação uma crise potencial, que, na verdade, veio pela rebelião dos conservadores que criaram o "Centrão". Este foi um momento crucial.

Agência Senado- Nesse momento, então, o senhor achou que não haveria desfecho possível...

José Afonso - Foi realmente dramática essa rebelião dos conservadores que resultou no Centrão. Aí se delineou um sério impasse para a Constituinte. Apesar disso, não me passou nunca pela cabeça que não haveria desfecho para ela. Sempre tive plena consciência de que já vivíamos num impasse cuja solução dependia de a Constituinte concluir, com êxito, seu trabalho de elaboração de uma nova Constituição. Ficaríamos num beco sem saída se ela encerrasse seus trabalhos sem resultado positivo - uma nova Constituição, qualquer que fosse. Ademais, os homens mais responsáveis pela condução da Constituinte, especialmente Ulysses Guimarães, Mário Covas e também, do lado dos conservadores, Jarbas Passarinho e Virgílio Távora, a meu ver, detinham habilidade suficiente para, mediante negociação e outros processos próprios da vida parlamentar, não deixar que o impasse gerasse o fracasso da Constituinte.

Agência Senado- Mas, afinal, não foi bom o Centrão ter existido para que a Constituição refletisse todas as correntes políticas do país?

José Afonso - A resposta positiva a esta questão corresponderia a afirmar que a Constituição reflete todas as correntes políticas. Penso que a Constituição é razoavelmente equilibrada. Acho que o Centrão contribuiu para torná-la mais conservadora. Mas para refletir, efetivamente, a paisagem social do país, a ordem econômica por ela estabelecida precisava ser mais progressista para contemplar os interesses da maioria da população pobre do país. Sua ordem econômica é basicamente capitalista e conservadora. A desigualdade social do país é alarmante. Seus dez por cento de ricos dominam bem mais do que cinqüenta por cento da renda nacional. a luta dos progressistas na Constituinte foi para criar um país mais justo, inclusive por via de uma reforma agrária profunda. Isso não foi possível. A maioria da Constituinte era conservadora, não obstante isso ela acabou produzindo uma Constituição razoavelmente progressista. A meu ver, é por isso que ela está conseguindo realizar razoável equilíbrio da vida nacional, o que nenhuma outra Constituição republicana conseguiu.

Agência Senado- O excesso de conquistas sociais seria mesmo capaz de deixar o país ingovernável, como declarou o presidente da República à época?

José Afonso - José Sarney nunca aceitou a Constituição, que não lhe agrada, como não agrada à elite do país à qual ele pertence. Ela é muito progressista para o gosto e os interesses dessa elite. A prova de que ela não deixaria o país ingovernável é que ela está completando vinte anos de existência e o país continua a ser governado, sem dúvida, de forma melhor do que antes. Ele disse isso, quando ainda presidente da República, e o disse muito em função da redistribuição das rendas entre as entidades federativas. Antes, estados e municípios viviam à míngua e de chapéu na mão, pedindo dinheiro ao governo federal, porque o centralismo financeiro dava quase tudo à União e quase nada a estados e municípios. Ora, ter os estados e municípios nas mãos era uma forma também de centralismo do poder nas mãos do governo federal. A redistribuição feita pela Constituição quebrou um pouco esse domínio. Como presidente da República, ele deve ter sentido isso.Numa recente palestra sobre reforma política, eu disse que o presidencialismo monárquico e personalista tem sido fonte geradora de problemas para a governabilidade democrática. De fato, as relações Executivo-Legislativo são, no presidencialismo brasileiro, um complicador da governabilidade. O parlamentarismo parece equilibrar melhor as exigências de governabilidade e de representatividade, porque a [condição de] harmonia e independência dos Poderes se converte num sistema de cooperação mútua e de responsabilidades recíprocas, de sorte que os conflitos políticos encontram mecanismos de solução eficazes e que confluem sempre para uma consulta ao povo, que é efetivamente o árbitro que vai, em última instância, resolver qualquer crise de poder. Se existe questão de governabilidade no Brasil, ela se deve mais à estrutura arcaica de poder do que à Constituição.

Agência Senado- O que aconteceria se a Constituinte tivesse criado um programa de bem-estar social como o Bolsa-Família? A Fiesp teria arrancado os cabelos?

José Afonso - Esta é uma mera hipótese. Assim mesmo, não creio que houvesse essa reação da Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo]. Bolsa-Família, por mais importante que seja, não é uma medida revolucionária e, na forma que ela existe hoje, não interferiria diretamente na vida empresarial, porque os recursos que a sustentam são orçamentários e sequer importam em aumento de tributos, para onerar mais o setor empresarial. De qualquer forma, dificilmente a proposta passaria.

Agência Senado- O país hoje é melhor que o desenhado pela Constituinte?

José Afonso - O país que a Constituinte desenhou é aquele plasmado na Constituição que tem propiciado a melhoria das condições de vida da população. Se você quer saber se hoje o país é melhor do que antes da Constituinte, por certo que a resposta é positiva, porque o Brasil hoje é muito melhor do que era antes. Falta ainda muita coisa para o país ficar ainda melhor, porque as promessas da Constituição no sentido da realização mais efetiva dos direitos sociais ainda não foram cumpridas, mas a Constituição dá o instrumental para isso e, na medida em que ela está propiciando um regime democrático de plena liberdade, podemos ter a esperança de que virão dias melhores mediante políticas públicas adequadas para a melhoria das condições sociais do povo.

Agência Senado- Qual foi o grande erro dessa Constituinte?

José Afonso - Uma Constituinte realiza a obra que as circunstâncias históricas permitem. Então, a rigor, não se pode dizer que ela tenha cometido erros, até porque tudo depende da posição em que se coloca o intérprete. Para mim, ela falhou em algumas coisas. Ela deixou intacta a velha estrutura de poder. Não houve modificação alguma no presidencialismo monárquico e personalista que nos rege desde a proclamação da República. Ela recusou o parlamentarismo que, por certo, seria uma experiência importante para a vida política brasileira, porque possibilitaria o fortalecimento dos partidos políticos, o controle democrático e mais efetivo dos poderes - sobretudo porque, no parlamentarismo, em úl tima análise, é o povo que decide as crises de poder. A Constituinte deixou o Poder Legislativo com a sua velha formação clássica do Estado liberal, quando um estado democrático de direito exige muito mais dos legisladores e não apenas a produção da legislação formal. O bicameralismo igualitário não mais se afeiçoa às exigências do nosso tempo, exatamente porque o Congresso não pode ficar numa função puramente formal, praticamente sem participação efetiva no processo de decisão governamental. Não vou sequer postular o unicameralismo, mas, a mim, parece que o bicameralismo desigual, em que Câmara e Senado tivessem campos de atuação diferentes, seria uma experiência importante para um país ainda em desenvolvimento.

Agência Senado- O que é fundamental ser consertado agora?

José Afonso - Acho que precisamos de uma profunda reforma política. E uma reforma política de profundidade seria conveniente, reformulando o seguinte: o presidencialismo, para adotar um presidencialismo de gabinete; o bicameralismo, com adoção de um bicameralismo desigual, em que as Casas do Congresso Nacional não sejam duplicação das mesmas funções; redução para quatrocentos e vinte do número de representantes na Câmara dos Deputados; disciplina legal da fidelidade partidária; adoção da cláusula de desempenho; proibição de alianças e coligações partidárias; e adoção do sistema eleitoral de votação distrital e eleição proporcional. É isso.

Tereza Cardoso / Agência Senado



08/08/2008

Agência Senado


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