Assassinato expõe caos da segurança









Assassinato expõe caos da segurança
Execução do prefeito de Santo André mostra que Estados e governo federal vêm perdendo batalha contra violência

O corpo estendido na estrada de terra batida estava quase irreconhecível. Tinha o maxilar quebrado e marca de entrada de três tiros. Pelo menos outros cinco disparos o atingiram nas costas. Trinta e duas horas depois do seqüestro, o prefeito de Santo André, Celso Daniel (PT), apareceu morto na manhã de ontem a 200 metros da rodovia Régis Bittencourt, que liga São Paulo ao Paraná, na altura de Juquitiba, município a 75 km de São Paulo.

Sua execução expõe a fragilidade do país diante do crime organizado e a falta de uma política nacional de segurança pública. Crime comum, ou por motivos políticos, o assassinato de Daniel mobilizou o governo federal, o de São Paulo e o Congresso no esforço para montar um projeto eficaz de combate à violência. O PT, que administra três Estados - Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Acre - e convive com o crescimento dos índices de criminalidade em suas fronteiras, cobrou do Planalto e do governo de São Paulo ações para cercear a atuação das quadrilhas.

Até ontem à noite, a polícia paulista não tinha pistas dos assassinos de Daniel, nem dos carros usados por eles. O prefeito foi seqüestrado por volta das 23h15 de sexta, quando voltava para casa depois de jantar com amigos num restaurante nos Jardins, na capital. O enterro está marcado para hoje, em Santo André. Na tarde de ontem, os principais líderes do PT participaram de um ato ecumênico contra a violência no Paço Municipal da cidade. Cerca de oito mil pessoas acompanharam o ato. O prefeito era popular e fora reeleito, em 1998, com mais de 70% dos votos. Abalado, o presidente de honra do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, chorou diversas vezes durante a cerimônia. Daniel era o coordenador do programa de governo de Lula à Presidência.
Crime - Investigações preliminares indicam que o prefeito foi executado na estrada estreita, a 75 quilômetros do local no seqüestro, entre a meia-noite de sábado e às 2h da madrugada de domingo. Peritos do Instituto Médico Legal de São Paulo acreditam que o rosto de Daniel foi desfigurado para dificultar a identificação.

Sem pistas ou informações concretas, os políticos recorreram à retórica para prometer combate à violência. O governador Geraldo Alckmin quer recompensar financeiramente os que fornecerem informações sobre a identidade dos executores (leia abaixo). O presidente Fernando Henrique Cardoso, informado do crime por um telefonema de Lula, se disse horrorizado e concordou com Alckmin sobre a urgência de abrir guerra contra o crime organizado. ''A violência em São Paulo passou dos limites'', afirmou FH, numa crítica à ineficiência da polícia paulista para conter o crescimento do número de seqüestros no Estado.

A ineficiência dos governos estaduais e do federal será o tema do encontro, hoje à tarde, entre Fernando Henrique e Alckmin, no Palácio do Planalto. Vão debater soluções de emergência para aumentar a segurança em São Paulo. Amanhã, FH se reúne com Lula e o presidente nacional do PT, José Dirceu, com o mesmo objetivo. Os casos de seqüestro em São Paulo aumentaram 395% em 2001 em relação a 2000.

Em nota oficial divulgada ontem, o PT afirma que o assassinato de Daniel e do prefeito de Campinas, Antônio da Costa Santos, o Toninho do PT, em 10 de setembro passado, são conseqüência ''da incapacidade das polícias estaduais e federal de enfrentar o crime organizado. O problema fundamental hoje é o da impunidade com que agem as quadrilhas''.


Celso Daniel, prefeito-modelo
Êxitos levaram administrador à coordenação do programa eleitoral de Lula

O prefeito de Santo André, Celso Augusto Daniel, 50 anos, assassinado a tiros depois de ter sido seqüestrado na Zona Sul de São Paulo, viveu, se formou e fez carreira política no ABC paulista. No terceiro mandato à frente da prefeitura, Celso conseguiu transformar sua administração em modelo ao colocar em prática, com sucesso, vários projetos sociais idealizados pelo PT, partido ao qual se filiou em 1980. O desempenho o alçou ao cargo de coordenador da equipe de formulação do programa eleitoral do candidato à Presidência do partido, Luiz Inácio Lula da Silva.

O prefeito integrava a corrente majoritária Unidade na Luta, da ala moderada do PT. Formado em Engenharia Civil, Celso fez mestrado em Administração na Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e doutorado em Ciências Políticas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde lecionava Economia. Em junho do ano passado, representou o Brasil na Conferência Mundial Istambul+5, promovida pelo Programa Habitat da Organização das Nações Unidas (ONU). O prefeito tinha participação ativa na política de integração das sete prefeituras do ABC paulista. Era fundador do Consórcio Intermunicipal e diretor-geral da Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC.

Depois da primeira experiência eleitoral fracassada, na década de 80, quando perdeu a prefeitura de Santo André para o petebista Newton Brandão, Celso Daniel saiu vitorioso nas outras quatro eleições que disputou. Foi prefeito de 1989 a 1992, de 1997 a 2000, e voltou ao cargo em 2001, reconduzido com 70% dos votos válidos. Também cumpriu o mandato de deputado federal, de 1994 a 1996. A experiência administrativa anterior aos mandatos foi no Departamento de Trânsito e Serviços (DST) de Santo André, entre 1974 e 1978, quando foi responsável pelo trânsito na cidade.

Celso Daniel não teve unanimidade em sua primeira gestão de prefeito, lembrada pelo aumento progressivo do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano). Começou o programa de urbanização de oito favelas e de intervenção em outras 49. Batizado de Programa de Inclusão Social, foi considerado pela ONU modelo de política pública para urbanização de favelas. Também criou a Empresa Municipal de Habitação e a Secretaria de Transportes, responsável pela implementação de um sistema de transporte coletivo parcialmente subsidiado pela prefeitura.

Como os demais prefeitos do ABC, Celso era contrário ao transporte alternativo em vans. Em seu segundo mandato, o petista deu o pontapé inicial nos programas que mais tarde se tornariam vitrine da administração: Renda Mínima, Banco do Povo e Orçamento Participativo. Paralelamente, iniciou uma reforma urbanística que imprimiu uma marca a Santo André. Praças, jardins e ruas foram ocupadas por palmeiras, transformadas em símbolo da cidade.

O momento mais delicado da vida política foi quando Celso Daniel enfrentou denúncias de corrupção na prefeitura. A empresa prestadora de serviços Enterpa foi substituída pela Rotedalli Serviços de Limpeza Urbana, num processo sem licitação. Nessa época, ficou em evidência o nome do empresário Sérgio Gomes da Silva, ex-assessor e amigo pessoal do prefeito. De acordo com reportagens publicadas em abril de 2000, Sérgio teria recebido R$ 272 mil por serviços de consultoria e seria co-proprietário de dois imóveis de Ronan Maria Pinto, dono da Rotedalli, supostamente beneficiado pela administração.

Outro conflito aconteceu com a redução do número de cargos e o congelamento do salário do funcionalismo, medidas que criaram mal-estar entre o prefeito e sindicalistas do partido. Fora da arena política, o prefeito marcou pontos no esporte. Jogador de basquete, ele conquistou o título de campeão da categoria veteranos pelo Esporte Clube Santo André, no ano passado, e foi capaz de incrementar o esporte na cidade. A Prefeitura deu apoio logístico ao basquete feminino do município que, com o patrocínio de uma empresa privada, tornou-se um dos mais competitivos do país. O incentivo às modalidades olímpicas foi outra tÔnica da gestão.
As experiências administrativas de sucesso elevaram Celso Daniel ao posto de exemplo a ser seguido pelos companheiros de partido. Durante a campanha para as eleições municipais de 2000, a candidata Marta Suplicy citou seu nome diversas vezes para mostrar como é, na prática, um governo com preocupação social. O Banco do Povo - instituição financeira que oferece empréstimos de valores baixos e juros menores que os de mercado a pequenos produtores e artesãos - foi citado várias vezes na campanha de Marta.

Aliada à competência, a personalidade do prefeito Celso Daniel o tornava especialmente respeitado. Tinha o perfil do intelectual. Os partidários o descrevem como um homem sereno, cortês e sensato, incapaz de se alterar, mesmo no auge das discussões políticas. O petista herdou do pai Bruno José Daniel, já falecido, o gosto pela política. Seu pai foi vereador e secretário de Fazenda por duas vezes em Santo André. Celso Daniel era divorciado, não teve filhos, e vivia sozinho.


Duas cidades assombradas pelo medo
PT perde de forma violenta prefeitos de Campinas e Santo André, dois dos mais importantes municípios paulistas

A morte de dois prefeitos do PT paulista em pouco mais de de quatro meses pode não passar de trágica coincidência. Leva, contudo, a inevitáveis comparações entre as vítimas, Celso Daniel e Antonio Costa Santos, e as cidades que administravam, Santo André e Campinas, importantes municípios de São Paulo. Toninho do PT, 49 anos, o prefeito de Campinas, foi assasinado com três tiros em 10 de setembro, quando voltava de um shopping, à noite. A polícia ainda não concluiu as investigações. O longo cortejo que seguiu o enterro, no dia seguinte - quando o mundo parava para assistir aos atentados terroristas nos Estados Unidos - deu uma mostra de sua popularidade. Independente, não se encaixava em nenhuma das inúmeras tendências petistas. Orgulhava-se dessa independência.

Na sexta-feira 18 de janeiro, Celso Daniel, 50 anos, prefeito reeleito com 70% dos votos de Santo André, foi sequestrado. O corpo apareceu ontem, cravejado de balas. Mais de oito mil pessoas se reuniram diante do Paço Municipal num ato ecumênico pela paz. Daniel era braço-direito de Lula. Neste ano, dividiria a função de prefeito com a de formulador do programa de governo do candidato do PT à Presidência. Num eventual governo Lula, era cotadopara cotado para ministro. A cúpula do partido uniu-se em lágrimas diante do drama. A presença da viúva de Toninho, Roseana Costa Santos, aumentou a comoção na cidade.

O assassinato de Toninho expôs as aterradoras estatísticas da violência em Campinas, cidade de quase um milhão de habitantes e palco privilegiado do crime organizado. Em 2001, os seqüestros cresceram 125% em relação ao ano anterior. O assassinato da dona de casa Rosana Melloti, em frente à casa onde morava, chocou a cidade e o país. Os números da violência contrastam com os que atestam o desenvolvimento econômico. Campinas é um dos pólos industriais da América Latina e atrai 16% dos investimentos privados do Estado de São Paulo (US$ 2,5 bilhões). Concentra 3,2% do PIB nacional - R$ 35,2 bilhões ao ano. É centro tecnológico de excelência e núcleo de uma região de 90 municípios, que tem economia equivalente a do Chile. O alto poder aquisitivo da população faz com que a cidade seja campo de testes para o lançamento de qualquer novo produto na praça.

Santo André, segunda cidade da região do ABC, na Grande São Paulo, depois de São Bernardo, tem valores um pouco mais modestos. A população de cerca de 650 milhões de habitantes produz riquezas que somam cerca de R$ 15 bilhões anuais. Nos últimos anos, os setores de comércio e serviços se fortaleceram. A atividade industrial, em torno da qual floresceu a cidade, está em queda. O emprego na indústria encolheu junto com setor metalúrgico na região do ABC. Em 1998, eram 34 mil postos. No ano passado, pouco mais de 27 mil.

Distante apenas 18 quilômetros do centro de São Paulo, a cidade sofre os problemas da região metropolitana, com índices de violência altos e desemprego que hoje está na casa dos 17%. A administração de Danielpretendia combater o crime com ênfase nos programas sociais do PT, sobretudoo de renda mínima e o Banco do Povo. Santo André foi um dos berços do PT, nas portas das fábricas do setor metalúrgico, mas só com Celso Daniel chegou ao poder.


Senadores do PT também são ameaçados
BRASÍLIA - Senadores do PT também foram vítimas de ameaças do grupo extremista que se identifica como Forças Armadas Revolucionárias Brasileiras (Farb). Nos últimos dois meses, Heloísa Helena (AL) e José Eduardo Dutra (SE) receberam, pela internet, mensagens ameaçadoras da suposta milícia que enviou cartas a 15 dos 37 prefeitos petistas em São Paulo, entre os quais Celso Daniel, assassinado neste fim de semana.
No início do ano, as ameaças também chegaram pelo serviço ''O800 - A Voz do Cidadão'' do Senado. O grupo dizia que os dois petistas poderiam ser alvo de violência. ''Senhores do Partido dos Trabalhadores, senadores Heloísa Helena e José Eduardo Dutra: vocês falam demais e por isso vão sofrer a dor. Cuidado por onde andam. Brasília não é segura. Ninguém é eterno''. Em uma mensagem eletrônica, o candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva é citado. ''Lula não vai assumir a Presidência por dois motivos: nós não gostamos do PT e um Lula não é a prova de bala''. No e-mail, Heloísa Helena é chamada de ''senadora explosiva''.

As ameaças preocuparam o presidente do Senado à época, Edison Lobão (PFL-MA), que abriu investigação para apurar os fatos. Técnicos do Serviço de Processamento de Dados do Senado (Prodasen) concluíram que as mensagens partiram de um endereço eletrônico do jornal ''A Tribuna de Santos Jornal e Editora Ltda''. Lobão encaminhou as conclusões da investigação ao ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, em 11 de janeiro.

O Serviço de Inteligência e Apoio às Operações Policiais do Senado recomendou que os senadores ameaçados aumentassem a segurança pessoal na rua e no Congresso Nacional. Dutra e Heloísa Helena estão cautelosos. ''Nem resolve o medo, nem a estrutura de segurança pessoal diante da sofisticação do crime'', avalia a alagoana. Para Dutra, ''a forma como Celso foi executado nos faz considerar que há no crime uma motivação política''.

As Farb dizem, na internet http://orbita.starmedia.com/farbbr1/index2.htm, ser uma organização insatisfeita com o que chama de ''militantes traidores de partidos de esquerda'', que estariam em busca de alianças com legendas de centro-direita. O manifesto da organização, que reivindica o assassinato do prefeito Toninho do PT - Campinas -, ameaça políticos de esquerda ''que estejam saindo da linha''. ''Crimes sem precedentes irão acontecer, se preparem!'', avisa. O grupo afirma ter mais de 50 integrantes e existir desde 1998. A cúpula ficaria em Santo André. Em São Paulo, 15 dos 37 prefeitos do PT receberam cartas ameaçadoras da Farb e três políticos sofreram atentados.


Congresso vai criar comissão de Segurança
BRASÍLIA - A segurança será tema constante na volta do Congresso Nacional, em fevereiro. O presidente da Câmara, Aécio Neves, vai instalar uma comissão permanente de segurança pública, que deve analisar e votar as propostas que tramitam na Casa sobre o tema. A criação da comissão foi votada no fim do ano passado e deve discutir medidas mais efetivas contra a violência sem limites no país. A Comissão Permanente de Segurança terá 35 deputados e vai funcionar nos moldes de comissões já existentes, como as de Justiça e Economia. ''A idéia é concentrar tudo em um só lugar, estabelecer prioridades e votá-las'', explicou Aécio. O presidente da Câmara disse estar ''perplexo e chocado'' com o crime. Segundo Aécio, a morte de Celso Daniel, ''atinge não só ao PT mas a todos nós'', d isse.

Entre os tucanos, o assassinato do prefeito petista foi encarado como uma barbárie. Pré-candidato à Presidência, o ministro da Saúde, José Serra, lembrou que esteve com Celso Daniel na semana passada. Segundo Serra, ''o episódio é um retratoda gravidade do problema da segurança no Brasil''. O ministro defendeu a ''integração de todas as polícias e serviços de inteligência'' para combater a criminalidade.

O presidente do PSDB, deputado José Anibal (SP), e o deputado Alberto Goldman (SP) disseram estar estarrecidos. ''Estamos todos traumatizados e sem saber o que dizer'', comentou Goldman. Em Salvador, o ex-senador Antonio Carlos Magalhães (PFL) disse que o assassinato de Celso Daniel ''não pode deixar de ter conotação política, pelo menos presumível''. Lembrou a morte de Toninho do PT. ''O quadro de insegurança é grave, principalmente em São Paulo.''

Ontem, os principais integrantes de partidos políticos e do governo evitaram afirmar categoricamente que o crime tinha conotação política. O crime provocou críticas à ação do governo em relação à segurança pública. O presidente do Senado, Ramez Tebet (PMDB-MS), defendeu ontem uma mobilização contra a violência: ''Mas não é só ficar fazendo planinhos. Precisamos de medidas excepcionais para conter uma situação emergencial.'' O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco Aurélio Mello, criticou a falta de segurança. ''O crime demonstra a insegurança que vivemos e a necessidade de buscarmos as causas''.


Mandante de atentado contra Rainha é preso
O mandante do atentado contra um dos líderes do MST, (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) José Rainha, ocorrido ontem, na região do Pontal do Paranapanema (256 km a oeste de São Paulo), já está preso. Segundo o anúncio feito pelo Ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, à Agência Brasil, Roberto Junqueira confessou ter sido o mandante da emboscada que acabou ferindo Rainha com dois tiros nas costas.

Rainha recebeu alta do hospital ontem e contou detalhes sobre a emboscada. Ele teria sido cercado quando saía de carro da fazenda Santa Rita do Pontal, no município de Rosana. Estavam com ele o líder estadual do MST. Sérgio Pantaleão e a militante Fátima Siqueira.

Segundo um dos advogados do movimento, Patrik Mariano Gomes, o carro foi cercado por 15 homens comandados por Junqueira, que é irmão do proprietário da fazenda invadida por 275 famílias na madrugada de ontem.

''Os jagunços se jogaram na frente do carro e começaram a atirar. O Rainha saiu correndo para o mato e alguns deles foram atrás atirando. Dois tiros pegaram nas costas do Rainha'', disse Gomes.


Artigos

O eterno recomeço?
Maurício Paiva

Em junho de 1970, fomos retirados de diversos presídios no Brasil, embarcados num avião e desembarcados na Argélia. Éramos 40 brasileiros, banidos do país. Na verdade, éramos 44, porque entre nós estavam quatro brasileirinhos que também eram libertados da condição de reféns da ditadura militar. Naquela altura, ninguém podia sequer imaginar o que viria a ocorrer na Argélia poucos anos depois.

Fomos recebidos em Argel com as ruas engalanadas. Mas não eram para nós as bandeiras que tremulavam nos postes ao longo do trajeto entre o aeroporto e a Colônia de Ben-Aknoun, onde seríamos instalados pelo governo argelino. Eram as boas-vindas ao Rei Faiçal, da Arábia Saudita, que, coincidentemente, iniciava naquele dia uma visita oficial. Essa coincidência permitiu-nos, desde logo, tomar contato com o senso de humor dos argelinos: a anedota daqueles dias era que acabavam de chegar à Argélia Ali Babá e os 40 ladrões. Achamos graça na piada. Mas, à parte o bom humor, tínhamos de tratar de assuntos nada engraçados, de questões de vida ou morte. (E em pouco tempo muitos daquele grupo estariam mortos).

Em Ben-Aknoun fomos nos rearticulando para retomarmos as nossas lutas. Enquanto isso, ocupávamo-nos em reuniões e debates com alguns compatriotas que já andavam desgarrados por esse mundo afora, com argelinos da FLN (Frente de Libertação Nacional), angolanos do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), moçambicanos da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), guineenses e cabo-verdianos do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo-Verde) e, ainda, dois portugueses exilados que, dali, da terra dos mouros, combatiam o fascismo em Portugal. Enfim, naqueles dias descobrimos um pouco da África, tomamos contato superficial com a realidade de um país árabe e islâmico e com a luta pela independência das colônias portuguesas.

Numa dessas oportunidades, ouvimos do líder do PAIGC, Amílcar Cabral - que pouco tempo depois seria assassinado na Guiné-Conakri, num putsch jamais explicado e que deixaria para sempre a suspeita de que ele fora a primeira grande vítima do movimento que criara -, ouvimos desse dirigente da luta anticolonial, em tom altissonante, a frase de efeito: a Argélia é a Meca da Revolução Africana!

A Argélia se libertara fazia apenas oito anos do jugo colonial francês, pondo termo a uma luta cruenta que durara outros oito anos. A Argélia islâmica, que saíra lacerada, fazia tão pouco tempo, desse combate contra uma potência colonial, era então o mais arejado país do mundo islâmico e despontava como um dos mais promissores países da África. Essa Argélia, que, internamente, impunha limites às piores tradições do islamismo, no que diz respeito às mulheres e às crianças, e que investia na escolarização infantil como nenhum outro país árabe e islâmico; essa Argélia, que se engajava no apoio decidido aos movimentos anticoloniais e antiimperialistas, que se empenhava na construção de uma alternativa viável, no cenário mundial, à bipolarização EUA-URSS, através do Movimento dos Países Não Alinhados; essa Argélia merecia, de fato, o título de Meca da Revolução Africana. Isso faz apenas três décadas. Mas, já no crepúsculo do milênio, no mundo que emergia da Guerra Fria, poderíamos exclamar, perplexos: Que Meca! Que Revolução Africana!

Com efeito, o reordenamento estratégico em escala mundial, que vem se processando a ferro e fogo após o fim da Guerra Fria, tem sido particularmente dramático em todo o continente africano e no mundo islâmico.
A África, possivelmente por ter papel irrelevante a desempenhar no novo concerto mundial que vai se redesenhando, dilacera-se ante a indiferença do resto do mundo. Com a exceção única do Egito, peça importante no xadrez do Oriente Médio, toda a África parece haver sido abandonada à própria sorte. Três países são emblemáticos nos retratos dessa tragédia de dimensões continentais: no extremo Sul, a África do Sul, no extremo Norte, a Argélia, e na costa Sudoeste, Angola. E eram esses os três mais promissores países africanos nos anos 70!

Na África do Sul, que se libertou ainda recentemente do regime de apartheid, não são as guerras e dissensões internas as causas das mazelas, ao contrário do que ocorre em outras partes; é a epidemia de Aids, que não só na África do Sul, mas em toda a África Austral atinge quase um terço da população. Nessa situação, com tamanha calamidade presente, à África do Sul não sobram sequer esperanças de melhor futuro.

Em Angola, a guerra entre o governo do MPLA e a Unita, que se arrasta desde a independência do país, em 1975, é, de certa forma, um paradigma das guerras que neste momento se travam em diversas partes da África, tanto em suas raízes e motivações quanto em suas características. Já não falta à guerra em Angola nem mesmo a extrema crueldade contra a população civil que se transformou no dia-a-dia de outras guerras em território africano: em tempos recentes, a Unita passou a utilizar-se também do método da mutilação física dos prisioneiros, especialmente da decepação de mãos, i nclusive de crianças. As armas utilizadas nessas guerras também são as mesmas - com preferência para o versátil fuzil automático de assalto Kalashnikov. Contudo, em Angola há ainda um terrível diferencial, as minas terrestres. Angola é um dos territórios mais minados do mundo, de tal modo que às mortes e mutilações nas frentes de combate se acrescentam as provocadas pelas minas na retaguarda - e, nesses casos, as maiores vítimas costumam ser as crianças.

O cenário mundial sofreu reviravoltas radicais no último quartel do século findo, inclusive na África Austral. Em Angola, no entanto, a guerra continuou com método, alheia às mudanças que ocorriam ao seu redor. É que a guerra não se alimenta apenas de ódio recalcado - e ódio é o que não deve faltar num conflito com raízes tribais seculares, que já dura mais de um quarto de século. Mais do que do ódio e da vontade dos contendores, a guerra alimenta-se dos meios de levá-la a cabo e sustentá-la. Nessa circunstância, aos angolanos parecem estar reservados ainda muitos sofrimentos: o governo do MPLA dispõe, além dos meios de quem detém as rédeas formais do Estado, dos recursos do petróleo; do outro lado, a Unita controla as áreas ricas em diamantes.

Na Argélia, por sua vez, a questão islâmica veio a emergir com inesperada virulência pelo seu lado mais sombrio, o teocrático. Em 1990 e 1991 a Frente Islâmica de Salvação (FIS) venceu as eleições que haviam sido convocadas pelo governo da FLN na tentativa de contornar uma crise política que tinha em seu cerne, precisamente, a questão islâmica. E foi defendendo a implantação de um Estado islâmico que a FIS ganhou, com larga margem, as eleições de 1991. Ganhou, mas não levou. A crise agravou-se ainda mais, veio um golpe de Estado, implantou-se o estado de sítio e, de outro lado, irromperam a violência generalizada e o terrorismo. Há 10 anos a Argélia vive sob o terror desatado pelo Grupo Islâmico Armado (GIA). No entanto, ao contrário do que vem ocorrendo em outras partes do mundo islâmico, o terror na Argélia está voltado contra os próprios argelinos. É que o GIA tem estado, ao longo de todos esses anos, demasiado ocupado em degolar argelinos - principalmente mulheres e crianças, não por acaso os mais indefesos - para também cuidar do mundo exterior. E o mundo exterior não demonstra comover-se com o fato de que argelinos, em nome de Alá, passem a cimitarra na garganta de argelinos, ainda que sejam crianças e mulheres as maiores vítimas. Que barbárie!


Colunistas

COISAS DA POLÍTICA - Teodomiro Braga

A hora de José Serra
O recrudescimento da dengue no Estado do Rio foi a única coisa que saiu errada na arrancada da candidatura de José Serra à presidência, na avaliação dos próprios estrategistas da campanha. O assunto teve destaque igual ou maior ao lançamento da candidatura, nos jornais do Rio, criando uma situação embaraçosa para quem ganhou o posto de candidato por conta do progresso do país na área da saúde. Como encarar o inesperado revés é o dilema enfrentado pelo ministro, que entende já ter feito o que deveria: os recursos que enviou para o Rio de Janeiro, garante, eram suficientes para que o governo e a Prefeitura do Rio tivessem contido o avanço do mosquito Aedes aegypti, como ocorreu nos outros Estados que também enfrentam epidemias de dengue.

A idéia de partir para o contra-ataque e chamar à responsabilidade o prefeito Cesar Maia e o governador Anthony Garotinho é opção que Serra pretende evitar, por saber que é uma briga ruim, por envolver dois adversários afeitos à polêmica e loucos para transformar um problema desse tipo numa questão política de grande relevância, no momento em que começa a engrenar a campanha à Presidência da República, com o surgimento, finalmente, do concorrente do partido no poder. O caso é uma amostra das dificuldades que terá o candidato identificado com a situação, que será cobrado por tudo de ruim que acontecer no país daqui para a frente, especialmente em sua área de atuação.

Apesar desse deslize na largada da candidatura, na quinta-feira, a hora é do ministro José Serra, que certamente não perderá a oportunidade de faturar a superexposição que terá na mídia, nos próximos dias, no embalo do ato de quinta-feira passada, em que mostrou sua força. Dos seis tucanos que faziam parte da mesa, além do próprio ministro, quatro eram adversários notórios de sua candidatura até dias atrás: o presidente do PSDB, José Aníbal, o ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga, o governador do Ceará, Tasso Jereissati, e Renata Covas, representante da família Covas. Na primeira fileira de poltronas do auditório estava o ministro da Educação, Paulo Renato, outro ex-rival, além de Tasso, na disputa pela candidatura.

A turma de Serra festejou a presença de Tasso Jereissati no evento, mas não se ilude com a idéia de que ele vai arregaçar as mangas e batalhar pela sua eleição. O nome com quem contam para levantar a candidatura no Nordeste, ponto mais fraco, é o do governador de Pernambuco, o pemedebista Jarbas Vasconcelos, com quem Serra tem antiga relação de amizade e grande afinidade ideológica. A busca de apoios políticos, por sinal, é prioridade do candidato do PSDB, que se lançou à tarefa, na própria quinta-feira, visando, inicialmente, consolidar seu nome dentro de casa, entre o tucanato.

O lema ''Nada contra a estabilidade, tudo contra a desigualdade'' provocou reparos entre os próprios serristas, por causa da suposta dubiedade da primeira parte da frase, que passaria um apoio apenas parcial à estabilidade econômica. A crítica, entretanto, não encontrou amparo no candidato. ''Qual é a ambigüidade?'', contesta ele, questionando o destaque dado à frase pela imprensa em meio a várias outras mensagens fortes do pronunciamento. O motivo é que a frase foi apontada no discurso como o ''lema'' do seu futuro governo.

Segundo Serra, ele fez a menção à estabilidade justamente para tranqüilizar os empresários. ''A defesa da estabilidade aparece em outra três passagens do discurso'', observa ele, dando sua tradução à frase classificada de lema: ''Vamos lutar contra a desigualdade sem abalar a estabilidade.'' O lema mesmo da campanha, garante ele, não foi escolhido e a definição ainda vai demorar. O próprio Serra dá uma dica de como será o slogan da campanha: algo do tipo ''Mais progresso e progresso para todos.''

Efeito partidário
Não é só Roseana Sarney quem perde pontos nas pesquisas quando o perguntador menciona o nome do seu partido. Segundo a pesquisa, feita pelo Ibope no final de dezembro, a informação também prejudica, mas com menos intensidade, os candidatos Lula e Itamar Franco. O nome do partido nada muda, nos casos de Ciro e Serra, enquanto Garotinho é o único que ganha quando o eleitor é informado de que ele pertence ao PSB.

Despedida de luxo
Tasso Jereissati vai iniciar, em grande estilo, sua candidatura a senador. Em 27 de março, menos de uma semana antes de deixar o governo do Ceará, Tasso vai reinaugurar o Estádio Castelão, com um jogo da Seleção Brasileira.

O presidente da CBF, Ricardo Teixeira, desmarcou um jogo do Brasil na Catalunha só para atender ao pedido do governador do Ceará. Falta ainda arranjar o adversário da Seleção, que poderá ser a equipe de Portugal.


Editorial

SINFONIA DE PANELAS

Além das crises da Argentina e da Colômbia, o presidente Fernando Henrique, de volta de sua viagem à Rússia, terá de se preocupar com a situação da Venezuela. Depois de um pacote de 49 leis, baixado por decreto, considerado demasiado estatizante, o presidente Hugo Chávez perde a popularidade a olhos vistos, em meio a panelaços nas ruas, enquanto a situação política se deteriora e o bolívar, moeda nacional, sofre ameaça de megadesvalorização.

O fenômeno Chávez, encarnando expectativas sobretudo das classes mais baixas, queimou quase todo o pavio curto. Gerou esperanças que estão sendo cobradas pela população. Não era outra a leitura de sua promessa de aumentar benefícios da Seguridade Social, combater a corrupção, criar empregos, garantir saúde, educação e segurança, tudo isto sem a contrapartida das receitas. Mas garantiu para si mesmo a possibilidade de permanecer na presidência até 2012 - por ocasião do referendo sobre a nova Constituição, declarou que os eleitores estavam decidindo ''o destino da Venezuela para os próximos 200 anos... No entanto, a última pesquisa de opinião mostrou que 54% dos venezuelanos querem que ele abandone o poder.

A Venezuela entrou assim numa fase perigosa: a da ameaça dos complôs. A voz da oposição, silenciosa desde que Chávez entrou no palácio de Miraflores, no final de 1998, faz-se de novo ouvir, propondo meios de ação que vão da sinfonia de panelas ao golpe de Estado, passando pela desobediência civil.

Mesmo o governo de Washington, que até então considerava Chávez apenas um ''falastrão inconseqüente'', passou a manifestar preocupação. Até então Washington confiava nos conselhos que o presidente Fernando Henrique dava a ele. Hoje a Venezuela oscila vertiginosamente entre o colapso econômico e a ditadura legal. Seria esta a alternativa terrível a coroar anos de gastos faraônicos, manutenção de privilégios e desordens sociais mal resolvidas do antigo regime. O presidente Rafael Caldera, que entregou o poder a Chávez, sucessor do governo corrupto de Andrés Pérez (varrido da presidência pelo impeachment) governou sob estado de emergência financeira e suspensão de algumas garantias constitucionais. O antecessor de Pérez, Jaime Lusinchi, fugiu do país com a secretária e amante para escapar da Justiça.

Esta era a herança dos partidos tradicionais que se retiraram vergonhosamente do cenário político. Os caciques que dominavam as máquinas partidárias sempre se reelegiam, e não havia renovação. As diferenças entre os dois partidos que se revezavam eram mínimas. Ambos nasceram das elites, cada um dominava um jornal importante, ambos governavam para empresários e banqueiros e nenhum se preocupava em combater a corrupção.

A ascensão de Chávez sepultou os partidos tradicionais que se alternavam numa democracia de fachada que soçobrou com a crise econômica, clientelismo e corrupção. A Constituição bolivariana aprovada no referendo de 1989 é vazada em terminologia estatizante, embora contemple o livre mercado em sintonia com a mixórdia ideológica da coalizão de 13 partidos que apoiou Chávez, na qual predominam sindicalistas, políticos de esquerda radical e militares populistas. A frustração pelos maus resultados da gestão governamental virou o feitiço contra o feiticeiro.

Este é o balanço político da curta porém tumultuada permanência de Chávez no poder. A mais antiga democracia da América do Sul faz continência forçada a um caudilho que subiu pelo voto depois de ver fracassada sua quartelada de 1992 e vai aos poucos asfixiando a oposição e a livre opinião (vejam-se as pressões contra o jornal El Nacional).

É mais um problema do outro lado da fronteira a ser enfrentado pela diplomacia de Ação Global do presidente Fernando Henrique.


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01/21/2002


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