Heráclito Fortes desconfia que Tancredo não teria convocado a Assembléia Nacional Constituinte



Quando o Brasil transitava do regime militar para a democracia, o então deputado Heráclito Fortes usufruía de extraordinário convívio com os homens que, naquele momento, faziam história, como Ulysses Guimarães, que presidiu a Assembléia Nacional Constituinte, e Tancredo Neves, eleito presidente da República e morto três meses depois, sem tomar posse. Essa convivência leva hoje este senador piauiense a dizer que testemunhou episódios fantásticos ao longo dos percalços e angústias que marcaram aquela fase da vida nacional.

Vinte anos depois de promulgada a Constituição, numa entrevista concedida à Agência Senado para registrar reminiscências daquela época, o senador Heráclito Fortes (DEM-PI) lança uma incerteza sobre o que teria acontecido se, no lugar da posse do vice-presidente José Sarney, Tancredo Neves tivesse efetivamente assumido o Palácio do Planalto. Indagado se o presidente eleito teria convocado a Assembléia Constituinte, Heráclito responde: "tenho minhas dúvidas".

Agência Senado- Com seu trânsito pelos bastidores, naquele momento delicado da vida nacional, o que o senhor viu acontecer de mais impressionante?

Heráclito Fortes - Tenho muitas lembranças daquele período, que foi um dos mais ricos da história recente do país e seria difícil, neste momento, destacar algum, até porque ele tem sido exaustivamente analisado, inclusive seus bastidores, por jornalistas, historiadores, analistas. Mas me ocorre dizer que, olhando para trás, uma das coisas que mais me impressionaram foi a sensibilidade e a visão do Doutor Ulysses que, na reta final da Constituinte, percebeu que o mundo iniciava um processo de grandes transformações, com o que veio a ser conhecido como globalização, que Cuba enfrentava uma crise econômica e que os chamados regimes comunistas entravam em declínio. Então, ele se socorreu do instrumento da revisão constitucional, prevista para dali a cinco anos, com o objetivo de fazer os ajustes num modelo de Constituição que ainda contemplava uma economia fechada.

Agência Senado - Em sua opinião, caso tivesse assumido o governo, Tancredo Neves teria convocado a Assembléia Constituinte?

Heráclito Fortes- Tenho minhas dúvidas. Tancredo Neves sentiu, primeiro com a campanha das Diretas-Já e, segundo, por influência de Ulysses Guimarães, que colocou a campanha sucessória nas ruas, mesmo com o processo eleitoral indireto, que o povo era sua grande salvaguarda para uma eventual reação militar, naquele momento que ainda era delicado. A Assembléia Constituinte era uma "bandeira mágica" da qual ele poderia lançar mão em momentos de tensão. Minha tendência é acreditar que ele faria reformas pontuais para o país, mas tendo sempre em vista que o processo constituinte poderia paralisar o seu governo. Com a idade que tinha, era um risco que ele não gostaria de correr.

Agência Senado - O que poderia ter sido aprovado e foi rejeitado pelos constituintes?

Heráclito Fortes - Nós sempre temos que ter em mente, ao analisar aquele processo, o momento histórico que vivíamos. É fácil dizer hoje que deveríamos ter aprovado isso ou aquilo, quando a conjuntura não apontava claramente os caminhos que o mundo iria seguir. Ainda assim, eu diria que o mais marcante - em termos do que deveria ter sido incluído na Carta - foi o Parlamentarismo. A Constituição foi moldada para conviver com o Parlamentarismo, mas engasgou na tentativa feita por alguns radicais de diminuir o mandato presidencial para quatro anos. Daí, o governo mostrou sua força, aprovando os cinco anos de mandato e o Presidencialismo. O resultado foi a dicotomia entre uma Constituição parlamentarista e um Presidencialismo imperial.

Agência Senado - Numa revisão constitucional, hoje, o que o senhor mudaria?

Heráclito Fortes - Em primeiro lugar, eu a enxugaria um pouco. Nós não precisávamos descer a tantos detalhes. No final, ficamos com um texto com muitos direitos e poucos deveres. Entendo que a inclusão de determinados temas foi uma exigência da época. Afinal, as gerações ali presentes nunca tinham convivido com uma Carta Congressual, eram filhas de regime de exceção. Isso justifica alguns excessos e remete ao fato de o Doutor Ulysses tê-la chamado de "Constituição Cidadã".

Agência Senado - Ter um capítulo inteiro disciplinando o meio ambiente foi uma demonstração de visão dos constituintes?

Heráclito Fortes - Sim e não. Por um lado, foi um ato de visão. Afinal, somos um país continental, temos inúmeros recursos naturais, como a Amazônia, o Cerrado, a Caatinga e outros valiosíssimos biomas. Por outro lado, isso acabou engessando um pouco a área, pela atuação de nacionalistas sectários que acabaram legislando em nome do atraso.

Agência Senado - Não ter previsto a ação das organizações não-governamentais foi uma falta de visão da Constituinte?

Heráclito Fortes - É difícil fazer esta avaliação agora. As ONGs já existiam, mas a febre em torno delas veio na seqüência. Talvez tenha sido um erro não termos atentado para isso. Erro pelo qual, aliás, estamos pagando hoje e ainda vamos pagar mais, se não enfrentarmos essa questão com seriedade e profundidade. O problema é que o espírito do "não-governamental" é exatamente diminuir o tamanho do Estado, atuar em complementaridade ou onde ele é omisso. Mas, no Brasil, algumas ONGs são "governamentais", já que só sobrevivem às custas de recursos públicos, sem a devida prestação de contas, diga-se de passagem. Com isso, o processo não tem transparência e as ONGs não dão as respostas que a sociedade precisa.

Agência Senado - Contemplando, 20 anos depois, o caldeirão de idéias que significou aquele momento da vida nacional, o que o senhor sente?

Heráclito Fortes - Muitas saudades. É o que eu mais sinto, porque vivi intensamente aquele período. Até por uma questão particular, que era minha relação de amizade com figuras expressivas daquele momento. Todos sabem da minha proximidade com o Doutor Ulysses, o que me deu oportunidade de testemunhar episódios marcantes, além de ter convivido com tantos políticos importantes como -e vou correr o risco de citar alguns, deixando tantos outros de fora - como Bernardo Cabral, Mário Covas, Nelson Jobim, Pimenta da Veiga, Afonso Arinos, Roberto Campos... Este último, aliás, me permite abrir aqui um parêntese. Ele era a voz do contraditório e, se parecia uma posição minoritária, naquele momento, estava, na verdade, antecipando o que nos aguardava. Eram poucos os seus seguidores. Me lembro de Luís Eduardo Magalhães, Roberto Cardoso Alves, Ricardo Fiúza...

Naquele período, passávamos horas e horas votando, sem painel eletrônico. Até a resistência física do Doutor Ulysses, para atender necessidades pessoais, era questionada... E os debates, inúmeras vezes, se prolongavam nas mesas do restaurante Piantella, em rodas que reuniam ainda Severo Gomes, Pedro Simon, Pacheco Chaves, Carlos Sant'Anna, Fernando Lyra, além dos freqüentadores mais habituais, como o próprio Doutor Ulysses, no grupo que se convencionou chamar de "Clube do Poire" - referência ao licor de pêra preferido do presidente da Constituinte. E o impressionante é que as pessoas só tratavam do interesse público. Ali não tinha lobby (a não ser os legítimos, claro), aloprado, dólar na cueca, dossiês. Nem desconfiança de uns com relação aos outros. Ah, tempinho danado de bom. Dá saudades no corpo todo.

Mais informações sobre os 20 anos da Constituição no endereço http://www2.camara.gov.br/internet/constituicao20anos



29/08/2008

Agência Senado


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