Mauro Benevides: "Medida provisória é o calcanhar de Aquiles da nossa Constituição"



"É uma Constituição com um calcanhar de Aquiles. Nosso grande erro foi deixar no texto a Medida Provisória". Assim o deputado Mauro Benevides (PMDB-CE), que foi vice-presidente da Assembléia Nacional Constituinte, refere-se ao texto constitucional que completa 20 anos no próximo dia 5 de outubro. Morto Ulysses Guimarães, o homem que presidiu aquele conclave, Mauro Benevides é hoje o mais requisitado dos constituintes para falar daquela experiência. Ele abre uma série de entrevistas que a Agência Senado fará na celebração dessa data.

Agência Senado - Que momento o senhor considerou crucial na Constituinte?

Mauro Benevides - Foi o momento em que o grupo liderado pelo deputado Roberto Cardoso Alves e denominado Centrão anunciou formalmente que se ausentaria do processo de elaboração da Carta Magna, se não fosse processada uma reforma regimental que teria que respeitar algumas cláusulas impostas pelo bloco. Era uma forma que o bloco tinha de se contrapor a quaisquer alternativas socializantes ou esquerdizantes que pudessem ser oferecidas naquele momento pelos senadores e deputados constituintes.

O Regimento da Constituinte tinha sido elaborado por Fernando Henrique Cardoso. Quando houve essa imposição do Centrão, Ulysses [Guimarães] me designou para flexibilizar o Regimento e atender, senão totalmente, mas em grande parte, à proposta do Centrão. Afinal, elaboramos esse Regimento exigindo que qualquer matéria somente fosse aprovada com 280 votos dos senadores e deputados constituintes.

Agência Senado - Foi aí que Ulysses Guimarães adoeceu?

Mauro Benevides - Exatamente quando elaborávamos o Regimento, o doutor Ulysses teve que se submeter a uma angioplastia em São Paulo. Mas, mesmo de lá, numa demonstração de extraordinário espírito público, ele acompanhou as gestões que se processavam e, já no segundo dia da intervenção, ao atender um telefonema que fiz para sua cunhada, dona Margô, ele tomou o telefone e perguntou: como é que vão as démarches para a reformulação do Regimento? Isso mostra sua extraordinária capacidade de homem público.

Agência Senado - Mostra também que o Centrão preocupava o doutor Ulysses...

Mauro Benevides - Ele estava preocupado com o trabalho de elaboração constitucional diante das ameaças que eram visíveis e numericamente capazes de gerar um insucesso, se o retraimento ocorresse, como anunciara seguidas vezes o líder do Centrão. Nós elaboramos a reforma do Regimento e, a partir desse momento, os trabalhos prosseguiram. A mim, como vice-presidente, cabia cobrir o cotidiano da Assembléia. E a Ulysses cabiam as gestões para superar reações. Ele fazia uma articulação para garantir o trâmite absolutamente tranqüilo das emendas no Plenário. Era assim que Ulysses trabalhava.

Agência Senado - E se ele não tivesse voltado dessa angioplastia?

Mauro Benevides - Não há dúvida de que ele foi o grande artífice do processo constitucional. Se ele não tivesse voltado, não quero dizer que as propostas que brotaram das iniciativas dos constituintes e das emendas populares deixariam de prosperar, mas haveria alguém com a autoridade moral que ele possuía e a competência política que ele sempre demonstrou? Se ele não estivesse presente, as dificuldades seriam bem maiores nesse trabalho de articulação para viabilizar as propostas mais polêmicas, que reclamavam uma maturação mais demorada. Isso tudo foi favorecido pelas articulações que ele, genialmente, sabia processar com habilidade, fazendo concessões, estabelecendo recusas, mas buscando exatamente um alternativa consensual que viabilizasse a aprovação da proposta. Esse, sem dúvida, foi um dos instantes mais delicados vivenciados pela Constituinte.

Agência Senado - Que outro episódio foi igualmente preocupante?

Mauro Benevides - O outro momento delicado foi quando, diante da seqüência de inserções de direitos sociais na Constituição - como licença-maternidade, licença-paternidade e outros direitos assegurados aos trabalhadores - o [então] presidente [da República] José Sarney, que teve notável desempenho no processo de transição democrática, demonstrou sua apreensão. Ele receava a sobrecarga de responsabilidades que, em sua opinião, poderia acarretar a ingovernabilidade do país. A advertência candente do presidente Sarney, feita em cadeia nacional de rádio e televisão, teve ampla repercussão junto aos constituintes e à opinião pública. Isso obrigou Ulysses a, também através de uma cadeia nacional, defender a soberania do poder constituinte. Esse foi sem dúvida um dos momentos mais dramáticos vividos naquela época. Mas serviu para assegurar a continuidade dos trabalhos com a aquiescência, ou a implícita aquiescência, do presidente Sarney, que terminou entendendo que as propostas da Constituinte não tinham o potencial de acarretar ônus exagerados para o erário.

Agência Senado - Se os constituintes tivessem criado um programa como o Bolsa-Família, qual teria sido a reação de Sarney?

Mauro Benevides - Eu não sei se o presidente Sarney teria suportado isso, já com as dificuldades que ele vislumbrava e que terminaram não se concretizando. Com certeza, nesse caso, o pronunciamento dele na televisão teria sido muito mais contundente. Ele achava que a criação de tantos direitos sociais ia deixar o país ingovernável. O que aconteceu é que o país também cresceu e as inovações inseridas na Carta não trouxeram nenhum desequilíbrio na vida financeira do país. E hoje, na era Lula, estamos é crescendo.

Agência Senado - Mas é no instituto da medida provisória que o senhor aponta o grande erro da Constituinte, não é?

Mauro Benevides - O grande erro foi cometido na reorientação do texto para o sistema presidencialista, quando vínhamos trabalhando para o parlamentarismo, o sistema preferido do senador Afonso Arinos. Incumbiu-se dessa mudança o senador Humberto Lucena, que promoveu articulações para que prevalecesse essa diretriz. Ele alegava, em favor do Presidencialismo, que, em duas consultas plebiscitárias, a população brasileira tinha se manifestado contra o Parlamentarismo. Só que nessa transformação do sistema de governo, que já se fez numa etapa muito próxima do término dos trabalhos, essa obra de readaptação não foi suficiente para que se retirasse do texto institutos marcadamente parlamentaristas, como a Medida Provisória.

Entendeu-se ali que, extinto o decreto-lei, instituto draconiano oriundo da ditadura, a Medida Provisória iria ensejar uma celeridade maior ao processo de elaboração legislativa. Prevaleceu a Medida Provisória, que hoje continua sendo objeto de contestação e que nenhum presidente, seja Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, deixou de utilizar abusivamente.

Hoje, a gente vê o erro. É uma Constituição com um calcanhar de Aquiles. Nosso grande erro foi deixar no texto a Medida Provisória. Outro erro foi o fato de não termos, em 1993, cumprido o dever de realizar por inteiro o processo revisional. Aprovamos apenas seis emendas. Uma das falhas que ainda permanecem é o fato de existirem 51 artigos pendentes de regulamentação, para que os mesmos tenham a sua eficácia e conseqüente aplicabilidade. São 51 artigos que reclamam dos atuais legisladores essa tarefa, sempre protelada com o argumento de que matérias mais atuais aguardam o exame do Parlamento.

Agência Senado - O país hoje é melhor que o desenhado pela Constituinte?

Mauro Benevides - Sob determinados aspectos, sim. Sarney completou a normalidade político-institucional. Tivemos depois o governo Collor, com seu projeto de situar o Brasil no primeiro mundo, e que, temos de reconhecer, deu uma arrancada para situar o país lá fora. Não se pode esquecer que Itamar Franco conduziu uma administração extremamente firme e segura do ponto de vista financeiro, com o apoio de Fernando Henrique Cardoso e de Ciro Gomes. Itamar conduziu o processo do Plano Real, que sinalizou a prosperidade que vivemos na presente conjuntura.

Agora, do ponto de vista de recuperação econômica, não há dúvida que nós vivemos hoje um outro momento. O crescimento da economia, a sorte que teve o presidente Lula de conduzir esse processo, faz o quadro de hoje mais auspicioso do que o vivenciado no período da Constituinte e no período pós-Constituinte. O Brasil hoje usufrui isso. Houve uma seqüência de fatos para justificar o que vivemos hoje.

Mais informações sobre os 20 anos da Constituição no endereço http://www2.camara.gov.br/internet/constituicao20anos



01/08/2008

Agência Senado


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