Serra defende “estabilidade sem desigualdade”









Serra defende “estabilidade sem desigualdade”
Ao assumir candidatura, ministro evita atritos com equipe econômica e prega “progresso para todos”

BRASÍLIA – O ministro da Saúde, José Serra (PSDB), lançou-se ontem na corrida presidencial, antecipando o lema que pretende adotar em seu eventual governo: “Nada contra a estabilidade, tudo contra a desigualdade.” No discurso de 14 páginas, escrito pelo próprio ministro, ele procurou mostrar sintonia com a equipe econômica do governo Fernando Henrique Cardoso.

“A estabilidade tornou possível melhorar a vida dos brasileiros, combater a pobreza e aumentar as oportunidades de emprego”, disse. Ele ressaltou, ainda, que o Brasil tem um rumo claro desde o Plano Real e que pretende manter “as coisas certas e fazer aquilo que não foi possível fazer”. Frisou que é preciso ir mais longe, perseguindo o progresso para todos.

Como era previsto, não houve críticas à condução da política econômica. Na segunda-feira, porém, Serra terá um encontro com empresários do Rio e deverá ser questionado sobre suas idéias para a economia. A iniciativa é do secretário-geral do partido, deputado Márcio Fortes (RJ).

Durante o lançamento, no Espaço Cultural Zumbi dos Palmares, na Câmara, Serra foi bastante aplaudido e controu com a presença maciça de tucanos, de Norte a Sul do País. O governador do Ceará, Tasso Jereissati, que resistiu até a véspera da cerimônia, não só compareceu como se sentou ao lado do ministro.

Oposição – Para Serra, não há por que perder tempo com “o debate falso” da conveniência de participar do processo de globalização. Ele acha que o importante é discutir os interesses do País nesse quadro.

Ao falar da crise na Argentina, como “exemplo do que não devemos fazer”, o ministro alertou: “A principal lição que podemos tirar do sofrimento argentino é a do risco que representa para os destinos de uma grande nação ser conduzida com fraqueza de vontade política e incompetência.”

Serra falou do leque de alianças que planeja para chegar ao Palácio do Planalto. E elogiou a oposição por apoiar suas propostas no Congresso, sobretudo na defesa dos medicamentos genéricos.

Em um aceno à Igreja, o ministro citou a médica Zilda Arns e seu trabalho na Pastoral da Criança, que ajudou a reduzir índices de mortalidade infantil. Lembrou, ainda, a carreira do professor e pesquisador Luiz Hildebrando Pereira da Silva. Serra emendou ressaltando sua própria “competência e obstinação negociadora”, que lhe deram vitória na questão dos genéricos e na quebra de patentes de remédios.

Diálogo – A palavra competência apareceu insistentemente no discurso. Foi assim até no recado aos nordestinos, que fez a alegria do governador de Sergipe, Albano Franco, e arrancou aplausos. Serra disse que a esperança, a força de vontade e a competência dos migrantes contribuíram muito para erguer o parque industrial de São Paulo.

O ministro não concorda com a tese de que política é a arte do possível: “Para mim, política é a arte de ampliar os limites do possível.”

O discurso lembrou sucessos e alegrias, vitórias e derrotas eleitorais. Por fim, a promessa de diálogo: “Tenho consciência de que uma ampla convergência de vontades políticas é importante para a vitória e essencial para a vida democrática e êxito da ação governamental.”


Disputa de cargo executivo já lhe rendeu 2 derrotas
O histórico do ministro José Serra (PSDB) na disputa por cargos executivos torna ainda maior seu desafio de fazer crescer os 7% de intenção de votos para a Presidência da República nas pesquisas. Serra perdeu por duas vezes a Prefeitura de São Paulo, em 1988 e 1996. Na primeira vez, então deputado federal pelo PSDB, amargou o quarto lugar, com apenas 5,6% ou 290.815 votos. Ficou atrás da eleita Luiza Erundina (PT), de Paulo Maluf (PDS) e de João Leiva (PMDB).

Em 1996, contra Celso Pitta (PPB) e Luiza Erundina, ficou em terceiro lugar com 15,6% (891.995 votos). A favor de Serra está o fato de o presidente Fernando Henrique Cardoso, então senador, ter também perdido a Prefeitura paulistana, em 1985, para Jânio Quadros.

O sucesso eleitoral de Serra se dá na disputa por cargos no Legislativo.

Elegeu-se em dois mandatos consecutivos deputado federal e, em 1994, ao Senado com 6,5 milhões de votos.

Economista da corrente de pensamento desenvolvimentista da Comissão de Economia para a América Latina e Caribe (Cepal), Serra assumiu pela primeira vez um cargo executivo na Secretaria de Planejamento de São Paulo, no governo Franco Montoro, em 1983. Foi recebido com as ressalvas dispensadas aos intelectuais que se aventuram a pôr em prática suas idéias, mas logo ganharia mais notoriedade por uma característica pessoal que o prejudicaria na vida pública: a fama de centralizador. Secretários reclamavam que os orçamentos de suas pastas eram feitos sem que fossem consultados.

A onipresença garantiu-lhe a eleição como deputado constituinte, em 1986.

Dois anos antes, traçou um plano para os primeiros cem dias do mandato presidencial de Tancredo Neves, em que se destacavam quatro pontos: combate à inflação e ao desequilíbrio da dívida pública, ação de emergência contra a pobreza, políticas agrícola e industrial e alterações na economia, sobretudo a realização de uma reforma tributária.

Surpreendido com a morte de Tancredo, Serra só viria a ocupar o Ministério do Planejamento em 1995, no primeiro governo de Fernando Henrique. Ele assumiu o Ministério da Saúde em março de 1998.


Candidato destaca “lições de vida”
O ministro da Saúde, José Serra, destacou em seu discurso de candidato à Presidência duas pessoas que lhe deram lições de "generosidade e competência". Além da médica Zilda Arns, reconhecida pelo trabalho que desenvolve à frente da Pastoral da Criança, ele fez uma menção especial ao professor Luiz Hildebrando Pereira da Silva, de 73 anos, que atualmente vive em Porto Velho, Rondônia, na Região Norte.

O pesquisador Luiz Hildebrando foi contemporâneo de Fernando Henrique Cardoso na Universidade de São Paulo (USP). Ambos lutaram pelo retorno da democracia no País.

Ex-militante do Partido Comunista Brasileiro, expulso pela ditadura em 1964, Luiz Hildebrando se tornou um cientista do Instituto Pasteur, de Paris, onde ocupou o cargo de diretor por 20 anos. Referência mundial na pesquisa da malária, hoje trabalha no Centro de Pesquisas de Medicina Tropical, em Porto Velho. Teve um rápido contato com Serra durante o exílio, na França.

"Acompanhei a trajetória do ministro, que tem feito um trabalho extraordinário, original e competente no Ministério", afirmou ontem o pesquisador, ao saber que foi citado pelo candidato tucano à Presidência.


Os principais pontos do discurso
Progresso - "A estabilidade da nossa moeda, um objetivo difícil, caro e precioso, tornou possível melhorar a vida dos brasileiros, combater a pobreza e aumentar as oportunidades de progresso. Agora, temos de ir mais longe, temos de avançar (...). O Brasil tem seguido um rumo claro desde o Plano Real, sob as administrações do presidente Fernando Henrique. Eu quero manter as coisas certas e fazer aquilo que não foi possível fazer. Tudo isso para trazer mais progresso. E progresso para todos."

Crise argentina - "O mundo continua sendo feito de nações soberanas, com suas diferenças, e seus interesses. Países que seguiram, ou foram obrigados a seguir, as certezas dos outros pagaram caro pelas más escolhas. É o caso da Argentina. (...) A principal lição que podemos tirar do sofrimento argentino é a do risco que representa para os destinos de uma grande nação ser conduzida com fraqueza de vontad e política e incompetência."

Exportações - "No mundo da globalização, o Brasil precisa produzir mais, exportar mais e gerar grandes excedentes comerciais com o exterior. Isto reduzirá nossa dependência de financiamentos externos a proporções mais modestas e, com a estabilidade da moeda, permitirá reduzir os juros, estimular os investimentos produtivos, fortalecer as empresas brasileiras, das grandes às pequenas, e acelerar o crescimento da produção e do emprego."

Desigualdade - "A bandeira do Brasil nunca significou que podemos ter o progresso para alguns e a ordem para outros. Se o progresso não for para todos, não haverá ordem para ninguém."

Trajetória - "Orgulho-me de ter sido um dos fundadores de meu partido, o PSDB, ao lado de companheiros como o inesquecível Mário Covas, e de ter sido coordenador do primeiro programa de governo do PSDB. (...) Como deputado, contribuí para o fortalecimento dos direitos sociais, tornando possível o seguro-desemprego e criando o Fundo de Amparo ao Trabalhador. (...) Como ministro do Planejamento, ajudei na consolidação do Plano Real, na recuperação dos investimentos e concorri para expandir, tornar mais eficiente e descentralizar setores da indústria. (...) Fui o primeiro não médico a assumir o Ministério da Saúde."

Candidatura - "Falo sobre estas passagens da minha vida pública porque dirigir um país, neste momento delicado do mundo, é muito difícil. Exige, mais do que no passado, esperança, força de vontade, ação competente. Exige amor à verdade e à razão. (...) Para mim, política é a arte de ampliar os limites do possível. Ampliá-los ao máximo, até o limite de nosso engenho e de nossa tenacidade. Quero ser presidente porque acredito que posso unir a esperança com a experiência, o conhecimento com a ousadia."

Alianças - "Não hesitaremos em buscar o diálogo com outros partidos, movimentos sociais e personalidades públicas. Tenho consciência de que uma ampla convergência de vontades políticas é importante para a vitória e essencial para a vida democrática e o êxito da ação governamental."


Citação de Itamar irrita tucanos mineiros
Azeredo já avisa: "Serra terá de escolher entre o governador e o PSDB de Minas"

BRASÍLIA - Todo o esforço para unir o PSDB em torno da candidatura de José Serra esbarrou no comportamento do próprio candidato. Serra, que não conta com a simpatia de colegas ilustres de partido, como o governador do Ceará, Tasso Jereissati, provocou, ontem, a irritação dos tucanos mineiros, manifestada publicamente.

O ex-governador de Minas, Eduardo Azeredo, do grupo do presidente da Câmara, Aécio Neves, e do ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga, lamentou gestos de Serra em direção ao ex-presidente da República e governador mineiro, Itamar Franco, adversário declarado de Fernando Henrique Cardoso.

Além de ter feito um telefonema para Itamar, na semana passada, Serra citou-o em seu discurso. O ministro lembrou que foi Fernando Henrique quem acabou com a inflação, graças ao convite de Itamar para que ele ocupasse o Ministério da Fazenda.

Ligado a Tasso, Azeredo comentou o gesto e foi incisivo: "Ele terá de escolher entre o PSDB mineiro e Itamar Franco." E continuou: "Se Serra quiser os votos do PSDB de Minas, terá de ser conosco e não com Itamar."
O ex-governador disse que deseja alertar Serra para a escolha de boas companhias. "Itamar é uma companhia indesejável", constatou. Azeredo disse ainda que o atual governador é inconciliável com o PSDB mineiro.

Preocupação - As declarações de Azeredo causaram preocupação à cúpula do PSDB. O líder do partido na Câmara, Jutahy Júnior (BA), pediu ao deputado Carlos Mosconi (MG) para conversar com Azeredo e tentar acalmá-lo. "Vamos pôr panos quentes", disse Jutahy. Para ele, trata-se de briga regional e momentânea, que não pode ofuscar o brilho do lançamento da candidatura de Serra.

Já o presidente nacional do PSDB, deputado José Aníbal (SP), mostrou preocupação com a situação mineira e deu razão a Azeredo. "As questões regionais devem prevalecer e isso precisa ser administrado".

Renata Covas, da executiva nacional, responsável pelo lançamento da pré-candidatura de Tasso a presidente da República, em outubro, insistiu na idéia de que a festa de lançamento foi uma demonstração de união. "Perdeu quem achava que o partido estava desunido", afirmou a filha do governador Mário Covas.

Palanque - O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, disse que não há necessidade de Fernando Henrique, que não estave no lançamento, subir em palanques para demonstrar seu apoio a Serra. Ele acredita na transferência natural dos índices de popularidade do governo para o candidato.

"Há governos que são reconhecidos depois que acabam, mas a atuação do presidente já tem méritos", afirmou. "O apoio do presidente é importante, mas ele não precisa participar da campanha". E completou: "O piloto é experiente, não tem medo de tempo ruim, a rota é segura e nós vamos fazer uma bela jornada."

A despeito dos mineiros, os governadores tucanos que prestigiaram o candidato destacaram a unidade do PSDB, a expectativa em torno da aliança, e o otimismo quanto a sua eleição. Para o governador de Mato Grosso, Dante de Oliveira, a retomada da aliança em torno do nome de Serra deve ser levada tão a sério quanto a busca de votos para o candidato. "Temos de ser tão práticos agora quanto fomos para costurar a unidade partidária."


Governador pefelista declara apoio a Serra
Amigo de FHC, Siqueira Campos oferece o Tocatins para o ministro iniciar campanha

BRASÍLIA - O governador de Tocantins, Siqueira Campos, foi o primeiro pefelista a desertar da candidatura à Presidência de Roseana Sarney, de seu partido, para apoiar o ministro José Serra, lançado ontem pré-candidato tucano. O governador fereceu o Tocantins para que Serra inicie a sua campanha.

Num telefonema ao presidente do PSDB, deputado José Aníbal (SP), Siqueira Campos afirmou que Serra é o seu candidato desde já. Aníbal ficou intrigado.
Como vem mantendo diálogo com os presidentes de todos os partidos da base aliada, e tem a esperança de que ela seja mantida, Aníbal preocupa-se em não provocar ninguém.

O senador Eduardo Siqueira Campos (PSDB-TO), filho do governador, disse a Aníbal que a atitude de seu pai é coerente. "Meu pai tem ligações profundas com o presidente Fernando Henrique e é natural que apóie o candidato que tenha a sua preferência", argumentou.

O senador lembrou que em 1994 Siqueira Campos pertencia ao PPB, que lançou o então senador Esperidião Amin candidato à Presidência. Mas Siqueira Campos avisou ao partido que apoiaria Fernando Henrique Cardoso.

"Naquela ocasião, todo mundo entendeu a atitude de meu pai", continuou o senador. "Tenho certeza de que ele vai conversar com os dirigentes do PFL e eles concordarão."

Siqueira Campos pretende se candidatar ao Senado. Em outra época, não teria problemas para se abrigar em nenhum partido, porque tem influência nos principais. O filho senador é dirigente do PSDB local; duas filhas são do PTB e o PPB também é controlado por ele. Entretanto, se for obrigado a deixar o PFL, não poderá se candidatar ao Senado, porque o prazo de filiação para os candidatos às eleições deste ano terminou em 6 de outubro.

Dissidências - Ao ser questionado sobre as intenções de Siqueira Campos, o presidente do PFL, senador Jorge Bornhausen (SC), disse ontem em São Paulo, que em seu partido não haverá dissidências.

"Não conheço o texto e nem o contexto e respeito muito o governador, mas quero dizer claramente que no PFL não há lugar para dissidências, mas há prazos para arrependimentos", declarou.

Sobre o fato de Serra não ter citado nem o PFL nem Roseana no discurso de lançamento d e sua pré-candidatura, Bornhausen disse que não há razão para um pré-candidato fazer referência a outro. "Não há nada a estranhar", avaliou.

Sobre isso, Roseana disse: "Pergunte para o Serra que ele vai te dizer melhor do que eu."

Bornhausen afirmou que é necessário manter as boas relações com o PSDB.

"Ainda há um ano de governo do presidente Fernando Henrique Cardoso e assumimos o compromisso de apoiá-lo em praça pública de l994 e l998, então esta relação é fundamental", ressaltou. O senador disse também que nenhum partido tem maioria no Congresso sozinho, portanto, a aliança é fundamental manter a governabilidade.

Roseana e Bornhausen estiveram no escritório do publicitário Mauro Salles que é presidente do Movimento PFL 2000, dedicado a cuidar das estratégias do partido. Segundo assessores, a visita serviria para discutir o Movimento Brasil com Roseana (Move BR). No entanto, a informação foi negada pela governadora e pelo senador.

Move BR é a tentativa de criar uma estrutura suprapartidária de apoio à candidatura da governadora do Maranhão. "O objetivo é mostrar que sua candidatura nasce muito mais dos seus próprios méritos e da opinião pública, do que de uma iniciativa do PFL", esclarece o secretário-geral do partido, Saulo Queiroz.


Artigos

Corralito sem porteira
Washington Novaes

Para um brasileiro, chegar nestes dias à Argentina - como sucedeu ao autor destas linhas, que lá esteve durante a última semana de dezembro e as duas primeiras de janeiro - é um susto, seguido de perplexidade. Qualquer argentino a quem se pergunte qualquer coisa responde com um destampatório de condenação a todas as instituições da democracia representativa - Executivo, Legislativo, Judiciário -, aos políticos, ao sistema bancário. E se declara arruinado e sem perspectiva, com a retenção dos depósitos bancários, aplicações e poupança (o chamado "corralito", curralzinho), a redução de salários do funcionalismo público e dos aposentados que recebiam mais de 500 pesos por mês, o desemprego (18,3% da população economicamente ativa, ou 2,6 milhões de pessoas, em outubro último).

Não espanta, assim, que, de repente, cinco ou seis pessoas se juntem numa esquina qualquer da cidade e comecem a bater panelas, tampas e colheres, num "cacerolazo" que logo terá centenas de pessoas em coro. Ou que dali a pouco haja outro "cacerolazo" em outra esquina, algumas quadras adiante, e que as manifestações se espalhem em poucas horas por toda a Grande Buenos Aires e outras cidades, sem que ninguém - partido político, sindicato, grupos ou o quem quer que seja - as inspire, organize, comande. Nem que parte desses milhares de pessoas conflua para a Casa Rosada (sede do governo) e tente invadi-la, como invadiu o Congresso, ministérios e tentou invadir a Corte Surprema. Se tudo não desandar para protestos de desempregados exigindo comida na central de abastecimento ou grupos mais agressivos apedrejando bancos.

Ninguém ousa falar em nome do povo. E é sintomático que ressurjam nos muros pichações com o símbolo do anarquismo, que já teve sua influência na vida política do país e ajudou a povoar prisões até na Terra do Fogo, nas primeiras décadas do século 20.

As propostas sobre a mesa nestas semanas dramáticas são as do presidente Duhalde, avalizado pela Igreja Católica, de um novo "pacto social", ainda indefinido, enquanto os acontecimentos se precipitam e se discute um projeto de reforma da Constituição, mas só em junho e com o objetivo fundamental de reduzir o números de congressistas e de juízes da Corte Suprema (como se a redução do número extirpasse magicamente a "corrupção", apontada como causa principal da derrocada do país). Fora daí, só a proposta da deputada Elia Carrió, da Alternativa para uma República de Iguais (ARI) , de eleições gerais em 90 ou 120 dias. Mas como agüentar até lá, se a própria deputada prevê "um novo furacão popular" para os próximos dias?

Enquanto isso, o país afunda na crise. Queda de quase 5% na produção industrial nos últimos 12 meses, dívida pública saltando no período de US$ 125 bilhões para US$ 147 bilhões, reservas despencando de US$ 34,5 bilhões para US$ 19,2 bilhões, depósitos bancários diminuindo de US$ 87,7 bilhões para US$ 68,5 bilhões em 12 meses. Tudo isso embora, nesses 12 meses, o país tenha obtido saldo positivo de US$ 6,3 bilhões na balança comercial.

Mas não só os depositantes em bancos estão encurralados. O governo, também.

Parecem insuportáveis as pressões externas diante da decisão de desdolarizar as tarifas das empresas de serviços públicos privatizadas (por capitais de vários países), desatrelá-las de índices de correção da inflação vigentes nos EUA e renegociar os contratos. As empresas petrolíferas não aceitam o imposto de emergência anunciado pelo governo, que lhe permitiria arrecadar mais US$ 8 bilhões em um ano. O sistema bancário assusta-se com as conseqüências da "pesificação" de parte dos depósitos e das dívidas - quem pagará os prejuízos? Credores perguntam como ficarão diante da suspensão do pagamento do débitos externos. Instituições internacionais temem que o modelo se propague para outros países que adotaram as privatizações de empresas públicas. Há quem tema que os interesses externos prefiram ver desmoronar tudo e esperar até serem chamados para oferecer uma fórmula "salvadora".

Com impaciência progressiva, os depositantes bancários não se conformam com os prazos do "corralito" para devolver seu dinheiro, que podem chegar até a quatro anos, dependendo do valor. Mas o ministro da Economia, em pronunciamento pela televisão, já mostrou que não há alternativas. Segundo ele, o sistema perdeu em um ano US$ 20 bilhões em depósitos que foram para o exterior (fala-se que o total remetido seria de US$ 100 bilhões); se todos os depositantes sacassem hoje, "o sistema bancário faliria"; sua alternativa seria exigir o pagamento imediato de todos os financiamentos a empresas - e "estas quebrariam".

"Herdamos um situação insustentável", disse ele na TV. "A conversibilidade (de pesos em dólar, um por um) nos fez acreditar que o maior valor de um povo é o sistema financeiro, o valor da moeda, quando o valor verdadeiro é o trabalho do povo, o sistema produtivo", disse um senador, durante a aprovação das medidas propostas por Duhalde. "Mas hoje se usam para derrubar a paridade os mesmos argumentos usados para aprová-la", criticou uma senadora.

Como será, então, com os argentinos perdendo a paciência e a esperança (até uma filha do presidente participa dos "cacerolazos", ele mesmo admitiu), jornalistas perguntando na TV a membros do governo se eles não temem a invasão dos palácios? Vingará a proposta de um "novo pacto"?

A sensação é de que nada funcionará se não se evoluir para alguma forma de participação da sociedade nas instituições que a representam. Mesmo isso parece difícil, numa hora em que "os argentinos deixaram de acreditar neles mesmos", viram "desintegrar-se sua identidade", em função da "bancarrota financeira e moral", como observou num jornal o escritor Alberto Manguel.

Não há certezas. A não ser a de que sem concessões não haverá saída.

Quem abrirá uma porteira no "corralito" institucional?


Colunistas

RACHEL DE QUEIROZ

De um punhado de barro
Pensando bem, nós, os humanos, somos todos uns mal-agradecidos. A começar pelo dom da vida, que ninguém agradece e recebe como coisa que lhe é devida.

E não é. Nós, cada um de nós, não somos planejados coisa nenhuma, nascemos do encontro ocasional dos "micróbios da criança" (como dizia uma conhecida minha, contando como se dera a sua indesejada gravidez).

Mesmo os casais que desejam ter filhos se entregam ao acaso, ou mesmo a Deus, na suposição de que Deus se envolva em assuntos tão íntimos.

Aliás, em menina, sempre me preocupava o fato de Deus, Todo-Poderoso, não criar a gente como criou Adão, de um punhado de barro. Poderia, querendo privar-se da cansativa tarefa, delegar poderes ao homem para a reprodução direta da espécie. E aí algo me diz: mas foi exatamente o que Ele fez!

Apenas não facilitou demais, dividiu entre Adão e Eva a fonte criadora, cabendo a ela ser o receptáculo ou o hospedeiro do futuro ser e a ele, Ele, Deus, produzir a centelha criadora, sem a qual o milagre não se operaria.

Deus, que é mágico e gosta de operar suas mágicas sem interferências, criou os órgãos de reprodução nos seres masculinos e femininos, determinou que só funcionassem quando o casal atingisse idade adulta (quer dizer, tivessem capacidade para alimentar e criar o filho que iriam gerar).

Ah, como dizem agora os jovens: Deus é 10! Faz tudo pelo melhor, pensa nos ínfimos detalhes. Acho que, ofendido talvez com o nosso orgulho em sermos os "senhores da criação", Deus nos mostra que gasta o mesmo tempo e trabalho em produzir um besouro, um cachorro ou um homem. Talvez até Nosso Senhor goste muito mais de reproduzir bichinhos inocentes do que soprar vida nesses atrevidos e ingratos bípedes que se chamam homens e que, por cada poeta, por cada santo que veja nascer, tenha de aturar milhões e milhões de empedernidos pecadores.

Ou será que um santo é um ser tão especial que Nosso Senhor se sente bem pago com uma magra colheita de justos, em relação aos milhões de - diga-se - injustos?

O fato, talvez, é que o limo da terra, com fomos compostos, seria material de má qualidade, repleto de impurezas. Pegue um punhado de terra, aparentemente limpo e o examine a um microscópio potente. Cada caroço de terra parece um torrão, mas o espantoso é que fervilha de vida, coisas quase invisíveis que se mexem, e não se sabe a que reino da natureza pertencem - mineral, vegetal ou animal.

Dá susto. Por essa ninguém espera. E me dizem que, se pusermos sob o tal potente microscópio um pedaço qualquer do nosso corpo, se verá que em nós, na nossa pele, na nossa carne, pululam os seres invisíveis, hóspedes constantes da nossa pessoa.

É humilhante, não é? Como também é humilhante a narrativa bíblica de que Eva foi feita de uma costela de Adão. Por que a costela, osso tão inexpressivo, que serve apenas junto com as demais costelas, para armar o arcabouço do peito humano? Por que não nos retirar, a nós mulheres, do coração dele - ou melhor ainda, da cabeça, do cérebro?

"Deus é 10", sim, mas às vezes faz coisas que a gente não entende e, por isso, ressente. Se deu ao homem força e tamanho para oprimir a mulher, e até espancá-la, se raivoso - por que entregou à frágil mulher, à dominada mulher, a sede própria da vida, onde o feto se forma e vira gente?

Aliás, nós, mulheres, sabemos que somos a parte mais confiável do casal humano. Se não fosse a gente, o homem não trabalhava, não assumia responsabilidades, ficava na flauta, se divertindo, se contentando em morar debaixo de uma árvore.

Toda mulher sabe o trabalho que lhe deu educar o seu homem; e, se não proclamamos isso, é porque eles podem fazer greve, e então quem é que vai ganhar para nós o pão de cada dia?


Editorial

LIDERANÇA DE VISÃO ESTREITA

No seu primeiro discurso sobre a América Latina desde o 11 de setembro, o presidente George W. Bush cobrou do governo Duhalde "um plano econômico sólido e sustentável" para os Estados Unidos ajudarem a Argentina, por meio das instituições financeiras internacionais, a "enfrentar a tempestade". Bush também disse que o colapso econômico e financeiro argentino tem levado "alguns", no Continente, a questionar os méritos das reformas orientadas para o mercado e da abertura comercial, "acenando com o falso conforto do protecionismo". São comentários reveladores de uma estreiteza de visão aparentemente intratável.

A observação sobre o livre comércio, levanta, de imediato, a inevitável pergunta: por que os Estados Unidos - que disputam com a União Européia a liderança do que seria um campeonato mundial de protecionismo - não fazem o que pregam? E a outra, sobre a Argentina, obriga a indagar: será que os EUA e os organismos multilaterais que seguem a sua orientação não enxergam que, sob a tempestade, tudo que os argentinos podem fazer é não se deixarem levar pelas águas? Quem está lutando desesperadamente para não se afogar precisa de uma bóia - não de um curso de estilo em natação a distância. Ou, para usar outra metáfora: antes de estancar a hemorragia como fazer a transfusão de sangue para preparar o paciente para a cirurgia?

Que condições tem a Argentina, agora, de apresentar a seus credores qualquer coisa parecida a "um plano econômico sólido e sustentável"? É de pasmar que o mundo rico não perceba que a tragédia argentina, por onde quer que se a examine, configura uma situação absolutamente sem precedentes. Para começar, não se trata de um país primitivo, cujos índices crônicos de miséria extrema, atraso, doença, corrupção e violência étnica praticamente impedem de tornar-se uma nação organizada. A Argentina, mesmo que se admita que tenha sido civilizada "a golpes de barbárie", como diz o escritor portenho Tomás Eloy Martínez, é um edifício robusto, moderno, de fundações sólidas, que desmorona, mas não se assemelha aos do Quarto Mundo. Ali, há o que reconstruir.

Além disso, nenhum outro país digno do nome já enfrentou, ao mesmo tempo, recessão, crise social, crise fiscal, crise cambial e crise de liquidez. Não bastasse esse acúmulo de infortúnios, seria espantoso se o Estado argentino - exangue, desmoralizado e alvo da ira de um povo que sabe o que não quer, mas descrê que as instituições públicas lhe proporcionem o que quer - dispusesse de recursos políticos para fazer mais do que frear o processo de deterioração nacional, diferentemente do que ocorreu em outros países atingidos pelas tormentas da globalização, porque neles havia governos e elites burocráticas operantes.

Na Argentina, cada dia que termina com Duhalde ainda presidente e sem que o país tenha mergulhado em completa anarquia é uma proeza e uma esperança.

Enquanto isso, fazendo abstração de todas essas desconcertantes realidades - e, sobretudo, dando de ombros para o que a psicanalista argentina Silvia Bleichmar denominou, meses atrás, "el dolor país" -, os poderosos da Terra e os seus porta-vozes dirigem-se aos argentinos de dedo em riste, deles exigindo o que não podem dar, olimpicamente alheios ao risco de que, se sobrevier o pior, o caos político, Buenos Aires não lhes dará nem o pouco que ainda promete - saldar os seus compromissos mais adiante.

Em artigo transcrito ontem neste jornal, sob o título Países como a Argentina podem declarar falência?, a vice-diretora-executiva do Fundo Monetário Internacional (FMI) dá uma demonstração cabal dessa mentalidade alienada e, no limite, suicida. Extemporaneamente, cobre de críticas a Argentina em moratória por sua imprevidência passada; afirma, em tom impávido, que "os países, exatamente como as empresas e os indivíduos (grifo nosso), devem honrar as suas dívidas e sofrer (idem) quando o deixam de fazer"; e lava as mãos: "Infelizmente, é tarde demais para ajudar a Argentina em suas dificuldades atuais."

No mesmo diapasão, o articulista David Wessel, do Wall Street Journal, faz uma analogia profundamente equivocada. "A Argentina e a Enron imploraram por ajuda do governo dos Estados Unidos quando seus credores ficaram inquietos", escreveu ele. "Ambas deram com a cara na porta."

Para esse "formador de opinião" do mais importante jornal econômico dos EUA, o que vale para uma empresa vale para uma Nação. Mas o pior é que e ssa opinião, que reflete uma absoluta alienação em relação a tudo que acontece fora da órbita dos assuntos domésticos dos Estados Unidos, é a mesma tacitamente expressa no discurso do presidente da potência hegemônica do mundo e no artigo da diretora do organismo que pretende garantir a segurança financeira do planeta.


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01/18/2002


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