Serra não empolga aliados







Serra não empolga aliados
Ministro da Saúde age com desenvoltura de candidato a presidente preferido de Fernando Henrique Cardoso, mas aliados do PFL e do PMDB ainda não embarcaram na sua campanha

O ministro José Serra (PSDB), da Saúde, fez esta semana os primeiros movimentos mais explícitos de candidato à Presidência. Deixou-se flagrar em conversas com os presidentes dos partidos da aliança governista, aplaudiu a nomeação de um de seus principais assessores para gerir a verba de publicidade do Planalto, foi incluído em um hipotético ministério global ideal e incensado pelo presidente Fernando Henrique. Mas nada disso foi suficiente para lhe abrir as portas do PFL e do PMDB. O PFL mantém firme e forte a pré-candidatura da governadora Roseana Sarney. O PMDB não diz nada antes das prévias de março.

O surpreendente desempenho de Roseana nas últimas pesquisas eleitorais fizeram do PFL o único partido da aliança governista com um candidato não apenas definido como bem posicionado. Os marqueteiros do partido apostam na consolidação desse quadro na próxima rodada de pesquisas, na semana que vem, quando acreditam que a governadora maranhense se firmará como a alternativa anti-Lula, polarizando com o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, primeiro colocado em todas as pesquisas até agora.

Com base em dados localizados, dirigentes do PFL chegam a afirmar que Roseana, num eventual confronto com Lula em segundo turno, tem potencial para atrair mais de 70% dos votos dos demais candidatos. Se as pesquisas confirmarem essas expectativas, o PFL não terá muitos argumentos para recuar da candidatura da governadora. Segundo avaliam alguns desses dirigentes partidários, Roseana pode inverter o equilíbrio de forças entre PSBD, PMDB e PFL nas últimas eleições e encabeçar a aliança governista no segundo turno.

Por isso, a conversa de Serra com o presidente do PFL, senador Jorge Bornhausen (SC), na quarta-feira, foi interpretada no partido como um gesto cordial, educado, mas formal. De Bornhausen, Serra não ouviu nada de novo: ‘‘Temos interesse em manter a aliança, mas queremos que se estabeleça um critério para escolher o melhor candidato’’. Para o senador, o candidato da coligação deve ser o que tiver melhores condições de vencer a eleição. ‘‘Não exigimos nem fazemos exigências. Mas não aceitamos prato feito.’’

O PMDB transita no vácuo do PFL, a um Itamar de distância da possibilidade de fazer o vice na chapa de Serra. Ao adiar as prévias do partido de janeiro para março de 2002, o PMDB ganha tempo para arrumar a casa, tumultuada pela insistência do governador mineiro Itamar Franco em disputar a eleição presidencial. Se até lá ele emplacar 20% nas pesquisas, e vencer as prévias, ganha o apoio da ala governista do PMDB. Se vencer as prévias com os baixos índices de hoje, consolida a divisão do partido entre governistas e itamaristas em um momento bastante perigoso.

Para os governistas do PMDB, interessados em disputar a eleição de 2002 ao lado de Serra, a melhor saída seria sugstituir o senador Pedro Simon (RS) pelo deputado Michel Temer (SP) na disputa interna contra Itamar, em março. A candidatura de Temer, no entanto, depende da desistência de Simon, que não dá sinais de querer sair do páreo.


Emenda será votada na terça-feira
Está praticamente fechado o acordo para a aprovação da emenda ao artigo 222 da Constituição, que moderniza a estrutura das empresas de comunicação, permitindo a sociedade com outras pessoas jurídicas e a entrada, limitada a 30%, do capital estrangeiro. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) é a primeira matéria da pauta de votação da próxima terça-feira e a aprovação é dada como certa pelo relator, deputado Henrique Alves (PMDB-RN). ‘‘Conseguiremos aprovar a emenda sem os votos da oposição, mas ainda estou buscando um consenso entre todos os partidos porque esta não é uma matéria de interesse do governo, é uma matéria do interesse do país’’, avalia.

Na tarde de quarta-feira, Henrique Alves ficou por mais de três horas reunido com o líder do PT na Câmara, deputado Walter Pinheiro (BA), que levou ao relator as propostas da oposição. Alves acatou uma das propostas considerada de extrema importância pela oposição: a garantia de que os responsáveis pelo conteúdo editorial das empresas de comunicação serão obrigatoriamente brasileiros. ‘‘Houve um grande avanço na nova redação da emenda’’, reconheceu o líder do PDT, deputado Miro Teixeira.

Na busca de um consenso, Henrique Alves se comprometeu a fazer na nova redação referência à necessidade de se regionalizar a produção cultural, artística e jornalística das emissoras de rádio e TV. Este assunto é regulamentado pelo artigo 221 da Constituição e por isso não pode ser diretamente modificado na PEC do artigo 222. ‘‘Fiz o que os outros países fazem para proteger nosso idioma e para manter o absoluto controle sobre o conteúdo veiculado pelas empresas’’, explicou Alves.

A bancada do PT se reúne na terça-feira para avaliar as modificações acatadas pelo relator. ‘‘Vamos ver se é possível agregar mais alguma coisa’’, disse Walter Pinheiro. Entre as sugestões da oposição que ficaram de fora do texto está a criação de um órgão regulador das empresas de comunicação. Henrique Alves argumenta que o Ministério das Comunicações já exerce este papel e um novo órgão só iria burocratizar ainda mais o setor.

A PEC tem que ser aprovada em dois turnos na Câmara por 308 votos. Depois disso, segue para o Senado onde também precisa ser aprovada em dois turnos com a aprovação de 49 senadores.


Temer e Renan apóiam Collor
O presidente do PMDB, deputado Michel Temer (SP), disse ontem que não há obstáculos a um acordo político entre o senador Renan Calheiros, provável candidato do partido ao governo de Alagoas, e o ex-presidente Fernando Collor, que busca apoio para tentar uma vaga no Senado. ‘‘O ex-presidente foi punido com a perda dos seus direitos políticos. Ele ficou oito anos afastado e defendo que volte e que povo decida o seu destino político’’, disse Temer ao iniciar, por Alagoas, a organização do projeto eleitoral do partido para as eleições de 2002.


Parte da restituição só em 2003
Diante da derrota, o governo concorda em corrigir a tabela em 17,5%. Mas ainda insiste em não ter perda de arrecadação. Em troca, quer deixar para sucessor a devolução de parte do tributo pago a mais

A tabela do imposto de renda, distorcida há quase sete anos, deverá ser corrigida em 17,5%. Diante da certeza da derrota, o governo cedeu a correção. Em troca, porém, o secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, quer parcelar a restituição do imposto de renda no próximo ano, deixando para pagar uma parte apenas em 2003, como forma de diminuir o impacto da correção na arrecadação. Para negociar nesses termos, o governo usará todo o prazo que pediu, em busca de uma solução de consenso. Às vésperas da votação do assunto, marcado para terça-feira, na Câmara, o Ministério da Fazenda entregará ao presidente Fernando Henrique Cardoso as simulações encomendadas ao secretário da Receita Federal, Everardo Maciel. Ele vai passar o fim de semana transformando em números a proposta apresentada pelo relator do Orçamento da União, Sampaio Dória (PSDB-SP).

Pela proposta, os valores que hoje estabelecem cada alíquota e o limite de isenção serão corrigidos em 17,5% (leia quadro ao lado). Como isso implica perda de arrecadação, o Congresso autorizaria o governo a parcelar em duas vezes a restituição do Imposto de Renda no próximo ano. A primeira parcela obedeceria o calendário normal e seria paga ao longo do ano. A segunda, que valeria apenas para rendas acima de um limite ainda não escol hido, mas que deve ser para salários acima de cerca de R$ 9 mil, ficaria para janeiro de 2003.

Para o contribuinte, a correção proposta por Sampaio Dória representaria a recuperação de metade do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC, colhido pelo IBGE) acumulado entre 1996 e 2001. Nos cálculos da Receita, a perdade de arrecadação seria de R$ 2,6 bilhões. Se prevalecesse a proposta inicialmente pretendida pela oposição, pelo PMDB e pelo PFL, de correção de 20%, a perda seria de $ 3,5 bilhões.

Para compensar ainda mais a queda na receita da União, o relator do Orçamento do próximo ano propõe a prorrogação da alíquota de 27,5% para dezembro de 2003. Essa alíquota, que atualmente incide sobre rendas acima de R$ 1.800 mensais, voltaria ao normal, ou seja, a 25%, em janeiro de 2003. Significa que o caixa do governo ficaria equilibrado até o primeiro ano de mandato do próximo presidente da República.

Tais idéias já contam com o apoio do PSDB, PFL, PTB e PPB. Mas não seduzem o PMDB. Nem agradam à oposição, que insiste na correção de 20%, como havia sido acordado com o PMDB e com o PFL antes da reunião de terça-feira entre Fernando Henrique Cardoso e as lideranças aliadas ao seu governo.
‘‘O governo está querendo ganhar tempo para não votar a correção da tabela’’, acusa Walter Pinheiro (BA), líder do PT na Câmara. Ele quer que o assunto seja discutido e votado na terça-feira. ‘‘Não dá para ficar choramingando e embromando, ou só conseguiremos votar isso depois do dia 15 de fevereiro.’’

A divisão da restituição em duas parcelas também está sendo criticada pela oposição. ‘‘Será o futuro governo que irá pagar a conta’’, diz Pinheiro. Para o deputado Aloizio Mercadante (PT-SP), o governo está querendo ‘‘fazer política com o dinheiro dos outros’’. Tal afirmação irritou Pedro Malan, ministro da Fazenda, que ontem foi à Câmara convocado pela CPI do Proer e aproveitou para cutucar o PT que, segundo ele, está ‘‘de salto alto’’.


Urgência para projeto
A Câmara dos Deputados pretende estender a regulamentação da atividade de lobistas no Congresso para os poderes Executivo e Judiciário, para os estados e para os municípios. Ontem, os deputados aprovaram a urgência para o projeto do então senador Marco Maciel (PFL-PE), parado há oito anos na Casa. Com a urgência, o projeto pode ser votado antes do recesso parlamentar. O Congresso tirou o projeto da gaveta depois de revelada a rede de lobby de Alexandre Paes dos Santos. Na agenda do lobista, apreendida pela Polícia Federal, há registros de jantar, almoço e audiência com ministros e outras autoridades do governo. O lobista também anotou em sua agenda uma lista de congressistas ao lado da letra K, suposta referência a pagamentos em dinheiro.


Artigos

Lições da greve
Denis Lerrer Rosenfield
Na ausência de uma política universitária, as greves se tornaram um meio de os professores extravasarem a sua indignação e obterem aumentos salariais

O governo deveria se fazer a seguinte pergunta: por que as greves de professores universitários são bem-sucedidas?
Não adianta o governo correr agora atrás do prejuízo e proclamar a sua boa vontade no acordo final que pôs fim à greve, nem alardear a vitória do bom senso. Os fatos são crus. Em dois mandatos do governo FHC, as greves dos professores universitários foram das poucas que se traduziram por ganhos financeiros e políticos palpáveis.

É inegável que essa última greve foi conduzida por setores mais radicais da comunidade universitária, que procuravam ganhos ideológicos e partidários manifestos, sem nenhuma preocupação maior com os destinos da universidade e com os estudantes de graduação. Foi dito que estávamos diante de uma das maiores greves universitárias do país, como se isso fosse um feito, o da insensatez certamente. É inegável também que o governo pouco tem feito. Prédios vetustos, laboratórios insuficientemente equipados, remuneração insuficiente, descontinuidade de financiamento na área de ciência e tecnologia, além de valores inadequados. As universidades públicas federais têm sido abandonadas ao sabor de políticas oscilantes e, mesmo, a uma desqualificação do que nelas é feito, embora todos os indicadores lhes sejam favoráveis.

As recentes declarações do presidente tampouco nada ajudam. Afirmar que professores são figuras secundárias por serem pesquisadores mal-sucedidos revela um desconhecimento das condições em que se faz pesquisa neste país. O presidente deveria se espantar de que se faça tanta pesquisa, apesar das condições em que se realiza. Exemplos: os professores federais ganham uma gratificação especial (GED) para dar aulas, independentemente de que produzam ou não, pois a ênfase é posta no número de horas/aula. Se um professor se dedicasse totalmente à pesquisa, sem obrigações docentes, teria uma redução de seu salário. O financiamento da pesquisa é descontínuo, flutuando ao sabor dos recursos concedidos às agências de fomento, além de os valores serem insuficientes. Os professores ganham pouco, estando obrigados, muitas vezes, a atividades complementares para sustentar suas famílias.

As questões centrais não foram enfrentadas. Na ausência de uma política universitária, as greves se tornaram um meio de os professores extravasarem a sua indignação e obterem aumentos salariais. A saída da greve é apenas uma pausa, o que já era visível no final da greve anterior. No que resta de tempo ao atual governo, não é mais possível uma grande reforma. Na verdade, não há condições políticas para tal, pois há uma radicalização manifesta dos professores universitários, exponenciada pela proximidade do ano eleitoral. No entanto, políticas setoriais são possíveis e o seu conjunto pode resultar numa grande transformação em poucos anos.

Assim, poderíamos pensar o seguinte roteiro: 1) elaboração de um novo plano de carreira, que contemple os professores mais jovens e titulados, com regras de transição para os professores do quadro normal que queiram ingressar no novo; 2) valorização do mérito e da produtividade, tanto do ponto de vista do financiamento das universidades quanto dos salários dos professores; 3) autonomia orçamentária, que permita às autoridades universitárias fazer uso livremente do seu orçamento; 4) concessão de autonomia financeira às universidades, com percentuais estipulados no orçamento da União, tal como ocorre com as universidades do Estado de São Paulo. Os argumentos das autoridades econômicas contra essa vinculação têm tido resultados desastrosos, pois produziram o imobilismo e, sobretudo, não impediram o aumento dos gastos, como fica evidente nessa última greve. O governo teria inclusive gasto menos se tivesse se adiantado aos fatos; 5) independentemente da fixação desse percentual, deveria ser introduzido o ensino pago nas universidades públicas para aqueles que podem pagar. É um princípio de justiça: ‘‘Os desiguais devem ser tratados desigualmente’’. Observe-se, no entanto, que essa forma de financiamento não pode implicar diminuição do percentual a ser estabelecido. Teríamos, então, em cada universidade, o equivalente a uma fundação de amparo à pesquisa, onde se poderia contemplar um sistema de bolsas para estudantes carentes; 6) urgência de uma reforma gerencial das universidades, pois o atual sistema é inoperante, sendo constituído por uma multiplicidade de comissões, conselhos etc., que obstaculizam o funcionamento universitário. Os professores terminam por dedicar uma boa parte do seu tempo à administração — e má administração — em vez de pesquisarem e darem aulas. Aliás, menos vagas seriam necessárias se os professores fizessem menos administração.

Se nada for feito, seremos conduzidos a uma privatização branca das universidades, cujo s responsáveis serão tanto o atual governo como os seus setores mais radicais e corporativos.



Editorial

‘‘Fora de lugar’’
Algumas situações revelam apenas a tolerância oportunista com que são tratados alguns negros, que alcançaram prestígio e poder

A revista Tudo realizou um teste comparativo sobre o estágio atual de nossa democracia racial, em novembro deste ano, buscando atualizar experiência semelhante realizada em 1967 pela revista Realidade e em 1990 pela revista Veja. Como nas anteriores foram convidados três jornalistas, um negro, um branco e um oriental, para simularem ser consumidores em ‘‘estabelecimentos comerciais dos Jardins, em São Paulo, reduto de lojas de grife, restaurantes caros e hospitais de primeira linha’’ de forma a identificar diferenças de tratamento.

Foram escolhidos estabelecimentos situados nas mesmas ruas e com as mesmas características aos utilizados nos testes anteriores. Os três jornalistas convidados usavam roupas do mesmo estilo, e adotaram como ordem de entrada nos recintos, em primeiro lugar, o negro, seguido pelo oriental e por último sempre o branco.
Na primeira situação, num restaurante de alto padrão, ao jornalista negro que esperava no balcão por uma mesa, foi sugerido: ‘‘Você não prefere escolher o seu prato e ser servido aqui mesmo?’’

Embora ele tivesse chegado antes, a primeira mesa que vagou foi oferecida ao seu colega oriental que chegara depois. Ao fim da refeição, o garçom preocupou-se em perguntar para o negro se ele necessitava de nota fiscal, o que não lhe ocorreu perguntar aos demais e, por fim, ‘‘os três pediram café depois de acertar a conta, mas apenas o negro pagou R$3,50 pela bebida’’.

Na segunda situação, numa loja de grife famosa, o repórter negro que estava sendo atendido pela vendedora, foi, segundo a revista Tudo, ‘‘abandonado às moscas’’ assim que o jornalista branco entrou. Ao oriental, depois de experimentar várias peças, sem nada comprar, foi oferecido um ‘‘cafezinho, num salão anexo à loja’’, o que obviamente não ocorreu com o cliente negro.

Na terceira situação, em uma maternidade muito conceituada, uma série de informações que foram oferecidas ao jornalista oriental e ao branco foram simplesmente omitidas para o negro, tais como: a oferta, pela maternidade, ‘‘de curso especial para gestante, kit-envelope informando todos os serviços da maternidade.. e que o hospital disponibilizava um enxoval, sem custos, para o bebê...’’

A primeira idéia que se defende diante desses casos é a de que há uma suposição generalizada de que os negros não dispõem de poder aquisitivo para pagar serviços de qualidade, posto que está incrustado no imaginário social que os negros são, em geral, pobres. Então estaríamos diante de uma situação de discriminação de classe social, embora os três apresentassem, intencionalmente, os mesmo símbolos de status.
No entanto, a interferência da raça/cor no tratamento diferenciado se revela numa das ‘‘pérolas’’ colhidas pelos jornalistas no restaurante. Um dos clientes que esperavam por mesa comenta com outro: ‘‘A gente aqui esperando que nem bobo e o crioulo ali sentado na mesa belo e folgado com um copo de cerveja. Dá pra acreditar?’’ E mais diz o cliente: ‘‘Nem o Pelé está mais com essa moral toda. Vocês viram a pisada de bola do negão...’’

A frase não deixa dúvida sobre o saudosismo da ‘‘senzala’’ sobre a certeza de que aquele negro está ‘‘fora de lugar’’ ocupando o de ‘‘outro’’, o legítimo, tornado ‘‘bobo’’ por ter que esperar uma mesa, enquanto um negro desfruta de outra.

Uma frase exemplar que revela, na sua simplicidade, toda a lógica explicativa das desigualdades raciais e as ‘‘dificuldades’’ presentes no debate sobre as ações afirmativas: a idéia insuportável de ter que socializar com negros a espera e o acesso às mesas dos melhores restaurantes, escritórios, universidades etc.
Em duas das três situações descritas há um rito — o do cafezinho, cortesia da casa — para clientes preferenciais. É, numa das situações, não oferecida; e noutra, cobrada do negro uma multa simbólica, por estar ele ‘‘fora de lugar’’.

A racionalidade que governa as relações de consumo, em que cada indivíduo é um consumidor em potencial, não importando a cor ou origem do seu dinheiro, desde que ele seja suficiente para pagar o bem desejado, se fragiliza, na intersecção com a raça/cor, renunciando à liturgia que compõe o assédio ao consumidor, o que revela que, em certas circunstâncias e, para determinados círculos sociais, a possibilidade de contágio daqueles espaços e daqueles produtos, pelo estigma que envolve o negro, representa ônus superior do que a perda desse consumidor. O bem superior que se pretende preservar é a identidade daqueles espaços e daqueles produtos com um ideal de ego dos clientes, de pertencimento a um grupo de privilegiados, seres superiores, detentores do direito às melhores coisas do mundo. Como no caso da mulher de César, não basta ser rico, ou ter dinheiro — tem também que parecer, encarnar a representação idealizada do consumidor de alto padrão, em relação à qual os atributos da negritude, para muitos, tem uma não-correspondência inconciliável.

Há, portanto, espaços em que os negros não são desejados, nem como consumidores, nos quais operam os elementos de resistência determinados pelo estigma. O estigma, segundo Goffman, é algo externo, não é da pessoa, mas chega antes dela. O medo do contágio do estigma expulsa os negros sutil ou violentamente dos espaços, também estigmatizados, como privativos dos brancos, em especial os das classes superiores.
Costuma-se considerar que, no Brasil, é possível tornar-se branco ou negro a depender da conta bancária. As situações relatadas revelam apenas a tolerância oportunista com que são tratados alguns negros, que alcançaram prestígio e poder, mas que, ao menor vacilo, são mandados de volta para a senzala.

Alguém já nos alertou que a mudança de paradigma exige um novo olhar. Emanuel Levinas disse que a ‘‘ética é uma ótica.’’ A transformação dessas imagens negativas que aprisionam os negros requer a emergência de um novo paradigma que subverta essa ótica discricionária, que cega a ética e desfoca o olhar.


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12/07/2001


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