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Lessa promulga Orçamento sem aval legislativo
O governador de Alagoas, Ronaldo Lessa (PSB), promulgou ontem, no Diário Oficial do Estado, o Orçamento para 2002, no valor de R$ 2,6 bilhões, antes mesmo da aprovação da Assembléia. Para Lessa, os deputados deveriam ter aprovado o Orçamento até o fim do ano. A decisão, que é inédita no Estado, permite que as receitas e as despesas deste ano sejam definidas sem aprovação do Poder Legislativo. "Não se pode confundir democracia com anarquismo, tampouco permitiremos que os alagoanos fiquem reféns dos caprichos de um grupo de deputados que não cumprem o seu dever", justificou Lessa.
O governo decidiu pela promulgação ao invés de utilizar um doze avos do Orçamento de 2001 até a aprovação pela Assembléia. "Essa medida não resolveria a questão, então optamos pela solução definitiva", afirmou o procurador-chefe do Estado, Paulo Netto Lôbo.
No dia 31, a Assembléia Legislativa tentou votar o Orçamento, mas não houve consenso sobre o projeto. Segundo a assessoria de imprensa da Casa, o presidente da Assembléia, Antonio Albuquerque (PTB), falará hoje sobre o assunto.
Na interpretação jurídica do governo, a Assembléia não poderia deixar de votar e devolver a matéria até o dia 30 de novembro, prazo estipulado pela Constituição Estadual. Lôbo disse que o que ocorreu foi uma "aprovação automática do Orçamento por decurso de prazo".
Itamar volta a demitir para retaliar Newton
BELO HORIZONTE – Em mais uma investida contra o vice-governador de Minas, Newton Cardoso, o governador Itamar Franco (PMDB) anunciou ontem à noite mais 13 exonerações, todas de diretores do Departamento Estadual de Estradas de Rodagem (DER) e do Departamento Estadual de Obras Públicas (Deop). Os dois órgãos eram comandados por pessoas ligadas ao vice. Na semana passada, Itamar já havia demitido 13 pessoas, a maior parte delas ligada a Newton.
Presidente vai convocar reunião do Ministério
BRASÍLIA - O presidente Fernando Henrique Cardoso vai convocar este mês reunião ministerial para tratar das ações do governo em 2002. O anúncio foi feito ontem pelo porta-voz da Presidência, Georges Lamazière. O encontro da equipe ainda não tem data marcada e servirá para discutir o programa de trabalho deste ano. Por causa das eleições de outubro, os ministros que forem concorrer deverão deixar o governo até 6 de abril.
Estado faz exigência para pagar superprecatório
Segundo subprocurador de SP, credora tem de dar ‘explicações irrefutáveis’ para receber R$ 1,38 bi
O governo do Estado “não vai concordar em hipótese alguma” com a liberação de R$ 1,38 bilhão (referentes ao total das dez parcelas anuais do superprecatório do Parque Villa-Lobos) se a S.A. Central de Imóveis e Construções – credora desse valor – não apresentar à Justiça “explicações convincentes e irrefutáveis” sobre sua situação atual e a titularidade da área desapropriada em 1989 junto à Marginal do Pinheiros. A informação é de José Roberto de Moraes, subprocurador-geral do Estado.
Ele reafirmou argumentos apresentados à 3.ª Vara da Fazenda Pública pela Procuradoria Administrativa da Procuradoria-Geral do Estado (PGE) para obstar o levantamento da primeira parcela, de R$ 138,69 milhões, depositada em juízo em 31 de agosto. Segundo a procuradora Fátima Fernandes Castellani, que assina manifestação datada de 30 de novembro, a Central deve apresentar esclarecimentos inclusive sobre sua liquidação, anunciada nos autos da ação de desapropriação no início de 94. Um dos acionistas é o empresário Antônio João Abdalla Filho.
A procuradora anotou que foi “apresentada documentação imobiliária da qual se conclui, salvo equívoco, que a Central não é mais a expropriada”. Ela reiterou que, durante o processo, foi juntada escritura de compromisso de venda e compra quitada, celebrada em 1972.
Valores – O documento mostra que a Central vendeu vasta extensão de terras, na qual o “imóvel objeto” está incluído, para José João Abdalla Filho, Antonio Abdalla e João Abdalla Netto. “Daí que a Central nada tem a ver com o presente feito, não devendo mais ser deferido qualquer levantamento a seu favor”, advertiu Fátima. Os advogados Roberto Cury e Eid Gebara sustentam que “a Central era e continua a ser a exclusiva titular de domínio dos lotes expropriados.” Eles informaram à Justiça que a S.A. entrou em liquidação ordinária “por sua exclusiva conveniência, conforme unânime deliberação de seus acionistas”.
Moraes observou que a discussão sobre a propriedade da área não interfere nos valores. “Trata-se de ação de desapropriação, movida pelo Estado em função de decreto governamental; neste tipo de ação, o depósito do valor apurado com trânsito em julgado é obrigatório, mas é feito em favor do juízo.” Ele lembrou que o valor principal, corrigido, corresponde a 23,5% do precatório. Juros compensatórios, moratórios e honorários advocatícios representam os outros 76,5%.
O subprocurador-geral rebateu a informação de que o acordo firmado pela PGE com Abdalla Filho, em 1997, abriu caminho para aplicação de índices inflacionários sobre o crédito. “A correção monetária decorre da Lei Federal 6.899/81.” Ele acrescentou que a aplicação dos índices expurgados pelos planos econômicos “decorre de entendimento da Justiça contra os quais o Estado se insurgiu em todas as instâncias, inclusive Supremo Tribunal Federal ”.
Na época em que o acordo foi fechado – garantindo liberação de R$ 257 milhões em 48 parcelas mensais – já havia determinação para o pagamento dos valores devidos com os índices expurgados. Moraes informou que a atualização automática do precatório é prevista no Regimento Interno do Tribunal de Justiça. “O não atendimento da decisão transitada em julgado significaria, hoje, o seqüestro da diferença ou o seu poder liberatório para pagamento de tributos estaduais.”
Septicemia no setor público
Quem definiu à perfeição a causa da morte do seqüestrador Fernando Dutra foi Millôr Fernandes: “Morreu de falência múltipla dos órgãos – Polícia Federal, Justiça Estadual e governo do Estado.” Tenha sido assassinado ou vítima de negligência médica, o criminoso morreu sob custódia do poder público sem que este tenha conseguido explicar o que houve.
Bem como, no âmbito federal, a PF ainda não sabe dizer as razões pelas quais a cantora Glória Trevi engravidou nas dependências de sua carceragem, em Brasília. Na verdade, o que volta a estar em questão é a política de direitos humanos no Brasil, uma vez que, se isso acontece com protagonistas de episódios que ganham fama, lícito supor que haja muito mais nos recônditos não iluminados pela notoriedade.
No caso de São Paulo, o desfecho mostra que estavam corretas as análises segundo as quais o governador Geraldo Alckmin errou ao negociar pessoalmente a rendição do seqüestrador que mantinha Sílvio Santos como refém, e se arriscou ao empenhar pessoalmente sua palavra como garantia de vida a Fernando Dutra. Conseguiu, como argumentaram os defensores da presença de Alckmin, driblar uma circunstância, mas a médio prazo teve sua palavra desmoralizada pelo sistema subordinado a ele.
Todas as autoridades que se pronunciaram sobre o episódio – de médicos ao secretário de Administração Penitenciária – reconheceram a estranheza de uma morte por septicemia de uma pessoa com a idade e as condições físicas (conhecidas) em que se encontrava Fernando Dutra.
Prejulgamentos não levam necessariamente a sentenças justas, mas é fato que o cas o em questão encerra elementos gritantes de suspeição. O mais explícito descobriu-se só agora. Dias antes de morrer, o criminoso havia sido agredido por um chefe de segurança e dois carcereiros. Não deu queixa, o que denota temor, evidentemente por precedência de ameaça.
Na ausência de registro, a despeito da existência de testemunhas, não houve investigação e fica no “desentendimento” a única explicação fornecida. Sim, mas desentendimento por qual razão?
Não se pode esquecer que o caso de Fernando não está enquadrado naqueles em que tradicionalmente os companheiros de prisão fazem eles mesmos a justiça que consideram adequada ao tipo de crime cometido. Ao contrário, se houver aí o elemento vingança, ele está do outro lado.
Primeiro, porque dois policiais foram mortos num suposto embate com Fernando, que, no entanto, negou a autoria do crime, transferiu a responsabilidade para outros policiais que estariam na cena e ainda denunciou que houve intenção de extorquir o dinheiro do resgate em poder do seqüestrador. Este, portanto, transformado em testemunha-chave num processo de corregedoria policial.
Em segundo lugar, visto de agora, já não parece absurdo que o governador não tenha comparecido ao enterro dos dois policiais, como seria normal e conforme lhe foi cobrado à época. Talvez informações adicionais e a prudência que faltou quando aceitou ir à casa de Sílvio Santos tenham norteado a decisão de não render homenagens àqueles que, em tese, foram mortos em serviço pelo seqüestrador a quem Alckmin garantiu a preservação da vida.
Pois bem, agora o advogado que representa a família de Fernando Dutra fala em processar o Estado para responsabilizá-lo pela morte, baseado no empenho da palavra do governador. Esse direito já seria assegurado, da mesma forma como famílias de presos políticos obtiveram indenizações pelo desaparecimento de parentes em condições misteriosas dentro da prisão, dado o dever de o poder público garantir a vida e a segurança daqueles sob sua custódia.
A explicitação da falência múltipla dos órgãos públicos a que se referiu Millôr Fernandes só se tornou mais evidente porque Geraldo Alckmin forneceu seu cargo como aval de uma garantia que não pôde sustentar. Lastreada na inépcia, portanto.
Dois pesos
Como pessoa física, Marta Suplicy tinha todo o direito de passar as festas de fim de ano onde quisesse e com quem bem entendesse.
Já como pessoa jurídica, a prefeita não avaliou corretamente o prejuízo político de sua viagem com Luis Favre a Paris, ante uma São Paulo cuja maior parte da população julga que a cidade não está sendo administrada a contento.
Faltou um bom assessor ou um bom amigo para dizer a Marta que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa e certas coisas são imperdoáveis para a opinião pública.
A luta continua
Avaliação política corrente no governo brasileiro: ainda vai haver muito quebra-quebra na Argentina, cuja situação política – traduzida nas relações da sociedade com os governantes – não será resolvida tão cedo. Sem contar a peculiaridade de o presidente Eduardo Duhalde, eleito indiretamente, ter sido rejeitado pelas urnas há dois anos.
Receita extra deve livrar Orçamento de cortes
Expectativa no governo é que arrecadação vai superar previsão e ajudar a fechar contas
BRASÍLIA - O presidente Fernando Henrique Cardoso poderá ser surpreendido pelos números a serem apresentados em breve pelo ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão, Martus Tavares, após o reexame do Orçamento-Geral da União para 2002. Apesar de a proposta orçamentária aprovada pelos parlamentares nos últimos dias do ano passado conter mais despesas que receitas, técnicos da área econômica do governo esperam que a arrecadação supere o previsto no texto e ajude a fechar as contas. Caso a previsão se confirme, não será preciso cortar gastos, como teme Fernando Henrique.
O relator-geral do Orçamento, deputado Sampaio Dória (PSDB-SP), disse ontem que o Palácio do Planalto não tem motivos para cortar "nenhum centavo" dos R$ 11 bilhões de despesas acrescidas pelo Congresso à proposta original do Executivo. "Os números não são dramáticos como pareciam no primeiro momento, pois o governo acabará tendo receitas adicionais", afirmou. Isso vai amenizar a perda de arrecadação de R$ 1,7 bilhão prevista com a correção em 17,5% da tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física.
Inativos - De acordo com Dória, também não representará um problema o fato de o Congresso não ter aprovado a cobrança de contribuição previdenciária dos servidores inativos da União, mudança que produziria uma arrecadação extra estimada em R$ 1,4 bilhão. Para aprovar o Orçamento às vésperas da virada do ano, o governo concordou em retirar do texto essa previsão de receita, por julgar ser possível "adequar" as despesas da Previdência Social.
O relator do Orçamento disse que os gastos previdenciários estão mesmo superestimados, em pelo menos R$ 500 milhões. Segundo Dória, eles foram calculados levando em conta uma taxa de crescimento vegetativo do total de aposentadorias e pensões de 3,2% para este ano, acima portanto dos 2,6% registrados dos últimos 12 meses.
Além disso, o secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, apresentará na próxima semana um balanço do acordo fechado com os principais fundos de pensão, que durante dez anos não pagaram impostos. Derrotados na Justiça, eles se viram forçados a negociar suas dívidas, o que representará o ingresso de R$ 7,5 bilhões nos cofres federais ainda neste ano - R$ 500 milhões a mais do que o previsto no Orçamento. Também não foram contabilizados pelo Congreso outros R$ 700 milhões, referentes ao fluxo anual do Imposto de Renda que os fundos pagarão a partir de agora.
Desempenho - Há, ainda, a expectativa de que as receitas deste ano sejam beneficiadas pelo desempenho da economia. As projeções embutidas no Orçamento foram baseadas em taxas de inflação, juros, câmbio e Produto Interno Bruto (PIB) aquém dos números esperados pelo mercado. Os juros, por exemplo, foram projetados em 15% em dezembro, enquanto as últimas pesquisas apontavam 16,5%. Os R$ 2,40 previstos para o fim de 2002 estão abaixo dos R$ 2,80 aguardados pelas instituições financeiras.
Esse cenário tende a elevar os preços sobre os quais a arrecadação é calculada, produzindo ganhos para a União. A comparação entre a previsão das despesas e a reestimativa das receitas vai determinar o teto de gastos que cada ministério poderá fazer até dezembro. O limite estará em decreto a ser editado no dia 21. A partir daí, os ministros terão de acelerar a chamada "execução orçamentária", de acordo com uma orientação expressa dada anteontem por Fernando Henrique, durante reunião com integrantes do primeiro escalão no Palácio da Alvorada.
O ministro da Integração Nacional, Ney Suassuna (PMDB), por exemplo, não pôde comparecer ao encontro e teve de conversar a sós ontem com Fernando Henrique. A preocupação do presidente é garantir que, em ano eleitoral, o cronograma de gastos federais seja bem definido logo no primeiro trimestre.
Outro objetivo do Planalto é assegurar os recursos para atender às emendas dos parlamentares ao Orçamento e evitar novas turbulências no Congresso.
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Variações sobre o liberalismo
Miguel Reale
A cavaleiro dos dois últimos séculos, sobretudo devido à influência da teoria marxista, liberalismo e socialismo se contrapuseram, surgindo os primeiros vaticínios sobre o predomínio de um ou de outro na direção política do mundo, a começar pelo Ocidente.
Como é sabido, o liberalismo foi considerado, de início, na Europa e nos países ligados à sua cultura, uma doutrina mais aplicável na área e conômica, com base nos ensinamentos setecentistas de Adam Smith e de seus continuadores, ao passo que já ganhava também uma conotação política nos Estados Unidos da América, graças às diretrizes firmadas por Thomas Jefferson e demais fundadores da grande República do Norte.
Aos poucos, porém, essa acepção lata se estendeu a todas as nações ocidentais, adquirindo, ao longo da passada centúria, o significado de doutrina política caracterizada pela distinção básica entre atividade econômica e atividade política, sendo a primeira confiada à iniciativa privada, ficando a outra a cargo do Estado, incumbido apenas da ordem interna e da defesa das soberanias nacionais, sem cuidar de medidas de natureza assistencial. A Constituição republicana de 1891 enquadra-se nessa concepção.
Todavia, no decorrer do século 20, principalmente após a 1.ª Grande Guerra, cujo fim coincidiu com a implantação do bolchevismo na Rússia, veio-se alargando a competência do Estado no campo da saúde pública e da educação, consideradas cada vez mais atribuição dos órgãos governamentais.
Isso não obstante, o liberalismo, por longo tempo, se manteve adverso à intervenção estatal nos domínios econômicos, enquanto crescia a força dos partidos políticos socialistas, tomado este termo em sentido lato, abrangendo programas inspirados na experiência soviética.
Não foi apenas o impacto das reivindicações socialistas que determinou a ampliação da competência estatal em assuntos econômicos e sociais, mas também a chamada "revolução industrial" resultante da aplicação tecnológica no plano da produção das riquezas, o que teve como resultado o fortalecimento das organizações operárias, de maneira especial dos respectivos sindicatos.
No Brasil, essas alterações datam da revolução de 1930, cuja Constituição de 1934 chegou ao ponto de criar no Congresso Nacional a "representação classista" dos empregadores e dos empregados. Tudo isso, porém, veio abaixo com a instauração do Estado Novo e a chefia dominante de Getúlio Vargas, cuja orientação era manifestamente antiliberal e antidemocrática, sob a inspiração do movimento fascista italiano, reforçado pela tradição estatizante que lhe vinha da experiência gaúcha, dirigida pelas idéias autoritárias de Júlio de Castilho, conforme explanei em artigo recente (24/11/2001, A2).
Extinto o Estado Novo, nova onda liberal percorreu o País até culminar na Constituição de 1946. Já então o ideário liberal se apresentava mitigado, com amplo campo de ação conferido ao Poder Central no que se refere às atividades econômicas e assistenciais, conforme era defendido sobretudo por John Maynard Keynes.
Foi essa orientação um dos fatores determinantes do desenvolvimento das idéias socialistas no Brasil, provocando a crise desencadeada no quatriênio presidencial de Jânio Quadros e João Goulart, tendo como desfecho a ditadura militar que iria ter tão longa duração. Bem examinada a nossa história, verifica-se, pois, que o predomínio do liberalismo entre nós tem tido caráter excepcional, sendo o seu período mais longo o que começa com a Constituição de 1988, e assim mesmo com a necessidade de várias reformas para expurgá-la de mandamentos excessivamente estatizantes e xenófobos.
Como penso ter demonstrado em meu livro O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias, estas passaram por profunda revisão após o soçobro do socialismo real, com a dispersão da URSS, passando a prevalecer soluções pragmáticas, com governos mistos, formados de representantes da democracia liberal e da social-democracia, esta ainda com forte carga de diretrizes marxistas.
No Brasil, ao lado de partidos liberais, de caráter mais personalista do que programático, prevalece um socialismo vago e indefinido, como o do Partido dos Trabalhadores, que aponta o "neoliberalismo" como a fonte primordial de todos os nossos males.
É aqui que se abre, atualmente, no Brasil, um leque de tendências liberais, que vão desde um liberalismo exacerbado, crente, conforme o magistério de Hayek, no benéfico jogo das operações de mercado - e seria propriamente o neoliberalismo -, até composições de cunho liberal em aliança com a mais variada gama de competências atribuídas ao Estado. Nesse contexto, a expressão "social-democracia" é empregada em múltiplos sentidos, variando de um Estado federado para outro, quando não se dá o mesmo no plano inferior da vida política municipal.
Se nos conforta a constatação de que igual fato ocorre em alguns países europeus, não se pode deixar de reconhecer que, a continuar assim, tudo terminará culminando em "arreglos" de caráter predominantemente personalista, não faltando exemplos de acordos políticos que ocultam interesses de ordem religiosa, olvidando-se o alto valor da distinção entre assunto de política e de religião.
Não há dúvida que estamos numa época de marcada transição doutrinária, gerada pelo fracasso do socialismo real, o que explica a vacuidade das numerosas siglas partidárias que povoam o mundo democrático.
Em tão complexo cenário, não será demais chamar a atenção para a diferença que deve ser feita entre "socialismo liberal", que é defendido, entre outros, por Norberto Bobbio, e "social-liberalismo" ou "liberalismo social", por mim preferido na obra supra citada. Essas expressões não são equivalentes, mas correspondem ao maior ou menor valor atribuído à opção socialista, ou à opção liberal, tendo sempre como vetor o problema do intervencionismo estatal na órbita socioeconômica.
Colunistas
RACHEL DE QUEIROZ
A fábula do homem e o seu garrafão
Pelo interior do Brasil é comum a presença de um cara que é chamado de "propagandista". Aqui pelo Estado do Rio, antes da camelotagem desenfreada ele era chamado também de "camelô".
Usava roupa vistosa, por exemplo: paletó xadrez vermelho e verde -, calças bois de rose, gravata azul-bebê. Em geral fazia propaganda de remédios que curam tudo, todos os males do mundo, e até maus pensamentos.
Ouvi que vendia xarope contra sífilis e, referindo-se às doenças "sexualmente transmissíveis", falava poeticamente em "mal de amores".
E foi a propósito de propagandistas que recordávamos ontem, minha irmã e eu, um caso que nosso pai nos contava garantindo que era verdadeiro.
Sucedeu numa cidade cujo nome ele não dava, para "evitar constrangimentos". O sujeito já desceu do trem vestido a caráter: terno de listras coloridas, sapato pampa, camisa roxo-batata, gravata amarela.
Na pensão registrou-se, levou a mala à sua vaga no quarto, e portando um grande rolo de papel debaixo do braço, pediu permissão à dona da casa para expor à sua porta um cartaz, que dizia o seguinte: "HOJE ÀS 16 HORAS, VENHAM VER O HOMEM QUE ENTRA NO GARRAFÃO!"
Dali foi à igreja à procura do vigário, solicitando à Sua Reverência licença para dar uma demonstração estupefaciente, tendo como palco a escadaria da Matriz. O padre ficou meio espantado quando leu o cartaz, mas acedeu.Também queria ver aquilo. Os outros cartazes foram espalhados pelas ruas, saturando todo o lugarejo.
Claro que a curiosidade foi enorme. Fizeram-se apostas, teve gente que rasgava nota de cem em duas, que é a maneira mais popular de registrar apostas sem papel escrito. Quem ganhar vai receber do outro a sua metade da nota.
Logo depois do almoço o nosso homem foi à farmácia, onde negociou o aluguel de um garrafão, de vidro, desses que transportam água destilada. Da pensão, conseguiu ainda uma mesinha, e assim, pontualmente, às 4 da tarde, lá estava ele com seus trajos multicores e os seus apetrechos, pronto para a "demonstração".
A praça pululava de gente. Faziam-se as mais ousadas conjecturas: "O garrafão é de borracha transparente. No que o homem f or entrando ele estica, até caber." Outros acreditavam em hipnotismo. "Ele hipnotiza todo mundo, e aí a gente acredita que ele entrou em qualquer coisa." Outros achavam que era só um truque - "Não sei como é, mas tem de ser um truque."
E, assim, ele começou a falar sob aplausos e assobios. Delicadamente pediu silêncio à multidão: ia começar o espetáculo.
Tirou o casaco, tirou a gravata, pôs no chão o chapéu de palhinha, mostrou as mãos vazias. Então, lentamente, lentamente, tentou enfiar a mão direita pelo gargalo do garrafão. Não cabia, claro. Estirou o polegar, introduziu o dedo no gargalo - entrou! Mas parou na junta. Ele suspirava, mas, com a mão esquerda, tentou de novo: não entrou. Descalçou os sapatos, experimentou o pé - quá! Não entrou mesmo - era ainda maior que a mão. Tentou o nariz, até que ralou e minou sangue. Não entrou também.
E diante do silêncio atônito da multidão, o homem abriu os braços de pura impotência e constatou desolado:
- Realmente, foi impossível. Mas vocês bem que viram: EU TENTEI!
Editorial
A ARGENTINA E O MERCOSUL
No momento em que começam a ser delineados os primeiros traços daquela que será a política do novo governo argentino em relação ao Brasil e ao Mercosul, é preciso não perder de vista que o principal fator condicionante do relacionamento de Buenos Aires com os países vizinhos serão as peculiaridades da política interna daquele país. Durante a maior parte do malfadado governo De la Rúa, a diferença entre os regimes cambiais e a falta de coordenação entre os Ministérios das Relações Exteriores e da Fazenda argentinos provocaram um estado de "crise larvada" no relacionamento com o Brasil e a paralisia do Mercosul que esteve ameaçado de retrocesso. Essa situação parece superada.
O novo governo, pelas declarações do atual chanceler e pela visita que o governador de Córdoba e ex-embaixador em Brasília, José Manuel de la Sota, acaba de fazer ao presidente Fernando Henrique Cardoso, reconhece, em primeiro lugar, que o bom relacionamento com o Brasil é essencial para o êxito do esforço de recuperação da Argentina, e a consolidação do Mercosul, antes de ser um problema, é uma solução. Daí o presidente Eduardo Duhalde ter se ocupado, logo nos primeiros momentos de seu governo, em aparar as arestas e em derrubar os obstáculos ao bom relacionamento bilateral que haviam sido caprichosamente erguidos pelo ex-ministro da Economia Domingo Cavallo.
Engana-se quem julgar que Carlos Ruckauf foi conduzido ao posto de chanceler pelas atitudes protecionistas que adotou quando governador da província de Buenos Aires. Ruckauf tanto ergueu barreiras à entrada de produtos brasileiros em sua província como assinou um convênio de cooperação com o Estado de São Paulo, para ampliar o intercâmbio comercial e tecnológico.
Duhalde colocou Ruckauf na Chancelaria para afastá-lo do governo de uma província cujo desempenho econômico e social vai de mal a pior e é decisiva em qualquer eleição presidencial. Ruckauf terá, assim, dois anos para se dissociar de um governo provincial desastroso - por sinal, conseqüência da herança administrativa recebida de Eduardo Duhalde - e poder se apresentar, em melhores condições, à convenção do Partido Justicialista que, em setembro, escolherá o candidato à presidência da República.
De la Sota, por sua vez, não foi escolhido para a missão junto a Fernando Henrique apenas porque foi embaixador no Brasil e tem boas relações pessoais com o presidente. O governador de Córdoba foi o principal opositor à fórmula que garantiu dois anos de mandato para Duhalde. De la Sota queria eleições presidenciais diretas em março, sendo ele um dos candidatos. Na quarta-feira, ele e Duhalde se reuniram durante duas horas, acertaram suas diferenças e o governador saiu do encontro com a missão de levar a Fernando Henrique as primeiras informações sobre os planos econômicos do novo governo.
Mas a Chancelaria, o Mercosul e o Brasil não foram meros peões no jogo de Duhalde, utilizados para obter o apoio de dois dos mais importantes caudilhos do peronismo para seu governo. Uma nova política externa está sendo elaborada na Casa Rosada, para funcionar como importante peça dos planos de recuperação econômica da Argentina. Duhalde terá, mais dia, menos dia, de se entender com os organismos financeiros multilaterais e com os credores. Mas, se não se entender logo com os parceiros comerciais mais importantes da Argentina - o Brasil e o Mercosul -, não terá como gerar divisas para sustentar seu programa de recuperação do setor produtivo. É por isso que, na quarta-feira, Ruckauf irá a Brasília, para um encontro com o chanceler Celso Lafer e com o presidente Fernando Henrique e, no dia 11, Buenos Aires será palco de uma reunião de cúpula do Mercosul. É para a sua vizinhança próxima que a Argentina se volta, em busca de apoio, e não mais para os Estados Unidos. Terminaram, como afirmou o chanceler Carlos Ruckauf, as "relações carnais" com os Estados Unidos e tem início a política de "poligamia", isto é, de abertura de novos mercados - justamente o que o governo brasileiro vem preconizando há meses para superar a paralisia do Mercosul, provocada pela crise argentina. Essa é uma conseqüência natural do reconhecimento por Ruckauf de que "não podemos culpar nossos vizinhos por erros cometidos por nós mesmos". Antes assim.
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01/05/2002
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